Os melhores livros de Agatha Christie têm diálogos cortantes e enredos de alta velocidade. Os ruins têm algo daqueles jogos de palavras: prosa fraca, cravejada de lacunas em branco nas quais você pode imaginar a prolífica Christie ligando uma “parte do corpo” a “arma” aleatória. Em um estudo de 1971 sobre a ficção policial inglesa, Colin Watson disse que Christie “parece estar bem ciente de que a inteligência e o potencial de leitura não estão relacionados”.
A provocação de Watson era injusta. Poucos leitores recorrem a romances policiais para ter recompensas cerebrais complexas. Romances de detetives são jogos e exigem um método de avaliação (e construção) diferente das obras de literatura com L maiúsculo. Christie entendeu isso. Como acontece com qualquer jogador, o autor pode ser acusado de não jogar limpo, e os melhores romances de Christie, como O assassinato de Roger Ackroyd, chegam deliciosamente perto da linha da trapaça, sem cruzá-la. O objetivo é deixar o leitor arrebatado e empolgado, não perplexo e ressentido.
Surgiu pelo menos uma dúzia de livros dedicados a Christie nas últimas duas décadas, e Agatha Christie: An Elusive Woman, de Lucy Worsley, é um acréscimo agradável, mas não essencial. Os fãs vão admirar a identificação de pessoas, lugares e frases da vida real que Christie transformou em ficção. Vão adorar ver fotos da autora surfando no Havaí, ou saber que sua bebida favorita era um copo de creme puro. (“Creme, puro” deve ser um pedido aceitável. Se trabalharmos juntos, talvez possamos fazer isso acontecer).
Mas o livro também traz uma grande quantidade de repetição – talvez porque o terreno já tenha sido cuidadosamente mapeado – e uma dose nada sutil de moralização. Uma linha no prefácio dá um tom ameaçador, alertando que a obra de Christie “contém visões sobre raça e classe que são inaceitáveis hoje” – um refrão comum em biografias recentes, mas totalmente desnecessário para leitores cujo conhecimento de história se estende por mais de cinco minutos.
Worsley passa pela infância de Christie em ritmo acelerado. Ano de nascimento: 1890. Localização: Sudoeste da Inglaterra. Mãe: criativa, enigmática. Pai: abençoado com uma herança decente, mas amaldiçoado pelo vício em compras. Irmãos: dois. Casa: amplo casarão com vista para o mar. Educação: irregular.
Em 1914, Christie se casou com um belo piloto chamado Archie e, enquanto ele estava na guerra, trabalhou nas enfermarias e na farmácia de um hospital. Durante as pausas no trabalho, ela enchia cadernos com ideias de histórias e listas de venenos. Em 1919, deu à luz uma filha, Rosalind. Naquele mesmo ano, uma editora convidou Christie para uma reunião depois de ler o manuscrito daquele que se tornaria seu primeiro livro, O Misterioso Caso de Styles.
Além de demonstrar os dons de Christie para criar quebra-cabeças e diálogos, Styles trouxe Hercule Poirot ao mundo. Poirot e Jane Marple, que estreou no final de 1927, são dois dos personagens mais indeléveis que já apareceram na ficção policial. Observar as semelhanças entre esses dois oferece um vislumbre do projeto de Christie.
Tanto Poirot quanto Marple são pessoas que não têm glamour, nem casamento, nem filhos. Seus pontos fortes são a racionalidade, a competência e a falta de escrúpulos. O dândi belga e a tricoteira idosa são sempre subestimados – uma penalidade social que eles convertem em arma mortal. E, mais importante para o público de Christie: nem Poirot nem Marple são prodígios da técnica, o que facilita sua identificação com os leitores. Nas histórias de Arthur Conan Doyle, Sherlock Holmes examinava amostras de sangue, analisava o solo e publicava monografias sobre análise de pegadas. Se Poirot e Marple publicassem monografias, seria sobre bigodes e artesanato.
A vida doméstica de Christie estremeceu na mesma velocidade com que sua carreira decolou. Ela parece ter tido uma atitude errática em relação à maternidade, abandonando Rosalind por meses seguidos e deixando de responder às cartas infelizes da menina. Mais tarde, Christie descreveria Rosalind como alguém que teve “na vida o valioso papel de tentar me desencorajar eternamente, sem sucesso”. Ai.
Worsley tem uma visão mais caridosa sobre o relacionamento. “Tudo isso faria de Agatha aquele alvo infinitamente satisfatório para se mirar, a ‘mãe ruim’? Claro que não, pois não existe ‘mãe ruim’”. (Berthe Bovary gostaria de dizer umas palavrinhas sobre o tema!).
Em 1926, Archie trocou Christie por uma jovem jogadora de golfe chamada Nancy, o que pode ter sido o evento precipitador do notório desaparecimento da autora por onze dias. Depois de cair em depressão causada por Archie, Christie foi dar uma volta. E se envolveu em um acidente de carro. O acidente talvez tenha sido uma tentativa de suicídio. Tudo o que sabemos é que o carro de Christie saiu da estrada colina abaixo e só foi parar em uma cerca viva. Ela então foi para um hotel spa e se registrou com o nome falso de Teresa Neele. (“Neele” era o sobrenome da golfista Nancy).
De todos os relatos disponíveis, parece claro que Christie caiu em uma tristeza profunda após a traição de Archie. Mas elementos de seu comportamento também sugerem uma espécie de surto psicótico. Durante sua estadia no hotel, ela colocou um anúncio no jornal pedindo que “AMIGOS e PARENTES de TERESA NEELE, falecida da África do Sul, por favor COMUNICAREM”. O que significa isso?
Igualmente desconcertante foi o que ocorreu ao final do episódio. Em uma noite de domingo, dois músicos da banda do hotel informaram à polícia local que uma das convidadas se parecia muito com uma certa celebridade desaparecida. A polícia entrou em contato com Archie, que embarcou em um trem rumo ao hotel. Quando ele chegou, Christie o apresentou como seu irmão. Quaisquer que sejam as verdadeiras circunstâncias da separação de Christie com a realidade, a imprensa teve dias agitados. As vendas de seus livros dispararam.
A linha do tempo do desaparecimento que Worsley traça é admiravelmente escrupulosa, mas a estranheza dos eventos não pode ser descartada com frases como “pedido velado de ajuda” (para explicar o bizarro anúncio de jornal de Christie) ou “mecanismo de enfrentamento” (para explicar a introdução de Archie como seu irmão).
De um biógrafo você espera alguém que ache seu objeto imensamente, mas não indiscriminadamente, fascinante. E Worsley não deixa isso claro. A segunda metade do livro é preenchida com informações tediosas. Precisamos de explicações sobre uma carta escrita pelo segundo marido de Christie para sua mãe quando adolescente, anos antes de conhecer a biografada? Ou um despacho de Christie sobre uma compra de móveis em promoção?
Enquanto isso, o ofício da autora é estudado apenas de relance. Lemos sobre o que Christie fez, mas não como fez. Na narrativa de Worsley, os best-sellers surgem tão repentina e facilmente quanto espirros. O livro é um suplemento interessante para um leitor com interesse prévio em Agatha Christie, mas não explica como ela se tornou, segundo alguns, a romancista mais lida que já existiu. Mais um mistério não resolvido.
Agatha Christie: An Elusive Woman
Lucy Worsley
415 páginas - Pegasus Crime - US $29.95
Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU