Amanda Gorman e suas críticas impactantes


Autora escreve sobre mudanças nefastas em nosso clima, pandemia de coronavírus e sua politização em novo livro

Por Julie Lythcott-Haims

Quando você declama o poema da posse presidencial dos Estados Unidos aos 22 anos de idade e instantaneamente se torna um nome conhecido, você pode se perguntar se seu auge já passou. Tal destino não se abateu sobre Amanda Gorman, a poeta laureada com o prêmio National Youth Poet. Em 2021, ela virou uma das poucas poetisas best-seller da história com The Hill We Climb, publicou seu livro infantil Change Sings e recitou um poema no Super Bowl. Você leu certo. Amanda Gorman vem mudando o status quo e está só começando.

Considerando que The Hill We Climb era uma celebração do que é possível fazer com esforço, o trabalho mais recente de Gorman, a coleção de poesia Call Us What We Carry, volta àquilo que nos aflige acima de tudo. O objeto de seu olhar é a recusa da América em assumir e expiar sua história, as mudanças nefastas em nosso clima e a pandemia de coronavírus e sua politização. As palavras de Gorman podem ser lidas como as da Estátua da Liberdade numa discussão acalorada sobre a supremacia branca ou as do defensor público tentando nos libertar do cativeiro: “Não há como contar quem e o que foi mais importante para nós naquela escuridão”.

Amanda Gorman fala na posse de Joe Biden Foto: Washington Post photo by Jonathan Newton
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Gorman é formidável quando traça paralelos entre o passado e nossas preocupações presentes, como no caso das mentiras que se tornaram verdades em registro permanente. (Por exemplo, a “gripe espanhola de 1918” é chamada assim não porque o surto se originou na Espanha, mas porque o país não ocultou seus casos, ela explica). Sobre esses desdobramentos, ela escreve um poema em prosa: “Essa discórdia é tão antiga que nos transforma a todos nós em fósseis, uma história que não é mais inteiramente nossa, mas é só nossa, nunca compreendida”. Ela também pondera sobre as limitações inerentes ao seu papel de mensageira: “Alguns vão odiar nossas palavras porque elas explodem de um rosto como o nosso”.

Em The Surveyed, uma alegoria sofisticada, Gorman compara nosso desejo de segurança e pertencimento nesta era pandêmica e nacionalista às esperanças dos negros migrando para longe do sul de Jim Crow. Em The Truth in One Nation, ela escreve: “O que podemos dizer de um país que se destrói só porque pode? / Uma nação que prefere carbonizar a transformar? / Nossa única palavra para ela é / Casa”. Dá para ouvir o tempo todo ecos de James Baldwin: “Eu amo a América mais do que qualquer outro país do mundo e, exatamente por isso, insisto no direito de criticá-la perpetuamente”.

Mas Gorman não é Baldwin nem Claudia Rankine (cuja influência é evidente na arte de Gorman). Ela é da Geração Z e traz para as páginas a autoconsciência e a franqueza da juventude, com uma prosódia que é ao mesmo tempo lúdica e severa (“Tocar / Encontrar / Ser humano / De novo”). Suas sílabas muitas vezes são homonímicas (“Absolutamente abúlicas, incessantemente enfurecidas”) e nos forçam a perguntar se as palavras significam o que pensamos que significam, ou se ela está só brincando conosco. Seus jogos de palavras se intercalam com o que parece ser uma tese sociológica contada em verso livre. (“Tudo o que sabemos até agora é que estamos muito longe / Daquilo que sabemos”).

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Gorman fala por uma geração que simplesmente deseja a chance de florescer, mas nasceu no meio do entulho de decisões erradas das gerações passadas. Naquele que talvez seja seu poema mais comovente, Alarum, ela escreve: “Nossa perda / colossal e florescida / nunca se perde em nós. Ame a terra / como se tivéssemos fracassado com ela. Para dizer de um jeito mais claro / naufragamos a terra / sujamos o solo / acabamos com o chão. / Escute. Somos um preço alto para / este planeta. / Nosso futuro precisa de nós / alarmados. O homem é um mito / em formação”. O poema se encerra com este apelo aos mais velhos: “Oh, como queremos nossos pais vermelhos e inquietos, tão impetuosos e morrendo de vontade de fazer a diferença quanto nós”.

A maneira como Gorman conseguiu chegar tão jovem a um lugar de tamanha realização é uma história tão cativante quanto sua arte. Ela se descreve como uma “garota negra e magrinha” que nasceu com um distúrbio de processamento auditivo o qual gerou um distúrbio da fala – um começo desfavorável para quem quer fazer da linguagem seu ofício. Mas já na escola primária Gorman começou a aprender a entender, formar e manejar palavras assim como um ferreiro traz calor, bigorna e martelo para moldar seus objetos. Ela descreveu seu processo numa entrevista em 2018: “Eu acordava cedo todos os dias e (...) usava a voz de outro escritor feito uma roupa e logo depois passava para o próximo, até ler uma pilha de dez livros diferentes. Vestia versões efêmeras, copiando suas construções de frases, sua verborragia, seus tons. Depois me desfazia delas e escolhia as melhores características desses estilos, até criar uma voz que fosse minha”. Existe alguma ilustração mais clara do que é necessário para se passar de aprendiz a mestre?

Às vezes Gorman infunde latim no seu inglês, talvez como uma resposta ou até mesmo uma repreensão a alguns colegas brancos que nos sagrados corredores da Universidade de Harvard a criticaram por não estar familiarizada com a língua antiga, como ela disse na entrevista. “Me empurre e me veja crescer”, parece ser seu lema. Ela também defende que a política pandêmica tem tanto a ver com raça quanto com persuasão política: (“De repente nos bateu: / Por que é tão perturbador para grupos privilegiados seguirem / as restrições. / Fazer isso significa sentir uma única vez as correntes que seu poder / amarrou no resto de nós”). Para aqueles que criticam esses pensamentos como poéticas de identidade, Gorman ofereceu de antemão esta sábia resposta: “O pessoal é político. O fato de você ter o luxo de homem branco de escrever todos os seus poemas sobre estar perdido na floresta, de você não ter de se indagar sobre raça e gênero, é uma declaração política por si só”.

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Às vezes é possível ver um desleixo meio estranho para uma escritora tão talentosa e precisa, como quando ela faz uma colagem do diário de um soldado negro do exército americano no front em 1917, em meio a uma guerra mundial e uma epidemia de gripe, e transforma parte da prosa do soldado em versos seus. Apresentando as palavras dessa forma, é impossível dizer o que é dele e o que é dela, e essa imprecisão obscurece o que de outra forma seria uma apresentação fascinante.

Mas a perfeição não é necessária. Sua poesia insiste que não apenas ela, mas todo um país consegue ascender até um lugar de glória, como a rosa de Tupac no meio do asfalto. Seu surgimento neste exato momento é a prova maior de nossa capacidade de prosseguir. “Nós sobrevivemos a nós mesmos”, é o que Gorman diz. Nessas páginas, ao olhar para o futuro, ela é como Washington cruzando o Delaware. “Devemos mudar / Este final em todos os sentidos”.

SERVIÇO:

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  • Call Us What We Carry
  • Amanda Gorman
  • Viking - 240 páginas - US $24.99

* Julie Lythcott-Haims é autora dos livros How to Raise an AdultReal American: A Memoir e Your Turn: How to Be an Adult.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Quando você declama o poema da posse presidencial dos Estados Unidos aos 22 anos de idade e instantaneamente se torna um nome conhecido, você pode se perguntar se seu auge já passou. Tal destino não se abateu sobre Amanda Gorman, a poeta laureada com o prêmio National Youth Poet. Em 2021, ela virou uma das poucas poetisas best-seller da história com The Hill We Climb, publicou seu livro infantil Change Sings e recitou um poema no Super Bowl. Você leu certo. Amanda Gorman vem mudando o status quo e está só começando.

Considerando que The Hill We Climb era uma celebração do que é possível fazer com esforço, o trabalho mais recente de Gorman, a coleção de poesia Call Us What We Carry, volta àquilo que nos aflige acima de tudo. O objeto de seu olhar é a recusa da América em assumir e expiar sua história, as mudanças nefastas em nosso clima e a pandemia de coronavírus e sua politização. As palavras de Gorman podem ser lidas como as da Estátua da Liberdade numa discussão acalorada sobre a supremacia branca ou as do defensor público tentando nos libertar do cativeiro: “Não há como contar quem e o que foi mais importante para nós naquela escuridão”.

Amanda Gorman fala na posse de Joe Biden Foto: Washington Post photo by Jonathan Newton

Gorman é formidável quando traça paralelos entre o passado e nossas preocupações presentes, como no caso das mentiras que se tornaram verdades em registro permanente. (Por exemplo, a “gripe espanhola de 1918” é chamada assim não porque o surto se originou na Espanha, mas porque o país não ocultou seus casos, ela explica). Sobre esses desdobramentos, ela escreve um poema em prosa: “Essa discórdia é tão antiga que nos transforma a todos nós em fósseis, uma história que não é mais inteiramente nossa, mas é só nossa, nunca compreendida”. Ela também pondera sobre as limitações inerentes ao seu papel de mensageira: “Alguns vão odiar nossas palavras porque elas explodem de um rosto como o nosso”.

Em The Surveyed, uma alegoria sofisticada, Gorman compara nosso desejo de segurança e pertencimento nesta era pandêmica e nacionalista às esperanças dos negros migrando para longe do sul de Jim Crow. Em The Truth in One Nation, ela escreve: “O que podemos dizer de um país que se destrói só porque pode? / Uma nação que prefere carbonizar a transformar? / Nossa única palavra para ela é / Casa”. Dá para ouvir o tempo todo ecos de James Baldwin: “Eu amo a América mais do que qualquer outro país do mundo e, exatamente por isso, insisto no direito de criticá-la perpetuamente”.

Mas Gorman não é Baldwin nem Claudia Rankine (cuja influência é evidente na arte de Gorman). Ela é da Geração Z e traz para as páginas a autoconsciência e a franqueza da juventude, com uma prosódia que é ao mesmo tempo lúdica e severa (“Tocar / Encontrar / Ser humano / De novo”). Suas sílabas muitas vezes são homonímicas (“Absolutamente abúlicas, incessantemente enfurecidas”) e nos forçam a perguntar se as palavras significam o que pensamos que significam, ou se ela está só brincando conosco. Seus jogos de palavras se intercalam com o que parece ser uma tese sociológica contada em verso livre. (“Tudo o que sabemos até agora é que estamos muito longe / Daquilo que sabemos”).

Gorman fala por uma geração que simplesmente deseja a chance de florescer, mas nasceu no meio do entulho de decisões erradas das gerações passadas. Naquele que talvez seja seu poema mais comovente, Alarum, ela escreve: “Nossa perda / colossal e florescida / nunca se perde em nós. Ame a terra / como se tivéssemos fracassado com ela. Para dizer de um jeito mais claro / naufragamos a terra / sujamos o solo / acabamos com o chão. / Escute. Somos um preço alto para / este planeta. / Nosso futuro precisa de nós / alarmados. O homem é um mito / em formação”. O poema se encerra com este apelo aos mais velhos: “Oh, como queremos nossos pais vermelhos e inquietos, tão impetuosos e morrendo de vontade de fazer a diferença quanto nós”.

A maneira como Gorman conseguiu chegar tão jovem a um lugar de tamanha realização é uma história tão cativante quanto sua arte. Ela se descreve como uma “garota negra e magrinha” que nasceu com um distúrbio de processamento auditivo o qual gerou um distúrbio da fala – um começo desfavorável para quem quer fazer da linguagem seu ofício. Mas já na escola primária Gorman começou a aprender a entender, formar e manejar palavras assim como um ferreiro traz calor, bigorna e martelo para moldar seus objetos. Ela descreveu seu processo numa entrevista em 2018: “Eu acordava cedo todos os dias e (...) usava a voz de outro escritor feito uma roupa e logo depois passava para o próximo, até ler uma pilha de dez livros diferentes. Vestia versões efêmeras, copiando suas construções de frases, sua verborragia, seus tons. Depois me desfazia delas e escolhia as melhores características desses estilos, até criar uma voz que fosse minha”. Existe alguma ilustração mais clara do que é necessário para se passar de aprendiz a mestre?

Às vezes Gorman infunde latim no seu inglês, talvez como uma resposta ou até mesmo uma repreensão a alguns colegas brancos que nos sagrados corredores da Universidade de Harvard a criticaram por não estar familiarizada com a língua antiga, como ela disse na entrevista. “Me empurre e me veja crescer”, parece ser seu lema. Ela também defende que a política pandêmica tem tanto a ver com raça quanto com persuasão política: (“De repente nos bateu: / Por que é tão perturbador para grupos privilegiados seguirem / as restrições. / Fazer isso significa sentir uma única vez as correntes que seu poder / amarrou no resto de nós”). Para aqueles que criticam esses pensamentos como poéticas de identidade, Gorman ofereceu de antemão esta sábia resposta: “O pessoal é político. O fato de você ter o luxo de homem branco de escrever todos os seus poemas sobre estar perdido na floresta, de você não ter de se indagar sobre raça e gênero, é uma declaração política por si só”.

Às vezes é possível ver um desleixo meio estranho para uma escritora tão talentosa e precisa, como quando ela faz uma colagem do diário de um soldado negro do exército americano no front em 1917, em meio a uma guerra mundial e uma epidemia de gripe, e transforma parte da prosa do soldado em versos seus. Apresentando as palavras dessa forma, é impossível dizer o que é dele e o que é dela, e essa imprecisão obscurece o que de outra forma seria uma apresentação fascinante.

Mas a perfeição não é necessária. Sua poesia insiste que não apenas ela, mas todo um país consegue ascender até um lugar de glória, como a rosa de Tupac no meio do asfalto. Seu surgimento neste exato momento é a prova maior de nossa capacidade de prosseguir. “Nós sobrevivemos a nós mesmos”, é o que Gorman diz. Nessas páginas, ao olhar para o futuro, ela é como Washington cruzando o Delaware. “Devemos mudar / Este final em todos os sentidos”.

SERVIÇO:

  • Call Us What We Carry
  • Amanda Gorman
  • Viking - 240 páginas - US $24.99

* Julie Lythcott-Haims é autora dos livros How to Raise an AdultReal American: A Memoir e Your Turn: How to Be an Adult.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Quando você declama o poema da posse presidencial dos Estados Unidos aos 22 anos de idade e instantaneamente se torna um nome conhecido, você pode se perguntar se seu auge já passou. Tal destino não se abateu sobre Amanda Gorman, a poeta laureada com o prêmio National Youth Poet. Em 2021, ela virou uma das poucas poetisas best-seller da história com The Hill We Climb, publicou seu livro infantil Change Sings e recitou um poema no Super Bowl. Você leu certo. Amanda Gorman vem mudando o status quo e está só começando.

Considerando que The Hill We Climb era uma celebração do que é possível fazer com esforço, o trabalho mais recente de Gorman, a coleção de poesia Call Us What We Carry, volta àquilo que nos aflige acima de tudo. O objeto de seu olhar é a recusa da América em assumir e expiar sua história, as mudanças nefastas em nosso clima e a pandemia de coronavírus e sua politização. As palavras de Gorman podem ser lidas como as da Estátua da Liberdade numa discussão acalorada sobre a supremacia branca ou as do defensor público tentando nos libertar do cativeiro: “Não há como contar quem e o que foi mais importante para nós naquela escuridão”.

Amanda Gorman fala na posse de Joe Biden Foto: Washington Post photo by Jonathan Newton

Gorman é formidável quando traça paralelos entre o passado e nossas preocupações presentes, como no caso das mentiras que se tornaram verdades em registro permanente. (Por exemplo, a “gripe espanhola de 1918” é chamada assim não porque o surto se originou na Espanha, mas porque o país não ocultou seus casos, ela explica). Sobre esses desdobramentos, ela escreve um poema em prosa: “Essa discórdia é tão antiga que nos transforma a todos nós em fósseis, uma história que não é mais inteiramente nossa, mas é só nossa, nunca compreendida”. Ela também pondera sobre as limitações inerentes ao seu papel de mensageira: “Alguns vão odiar nossas palavras porque elas explodem de um rosto como o nosso”.

Em The Surveyed, uma alegoria sofisticada, Gorman compara nosso desejo de segurança e pertencimento nesta era pandêmica e nacionalista às esperanças dos negros migrando para longe do sul de Jim Crow. Em The Truth in One Nation, ela escreve: “O que podemos dizer de um país que se destrói só porque pode? / Uma nação que prefere carbonizar a transformar? / Nossa única palavra para ela é / Casa”. Dá para ouvir o tempo todo ecos de James Baldwin: “Eu amo a América mais do que qualquer outro país do mundo e, exatamente por isso, insisto no direito de criticá-la perpetuamente”.

Mas Gorman não é Baldwin nem Claudia Rankine (cuja influência é evidente na arte de Gorman). Ela é da Geração Z e traz para as páginas a autoconsciência e a franqueza da juventude, com uma prosódia que é ao mesmo tempo lúdica e severa (“Tocar / Encontrar / Ser humano / De novo”). Suas sílabas muitas vezes são homonímicas (“Absolutamente abúlicas, incessantemente enfurecidas”) e nos forçam a perguntar se as palavras significam o que pensamos que significam, ou se ela está só brincando conosco. Seus jogos de palavras se intercalam com o que parece ser uma tese sociológica contada em verso livre. (“Tudo o que sabemos até agora é que estamos muito longe / Daquilo que sabemos”).

Gorman fala por uma geração que simplesmente deseja a chance de florescer, mas nasceu no meio do entulho de decisões erradas das gerações passadas. Naquele que talvez seja seu poema mais comovente, Alarum, ela escreve: “Nossa perda / colossal e florescida / nunca se perde em nós. Ame a terra / como se tivéssemos fracassado com ela. Para dizer de um jeito mais claro / naufragamos a terra / sujamos o solo / acabamos com o chão. / Escute. Somos um preço alto para / este planeta. / Nosso futuro precisa de nós / alarmados. O homem é um mito / em formação”. O poema se encerra com este apelo aos mais velhos: “Oh, como queremos nossos pais vermelhos e inquietos, tão impetuosos e morrendo de vontade de fazer a diferença quanto nós”.

A maneira como Gorman conseguiu chegar tão jovem a um lugar de tamanha realização é uma história tão cativante quanto sua arte. Ela se descreve como uma “garota negra e magrinha” que nasceu com um distúrbio de processamento auditivo o qual gerou um distúrbio da fala – um começo desfavorável para quem quer fazer da linguagem seu ofício. Mas já na escola primária Gorman começou a aprender a entender, formar e manejar palavras assim como um ferreiro traz calor, bigorna e martelo para moldar seus objetos. Ela descreveu seu processo numa entrevista em 2018: “Eu acordava cedo todos os dias e (...) usava a voz de outro escritor feito uma roupa e logo depois passava para o próximo, até ler uma pilha de dez livros diferentes. Vestia versões efêmeras, copiando suas construções de frases, sua verborragia, seus tons. Depois me desfazia delas e escolhia as melhores características desses estilos, até criar uma voz que fosse minha”. Existe alguma ilustração mais clara do que é necessário para se passar de aprendiz a mestre?

Às vezes Gorman infunde latim no seu inglês, talvez como uma resposta ou até mesmo uma repreensão a alguns colegas brancos que nos sagrados corredores da Universidade de Harvard a criticaram por não estar familiarizada com a língua antiga, como ela disse na entrevista. “Me empurre e me veja crescer”, parece ser seu lema. Ela também defende que a política pandêmica tem tanto a ver com raça quanto com persuasão política: (“De repente nos bateu: / Por que é tão perturbador para grupos privilegiados seguirem / as restrições. / Fazer isso significa sentir uma única vez as correntes que seu poder / amarrou no resto de nós”). Para aqueles que criticam esses pensamentos como poéticas de identidade, Gorman ofereceu de antemão esta sábia resposta: “O pessoal é político. O fato de você ter o luxo de homem branco de escrever todos os seus poemas sobre estar perdido na floresta, de você não ter de se indagar sobre raça e gênero, é uma declaração política por si só”.

Às vezes é possível ver um desleixo meio estranho para uma escritora tão talentosa e precisa, como quando ela faz uma colagem do diário de um soldado negro do exército americano no front em 1917, em meio a uma guerra mundial e uma epidemia de gripe, e transforma parte da prosa do soldado em versos seus. Apresentando as palavras dessa forma, é impossível dizer o que é dele e o que é dela, e essa imprecisão obscurece o que de outra forma seria uma apresentação fascinante.

Mas a perfeição não é necessária. Sua poesia insiste que não apenas ela, mas todo um país consegue ascender até um lugar de glória, como a rosa de Tupac no meio do asfalto. Seu surgimento neste exato momento é a prova maior de nossa capacidade de prosseguir. “Nós sobrevivemos a nós mesmos”, é o que Gorman diz. Nessas páginas, ao olhar para o futuro, ela é como Washington cruzando o Delaware. “Devemos mudar / Este final em todos os sentidos”.

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  • Call Us What We Carry
  • Amanda Gorman
  • Viking - 240 páginas - US $24.99

* Julie Lythcott-Haims é autora dos livros How to Raise an AdultReal American: A Memoir e Your Turn: How to Be an Adult.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Quando você declama o poema da posse presidencial dos Estados Unidos aos 22 anos de idade e instantaneamente se torna um nome conhecido, você pode se perguntar se seu auge já passou. Tal destino não se abateu sobre Amanda Gorman, a poeta laureada com o prêmio National Youth Poet. Em 2021, ela virou uma das poucas poetisas best-seller da história com The Hill We Climb, publicou seu livro infantil Change Sings e recitou um poema no Super Bowl. Você leu certo. Amanda Gorman vem mudando o status quo e está só começando.

Considerando que The Hill We Climb era uma celebração do que é possível fazer com esforço, o trabalho mais recente de Gorman, a coleção de poesia Call Us What We Carry, volta àquilo que nos aflige acima de tudo. O objeto de seu olhar é a recusa da América em assumir e expiar sua história, as mudanças nefastas em nosso clima e a pandemia de coronavírus e sua politização. As palavras de Gorman podem ser lidas como as da Estátua da Liberdade numa discussão acalorada sobre a supremacia branca ou as do defensor público tentando nos libertar do cativeiro: “Não há como contar quem e o que foi mais importante para nós naquela escuridão”.

Amanda Gorman fala na posse de Joe Biden Foto: Washington Post photo by Jonathan Newton

Gorman é formidável quando traça paralelos entre o passado e nossas preocupações presentes, como no caso das mentiras que se tornaram verdades em registro permanente. (Por exemplo, a “gripe espanhola de 1918” é chamada assim não porque o surto se originou na Espanha, mas porque o país não ocultou seus casos, ela explica). Sobre esses desdobramentos, ela escreve um poema em prosa: “Essa discórdia é tão antiga que nos transforma a todos nós em fósseis, uma história que não é mais inteiramente nossa, mas é só nossa, nunca compreendida”. Ela também pondera sobre as limitações inerentes ao seu papel de mensageira: “Alguns vão odiar nossas palavras porque elas explodem de um rosto como o nosso”.

Em The Surveyed, uma alegoria sofisticada, Gorman compara nosso desejo de segurança e pertencimento nesta era pandêmica e nacionalista às esperanças dos negros migrando para longe do sul de Jim Crow. Em The Truth in One Nation, ela escreve: “O que podemos dizer de um país que se destrói só porque pode? / Uma nação que prefere carbonizar a transformar? / Nossa única palavra para ela é / Casa”. Dá para ouvir o tempo todo ecos de James Baldwin: “Eu amo a América mais do que qualquer outro país do mundo e, exatamente por isso, insisto no direito de criticá-la perpetuamente”.

Mas Gorman não é Baldwin nem Claudia Rankine (cuja influência é evidente na arte de Gorman). Ela é da Geração Z e traz para as páginas a autoconsciência e a franqueza da juventude, com uma prosódia que é ao mesmo tempo lúdica e severa (“Tocar / Encontrar / Ser humano / De novo”). Suas sílabas muitas vezes são homonímicas (“Absolutamente abúlicas, incessantemente enfurecidas”) e nos forçam a perguntar se as palavras significam o que pensamos que significam, ou se ela está só brincando conosco. Seus jogos de palavras se intercalam com o que parece ser uma tese sociológica contada em verso livre. (“Tudo o que sabemos até agora é que estamos muito longe / Daquilo que sabemos”).

Gorman fala por uma geração que simplesmente deseja a chance de florescer, mas nasceu no meio do entulho de decisões erradas das gerações passadas. Naquele que talvez seja seu poema mais comovente, Alarum, ela escreve: “Nossa perda / colossal e florescida / nunca se perde em nós. Ame a terra / como se tivéssemos fracassado com ela. Para dizer de um jeito mais claro / naufragamos a terra / sujamos o solo / acabamos com o chão. / Escute. Somos um preço alto para / este planeta. / Nosso futuro precisa de nós / alarmados. O homem é um mito / em formação”. O poema se encerra com este apelo aos mais velhos: “Oh, como queremos nossos pais vermelhos e inquietos, tão impetuosos e morrendo de vontade de fazer a diferença quanto nós”.

A maneira como Gorman conseguiu chegar tão jovem a um lugar de tamanha realização é uma história tão cativante quanto sua arte. Ela se descreve como uma “garota negra e magrinha” que nasceu com um distúrbio de processamento auditivo o qual gerou um distúrbio da fala – um começo desfavorável para quem quer fazer da linguagem seu ofício. Mas já na escola primária Gorman começou a aprender a entender, formar e manejar palavras assim como um ferreiro traz calor, bigorna e martelo para moldar seus objetos. Ela descreveu seu processo numa entrevista em 2018: “Eu acordava cedo todos os dias e (...) usava a voz de outro escritor feito uma roupa e logo depois passava para o próximo, até ler uma pilha de dez livros diferentes. Vestia versões efêmeras, copiando suas construções de frases, sua verborragia, seus tons. Depois me desfazia delas e escolhia as melhores características desses estilos, até criar uma voz que fosse minha”. Existe alguma ilustração mais clara do que é necessário para se passar de aprendiz a mestre?

Às vezes Gorman infunde latim no seu inglês, talvez como uma resposta ou até mesmo uma repreensão a alguns colegas brancos que nos sagrados corredores da Universidade de Harvard a criticaram por não estar familiarizada com a língua antiga, como ela disse na entrevista. “Me empurre e me veja crescer”, parece ser seu lema. Ela também defende que a política pandêmica tem tanto a ver com raça quanto com persuasão política: (“De repente nos bateu: / Por que é tão perturbador para grupos privilegiados seguirem / as restrições. / Fazer isso significa sentir uma única vez as correntes que seu poder / amarrou no resto de nós”). Para aqueles que criticam esses pensamentos como poéticas de identidade, Gorman ofereceu de antemão esta sábia resposta: “O pessoal é político. O fato de você ter o luxo de homem branco de escrever todos os seus poemas sobre estar perdido na floresta, de você não ter de se indagar sobre raça e gênero, é uma declaração política por si só”.

Às vezes é possível ver um desleixo meio estranho para uma escritora tão talentosa e precisa, como quando ela faz uma colagem do diário de um soldado negro do exército americano no front em 1917, em meio a uma guerra mundial e uma epidemia de gripe, e transforma parte da prosa do soldado em versos seus. Apresentando as palavras dessa forma, é impossível dizer o que é dele e o que é dela, e essa imprecisão obscurece o que de outra forma seria uma apresentação fascinante.

Mas a perfeição não é necessária. Sua poesia insiste que não apenas ela, mas todo um país consegue ascender até um lugar de glória, como a rosa de Tupac no meio do asfalto. Seu surgimento neste exato momento é a prova maior de nossa capacidade de prosseguir. “Nós sobrevivemos a nós mesmos”, é o que Gorman diz. Nessas páginas, ao olhar para o futuro, ela é como Washington cruzando o Delaware. “Devemos mudar / Este final em todos os sentidos”.

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  • Call Us What We Carry
  • Amanda Gorman
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* Julie Lythcott-Haims é autora dos livros How to Raise an AdultReal American: A Memoir e Your Turn: How to Be an Adult.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Quando você declama o poema da posse presidencial dos Estados Unidos aos 22 anos de idade e instantaneamente se torna um nome conhecido, você pode se perguntar se seu auge já passou. Tal destino não se abateu sobre Amanda Gorman, a poeta laureada com o prêmio National Youth Poet. Em 2021, ela virou uma das poucas poetisas best-seller da história com The Hill We Climb, publicou seu livro infantil Change Sings e recitou um poema no Super Bowl. Você leu certo. Amanda Gorman vem mudando o status quo e está só começando.

Considerando que The Hill We Climb era uma celebração do que é possível fazer com esforço, o trabalho mais recente de Gorman, a coleção de poesia Call Us What We Carry, volta àquilo que nos aflige acima de tudo. O objeto de seu olhar é a recusa da América em assumir e expiar sua história, as mudanças nefastas em nosso clima e a pandemia de coronavírus e sua politização. As palavras de Gorman podem ser lidas como as da Estátua da Liberdade numa discussão acalorada sobre a supremacia branca ou as do defensor público tentando nos libertar do cativeiro: “Não há como contar quem e o que foi mais importante para nós naquela escuridão”.

Amanda Gorman fala na posse de Joe Biden Foto: Washington Post photo by Jonathan Newton

Gorman é formidável quando traça paralelos entre o passado e nossas preocupações presentes, como no caso das mentiras que se tornaram verdades em registro permanente. (Por exemplo, a “gripe espanhola de 1918” é chamada assim não porque o surto se originou na Espanha, mas porque o país não ocultou seus casos, ela explica). Sobre esses desdobramentos, ela escreve um poema em prosa: “Essa discórdia é tão antiga que nos transforma a todos nós em fósseis, uma história que não é mais inteiramente nossa, mas é só nossa, nunca compreendida”. Ela também pondera sobre as limitações inerentes ao seu papel de mensageira: “Alguns vão odiar nossas palavras porque elas explodem de um rosto como o nosso”.

Em The Surveyed, uma alegoria sofisticada, Gorman compara nosso desejo de segurança e pertencimento nesta era pandêmica e nacionalista às esperanças dos negros migrando para longe do sul de Jim Crow. Em The Truth in One Nation, ela escreve: “O que podemos dizer de um país que se destrói só porque pode? / Uma nação que prefere carbonizar a transformar? / Nossa única palavra para ela é / Casa”. Dá para ouvir o tempo todo ecos de James Baldwin: “Eu amo a América mais do que qualquer outro país do mundo e, exatamente por isso, insisto no direito de criticá-la perpetuamente”.

Mas Gorman não é Baldwin nem Claudia Rankine (cuja influência é evidente na arte de Gorman). Ela é da Geração Z e traz para as páginas a autoconsciência e a franqueza da juventude, com uma prosódia que é ao mesmo tempo lúdica e severa (“Tocar / Encontrar / Ser humano / De novo”). Suas sílabas muitas vezes são homonímicas (“Absolutamente abúlicas, incessantemente enfurecidas”) e nos forçam a perguntar se as palavras significam o que pensamos que significam, ou se ela está só brincando conosco. Seus jogos de palavras se intercalam com o que parece ser uma tese sociológica contada em verso livre. (“Tudo o que sabemos até agora é que estamos muito longe / Daquilo que sabemos”).

Gorman fala por uma geração que simplesmente deseja a chance de florescer, mas nasceu no meio do entulho de decisões erradas das gerações passadas. Naquele que talvez seja seu poema mais comovente, Alarum, ela escreve: “Nossa perda / colossal e florescida / nunca se perde em nós. Ame a terra / como se tivéssemos fracassado com ela. Para dizer de um jeito mais claro / naufragamos a terra / sujamos o solo / acabamos com o chão. / Escute. Somos um preço alto para / este planeta. / Nosso futuro precisa de nós / alarmados. O homem é um mito / em formação”. O poema se encerra com este apelo aos mais velhos: “Oh, como queremos nossos pais vermelhos e inquietos, tão impetuosos e morrendo de vontade de fazer a diferença quanto nós”.

A maneira como Gorman conseguiu chegar tão jovem a um lugar de tamanha realização é uma história tão cativante quanto sua arte. Ela se descreve como uma “garota negra e magrinha” que nasceu com um distúrbio de processamento auditivo o qual gerou um distúrbio da fala – um começo desfavorável para quem quer fazer da linguagem seu ofício. Mas já na escola primária Gorman começou a aprender a entender, formar e manejar palavras assim como um ferreiro traz calor, bigorna e martelo para moldar seus objetos. Ela descreveu seu processo numa entrevista em 2018: “Eu acordava cedo todos os dias e (...) usava a voz de outro escritor feito uma roupa e logo depois passava para o próximo, até ler uma pilha de dez livros diferentes. Vestia versões efêmeras, copiando suas construções de frases, sua verborragia, seus tons. Depois me desfazia delas e escolhia as melhores características desses estilos, até criar uma voz que fosse minha”. Existe alguma ilustração mais clara do que é necessário para se passar de aprendiz a mestre?

Às vezes Gorman infunde latim no seu inglês, talvez como uma resposta ou até mesmo uma repreensão a alguns colegas brancos que nos sagrados corredores da Universidade de Harvard a criticaram por não estar familiarizada com a língua antiga, como ela disse na entrevista. “Me empurre e me veja crescer”, parece ser seu lema. Ela também defende que a política pandêmica tem tanto a ver com raça quanto com persuasão política: (“De repente nos bateu: / Por que é tão perturbador para grupos privilegiados seguirem / as restrições. / Fazer isso significa sentir uma única vez as correntes que seu poder / amarrou no resto de nós”). Para aqueles que criticam esses pensamentos como poéticas de identidade, Gorman ofereceu de antemão esta sábia resposta: “O pessoal é político. O fato de você ter o luxo de homem branco de escrever todos os seus poemas sobre estar perdido na floresta, de você não ter de se indagar sobre raça e gênero, é uma declaração política por si só”.

Às vezes é possível ver um desleixo meio estranho para uma escritora tão talentosa e precisa, como quando ela faz uma colagem do diário de um soldado negro do exército americano no front em 1917, em meio a uma guerra mundial e uma epidemia de gripe, e transforma parte da prosa do soldado em versos seus. Apresentando as palavras dessa forma, é impossível dizer o que é dele e o que é dela, e essa imprecisão obscurece o que de outra forma seria uma apresentação fascinante.

Mas a perfeição não é necessária. Sua poesia insiste que não apenas ela, mas todo um país consegue ascender até um lugar de glória, como a rosa de Tupac no meio do asfalto. Seu surgimento neste exato momento é a prova maior de nossa capacidade de prosseguir. “Nós sobrevivemos a nós mesmos”, é o que Gorman diz. Nessas páginas, ao olhar para o futuro, ela é como Washington cruzando o Delaware. “Devemos mudar / Este final em todos os sentidos”.

SERVIÇO:

  • Call Us What We Carry
  • Amanda Gorman
  • Viking - 240 páginas - US $24.99

* Julie Lythcott-Haims é autora dos livros How to Raise an AdultReal American: A Memoir e Your Turn: How to Be an Adult.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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