Em Eufrates, André de Leones chega à maturidade literária já antevista em seus romances anteriores, como o conciso e perturbador Dentes Negros (2011), o épico existencialista Terra de Casas Vazias (2013) e a releitura inusitada da obra-prima de Raduan Nassar, Lavoura Arcaica, somada ao roman dûr de Georges Simenon, feita em Abaixo do Paraíso (2016). Se nesses livros tínhamos o crescimento paulatino de um escritor que incorporava suas influências romanescas, cinematográficas e musicais em histórias que articulavam uma forma muito peculiar de paralisia existencial, agora temos um artista com perfeito controle dramatúrgico dos seus meios de expressão – e alguém que, no meio da confusão dominante no Brasil, consegue dar um pouco de paz aos seus personagens.
Além disso, De Leones mostra um “tesão estilístico” que poucos contemporâneos da sua geração podem se gabar – com a possível exceção de Joca Reiners Terron em seu estupendo Noite Dentro da Noite (2017) e Daniel Pellizzari com a pérola que é Digam à Satã que o Recado Foi Entendido (2013). Eufrates é praticamente enciclopédico na fome de querer abarcar todos os estilos possíveis da literatura feita nos últimos 25 anos – do diálogo cifrado e incompleto de um Don DeLillo à inquietação hebraica de Aharon Appelfeld, passando pela descrição minuciosa e alucinada de David Foster Wallace, até a grande poesia contemporânea em língua portuguesa (não à toa que o título do romance vem dos versos de Ruy Bello), sem deixar de lado o amor que o escritor goiano tem pelo mestre do “romance total”, o irlandês James Joyce.
Contudo, felizmente, Eufrates não é um “romance total”. Digo “felizmente” porque sua estrutura extremamente fragmentada – inspirada, sem dúvida, na mesma moldura dramática feita por DeLillo em Submundo (1998), o Ulisses da geração dos anos 2000 – é um “correlato objetivo” (a expressão é de T.S. Eliot) que se encaixa perfeitamente ao drama que De Leones narra em seu livro.
No caso, o drama é a história de dois amigos – Moshe e Jonas – que, de 1999 a 2013, ora têm seus encontros com o destino, ora suas desavenças com os amores do passado, ora seus flertes com o sexo e as drogas, sempre em busca de uma transcendência que nunca chega. O resultado direto é a ação da acídia na alma de cada um, uma paralisia do espírito sobre o que realmente importa em suas vidas. De Leones mostra suas habilidades dramáticas, ao jogar este impasse em cada “correlato objetivo” que Moshe ou Jonas encontram pelo caminho: um amigo de infância (João Gabriel, o melhor jogador de basquete da literatura nacional), a imagem do deserto de Negev, em Israel, o retorno de uma namorada que faz uma escolha inusitada ou então a presença do pai numa reconciliação sobre o que sempre parecia estar perdido.
Em Eufrates, o drama das paralisias particulares de Moshe e Jonas parece ser uma amostra do caos que também afeta o Brasil como nação. E, aqui, o que parece ser um fracasso do “romance total” se revela como sua maior virtude. De Leones criou um livro incompleto, fragmentado e caótico porque ele pratica a arte da literatura naquilo que Milan Kundera afirmava ser um “novo modo de conhecer a realidade objetiva”. Trata-se de uma ousadia rara na nossa literatura, pois ao fazer uma síntese perturbadora de dois filósofos aparentemente antípodas – o brasileiro Paulo Eduardo Arantes e o austríaco Eric Voegelin – reflete a falta de estrutura que é a própria essência do brasileiro, um mero sobrevivente neste “novo tempo do mundo”.
Em uma conversa apaziguadora com seu pai, Moshe explica o que é o Brasil, enquanto assistem às revoltas de junho de 2013. “O cidadão brasileiro não é cidadão”, diz, “porque não passa de um pedestre, de um passeador do concreto, da sujeira, da violência. Ele vive como que no exílio, ou em um limbo, porque está na cidade, mas não constitui a cidade, não é visto com ela, não é vista por ela, e vice-versa. Eu acho que esses gritos ficam ecoando no vazio, indo para lugar nenhum, e se perdem no concreto, morrem nele, incluindo os que, como eu, nem estão lá, mas na calçada ou dentro de casa mesmo, vendo tudo pela televisão e só botando a cabeça na janela pra ver o circo pegar fogo.”
É nessa certeza do exílio que Eufrates se movimenta sinuosamente, igual ao rio que o inspira, naquela “vida que plenamente existe só na nossa voz”. Se seus personagens ainda não viram a “terceira margem” de Guimarães Rosa, pelo menos descobrem alguma harmonia no meio do caos onde vivem. E são capazes desta façanha graças aos poderes ficcionais de André de Leones. Igual a um demiurgo, ele cria um mundo desolado e pleno de maravilhas inexploradas – e, justamente por causa disso, nos reconcilia com os fragmentos que, desde sempre, escoramos contra as nossas ruínas. *Martim Vasques da Cunha é autor de 'Crise e Utopia - O Dilema de Thomas More' (Vide Editorial) e 'A Poeira da Glória - Uma (Inesperada) História da Literatura Brasileira (Record)