Em um mundo cada vez mais dominado pelas tecnologias, torna-se cada vez mais urgente uma teoria à altura dos desafios dessas mesmas tecnologias. Esse foi o principal objetivo de um dos maiores pensadores do século 20: Gilbert Simondon (1924-1989). Simondon estudou na École Normale Supérieure de Paris, onde adquiriu um notável conhecimento de mecânica, eletrônica, hidráulica e termodinâmica, além de dominar aspectos centrais de biologia, de física e de filosofia da ciência em geral.
Começou sua carreira como um modesto professor de Filosofia e Física em uma escola secundária. Em 1958, sob orientação de Jean Hyppolite, defende sua tese de Doutorado. Em 1963, é nomeado professor da Sorbonne, onde dirigiu ao longo de vinte anos um centro de pesquisa em psicologia geral e tecnologia.
A despeito da profundidade, da abrangência a da originalidade de sua obra, ele permanece desconhecido do grande público. Quase um autor para autores. O que não faz jus à grandiosidade de seu empreendimento. Embora aclamado por pensadores como Gilles Deleuze, Isabelle Stengers e Bernard Stiegler, em parte esse eclipse se deve à própria personalidade de Simondon, autor tão rigoroso quanto discreto.
Mas em parte isso se deve também às sucessivas edições parciais de suas principais obras. Para sanar de vez esse problema, acabam de sair no Brasil as duas obras mais importantes de Simondon, resultados de sua extensa pesquisa de Doutorado, um verdadeiro mito no meio acadêmico. E em edições que podemos definir como definitivas.
A primeira obra é A Individuação à Luz das Noções de Forma e de Informação, dedicada à memória do filósofo Maurice Merleau-Ponty, em uma edição primorosa da Editora 34 e dentro da coleção Trans. As excelentes tradução e organização ficaram a cargo de Luís Eduardo Ponciano Aragon e Guilherme Ivo, especialistas brasileiros em Simondon. E a orelha é assinada por Luiz Orlandi, um dos mais respeitados filósofos brasileiros.
Trata-se de um divisor de águas nos estudos sobre Simondon, pois esta é a primeira tradução em língua portuguesa. A primeira parte desta obra havia sido publicada pela PUF (1964). Em seguida, houve uma segunda edição pela editora Jérôme Millon (1995), incluindo a segunda parte que havia aparecido apenas em 1989.
Entretanto, a primeira edição completa de A Individuação, seguindo de modo integral o plano estabelecido pelo autor, surge em francês apenas em 2005. E, por fim, apenas em 2013 sai na França uma edição ainda mais detalhada e corrigida. É esta edição que serviu de base para a tradução brasileira.
A segunda obra é Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos, que acaba de ser lançada pela Contraponto. Trata-se de uma edição revista e corrigida, incluída na excelente coleção ArteFíssil, coordenada por Tadeu Capistrano, e com tradução impecável de Vera Ribeiro. Esta edição conta com um prefácio esclarecedor de Pablo Esteban Rodríguez e uma orelha de Andrea Bardin, professor da Oxford Brookes University.
Segundo a herdeira, Nathalie Simondon, embora Do Modo... tenha sido publicada no mesmo ano da defesa da tese, pela editora Aubier, possuía algumas lacunas significativas. Por isso, esta nova edição da Contraponto se baseou na edição francesa mais recente da Flammarion, complementada com as anotações inseridas pelo autor posteriormente à primeira edição e aqui detalhadas em notas de rodapé.
Além disso, esta edição brasileira também inclui uma introdução assinada por Simondon, texto que não consta na primeira edição francesa. E, por fim, traz também um glossário com os termos técnicos e os neologismos mais utilizados.
Quais as teses de Simondon nestas duas obras? Existem duas grandes vias de individuação dos seres. A primeira é chamada de substancialista-essencialista. Por meio dela, acredita-se que as relações entre matéria e forma que constituem os seres possuem uma unidade consistente.
A segunda é chamada hilemórfica. Intensifica-se na filosofia medieval, envolta em polêmicas teológicas, sobretudo na obra do filósofo judeu Solomon Ibn Gabirol (1021-1058). Esta via considera os indivíduos como um encontro entre uma matéria e uma forma. Porém, por mais distintas que sejam, ambas partem de uma mesma premissa: os indivíduos já estão constituídos. Preexistem aos processos de individuação. E comprometem um dos alicerces para uma compreensão efetiva da realidade: a ontogênese. Ou seja: o meio pelo qual um ser singular veio a ser o que é.
Sempre que partimos de seres singularizados e os definimos como indivíduos, conferimos estabilidade a uma metaestabilidade. Cristalizamos o devir infinito de uma natureza em constante singularização. Qual seria a saída? Investigar o princípio de individuação em uma região anterior às determinações de indivíduos constituídos. Ou seja: descrever a ontogênese dos seres.
Por outro lado, definir as condições de existência pré-individuais é também correr o risco de essencializar processos anteriores à emergência dos seres individualizados. A filosofia precisa se esquivar desse caminho. Precisa descrevê-los a partir de um continuum, não de estabilidade, mas de metaestabilidade. Ou seja: descrever estabilidades contingentes, parciais.
Para tanto, Simondon investiga a gênese dos seres em geral, tanto os fisioquímicos quanto os seres vivos. E é nesse ponto que se destaca o conceito de psiquismo. O psiquismo, seja individual ou coletivo, emerge desses processos de singularização. Pode-se então definir o psiquismo não apenas como uma etapa da individuação geral dos seres, mas como o processo global.
O psiquismo seria o modo pelo qual os seres vivos respondem às suas ações vitais e a problemas concretos. Em outras palavras, o psiquismo é o recurso por meio do qual os seres vivos se convertem a si mesmo em problemas que devem ser resolvidos por meio de ações. Assim, psicologia e teoria do coletivo se unificam nessa perspectiva ontogênica.
As relações clássicas da biologia, entre a vida e a adaptação ao meio, são aqui revistas. Não se pode partir de um indivíduo dado e compreender como ele se adaptou a um meio. É preciso partir do processo de singularização e investigar as regiões de indiscernibilidade, as zonas cinzentas e pré-individuais a partir das quais todos os seres emergem. É preciso partir do tropismo e da transformação global dos seres. Essa unidade processual dos seres tem um nome: unidade transdutiva ou processo de transdução.
Nesse sentido, o objetivo desta teoria é estudar as formas, os graus e os modos de individuação. Para isso, é preciso reposicionar a categoria indivíduo em seus três níveis: o físico, o vital e o psicossocial. Simondon cria então um neologismo: transindividual. A individuação dos seres dar-se-ia em passagens: da individuação física à orgânica, da individuação orgânica à individuação psíquica e, por fim, desta à dimensão transindividual, que engloba as esferas subjetivas e objetivas dos seres.
Para não recair no substancialismo antigo, seja do hilemorfismo ou do essencialismo, esta abordagem tropista e transdutiva substitui a noção de forma pela noção de informação. Tanto as acepções antigas de forma e de matéria quanto as noções de informação, advindas das novas tecnologias do século 20, são insuficientes para se pensar essa dimensão puramente transitiva dos seres. A noção de informação não pode ser reduzida a sinais, suportes, meios ou mensagens. Deve ser vista de um ponto de vista ontológico. A informação é a unidade dos processos transdutivos em suas constantes metaestabilidades. E é nesse ponto que adentramos o cerne da argumentação da segunda obra: Do Modo de Existência dos Objetos Técnicos.
À medida que o conceito de informação não pode ser reduzido às novas tecnologias, os objetos técnicos em sua totalidade precisam ser totalmente redefinidos por uma nova teoria. Esta teoria tem três níveis: elementos, indivíduos e conjuntos. E ocorre em três etapas, desenvolvidas nas três partes do livro.
A primeira etapa define os objetos técnicos não como seres artificiais. Eles fazem parte de um longo processo evolutivo. São concretizações dessa evolução, não objetos extrínsecos à vida. E sempre envolvem algum nível de redundância.
A segunda etapa considera a relação do humano com os objetos técnicos a partir de dois níveis mencionados acima: os indivíduos e os conjuntos. Enquanto os indivíduos pressupõem maior ou menor conhecimento sobre os objetos, os conjuntos embaralham diferentes modalidades de progresso, situação existencial marcante da nossa época. Devido à tensão entre indivíduos e conjuntos, a evolução da técnica é paradoxal. Não pode ser pensada em uma perspectiva linear.
Para compreendê-la, deve-se recorrer à terceira etapa: interrogar a gênese e a essência da tecnicidade. Essa fase final deve ser elaborada pela filosofia. Esta seria a única capaz de reconstruir todas as complexas mediações dos objetos técnicos, em suas implicações científicas, pragmáticas, antropológicas, religiosas e metafísicas.
A obra de Simondon é um dos mais elevados cumes que a meditação sobre as tecnologias atingiu em toda história da Filosofia. Diferente dos tecnófobos e dos tecnófilos, daqueles que repudiam e daqueles que idolatram as técnicas, Simondon preferiu o caminho mais pedregoso. E que, não por acaso, é o mais produtivo. Descreveu as tecnologias em toda sua profundidade e extensão, dentro dos humanos e para além de nós.
RODRIGO PETRONIO É ESCRITOR E FILÓSOFO. PROFESSOR TITULAR DA FAAP.