Anne Carson ganha novas edições no Brasil


Escritora desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários, deixando o leitor em dúvida se lê um poema em prosa ou um ensaio

Por Leonardo Piana

Um dia de manhã cedo faltavam palavras. Antes disso, nenhuma palavra. Havia fatos, havia rostos. Numa boa história, diz Aristóteles, tudo o que acontece é impelido por alguma outra coisa.” Assim começa a introdução de Anne Carson para o seu Falas Curtas, livro de poemas em prosa publicado originalmente há 30 anos, em 1992, por uma editora independente no Canadá, e lançado agora no Brasil pela Relicário simultaneamente a outro lançamento, Eros, da Editora Bazar do Tempo.

De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: “Comecei a anotar tudo o que era dito”. “Rastros e vestígios” são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

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A escritora e poeta canadense Anne Carson, autora de 'Autobiografia do Vermelho' e 'Falas Curtas' Foto: Relicário

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

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Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta Sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: “Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ‘cidades’ quisesse dizer “embuste”, por exemplo?”.

A poeta Sylvia Plath é uma das referências de Anne Carson, assim como Van Gogh e a cultural oriental  Foto: Knopf Books

Talvez por isso os fascículos possam ser lidos também como confissões. “Em toda história que conto chega um momento que não consigo enxergar mais à frente”, escreve na sua Fala Curta Sobre O Homo Sapiens. Lemos como quem espia pelo buraco da fechadura de um quarto. E no final descobrimos que o quarto era, esse tempo todo, o nosso.

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Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

Retrato do escritor francês Marcel Proust, outra referência literária na obra da autora Foto: Acervo Estadão

O Método Albertine (Edições Jabuticaba, 2017), por exemplo, primeiro livro da autora publicado no Brasil, sustenta-se pela paixão de Carson por Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – em especial por Albertine, aprisionada pelo narrador no volume A Prisioneira. Albertine é a personagem que mais aparece no romance de autor francês – 2.363 vezes, em 807 páginas, adormecida em pelo menos 19% delas. Os dados estão no texto e lhe dão o tom bem-vindo de um exame obsessivo.

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Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 107 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas – apesar da singeleza da linguagem – parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa. Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: “Quem é você?”. Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente.

FALAS CURTAS

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ANNE CARSON

RELICÁRIO

108 PÁGINAS

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R$ 52,90

*

EROS - O DOCE AMARGO

ANNE CARSON

BAZAR DO TEMPO

264 PÁGINAS

R$ 78

Um dia de manhã cedo faltavam palavras. Antes disso, nenhuma palavra. Havia fatos, havia rostos. Numa boa história, diz Aristóteles, tudo o que acontece é impelido por alguma outra coisa.” Assim começa a introdução de Anne Carson para o seu Falas Curtas, livro de poemas em prosa publicado originalmente há 30 anos, em 1992, por uma editora independente no Canadá, e lançado agora no Brasil pela Relicário simultaneamente a outro lançamento, Eros, da Editora Bazar do Tempo.

De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: “Comecei a anotar tudo o que era dito”. “Rastros e vestígios” são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

A escritora e poeta canadense Anne Carson, autora de 'Autobiografia do Vermelho' e 'Falas Curtas' Foto: Relicário

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta Sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: “Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ‘cidades’ quisesse dizer “embuste”, por exemplo?”.

A poeta Sylvia Plath é uma das referências de Anne Carson, assim como Van Gogh e a cultural oriental  Foto: Knopf Books

Talvez por isso os fascículos possam ser lidos também como confissões. “Em toda história que conto chega um momento que não consigo enxergar mais à frente”, escreve na sua Fala Curta Sobre O Homo Sapiens. Lemos como quem espia pelo buraco da fechadura de um quarto. E no final descobrimos que o quarto era, esse tempo todo, o nosso.

Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

Retrato do escritor francês Marcel Proust, outra referência literária na obra da autora Foto: Acervo Estadão

O Método Albertine (Edições Jabuticaba, 2017), por exemplo, primeiro livro da autora publicado no Brasil, sustenta-se pela paixão de Carson por Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – em especial por Albertine, aprisionada pelo narrador no volume A Prisioneira. Albertine é a personagem que mais aparece no romance de autor francês – 2.363 vezes, em 807 páginas, adormecida em pelo menos 19% delas. Os dados estão no texto e lhe dão o tom bem-vindo de um exame obsessivo.

Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 107 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas – apesar da singeleza da linguagem – parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa. Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: “Quem é você?”. Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente.

FALAS CURTAS

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De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: “Comecei a anotar tudo o que era dito”. “Rastros e vestígios” são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

A escritora e poeta canadense Anne Carson, autora de 'Autobiografia do Vermelho' e 'Falas Curtas' Foto: Relicário

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta Sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: “Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ‘cidades’ quisesse dizer “embuste”, por exemplo?”.

A poeta Sylvia Plath é uma das referências de Anne Carson, assim como Van Gogh e a cultural oriental  Foto: Knopf Books

Talvez por isso os fascículos possam ser lidos também como confissões. “Em toda história que conto chega um momento que não consigo enxergar mais à frente”, escreve na sua Fala Curta Sobre O Homo Sapiens. Lemos como quem espia pelo buraco da fechadura de um quarto. E no final descobrimos que o quarto era, esse tempo todo, o nosso.

Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

Retrato do escritor francês Marcel Proust, outra referência literária na obra da autora Foto: Acervo Estadão

O Método Albertine (Edições Jabuticaba, 2017), por exemplo, primeiro livro da autora publicado no Brasil, sustenta-se pela paixão de Carson por Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – em especial por Albertine, aprisionada pelo narrador no volume A Prisioneira. Albertine é a personagem que mais aparece no romance de autor francês – 2.363 vezes, em 807 páginas, adormecida em pelo menos 19% delas. Os dados estão no texto e lhe dão o tom bem-vindo de um exame obsessivo.

Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 107 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas – apesar da singeleza da linguagem – parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa. Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: “Quem é você?”. Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente.

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De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: “Comecei a anotar tudo o que era dito”. “Rastros e vestígios” são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

A escritora e poeta canadense Anne Carson, autora de 'Autobiografia do Vermelho' e 'Falas Curtas' Foto: Relicário

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta Sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: “Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ‘cidades’ quisesse dizer “embuste”, por exemplo?”.

A poeta Sylvia Plath é uma das referências de Anne Carson, assim como Van Gogh e a cultural oriental  Foto: Knopf Books

Talvez por isso os fascículos possam ser lidos também como confissões. “Em toda história que conto chega um momento que não consigo enxergar mais à frente”, escreve na sua Fala Curta Sobre O Homo Sapiens. Lemos como quem espia pelo buraco da fechadura de um quarto. E no final descobrimos que o quarto era, esse tempo todo, o nosso.

Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

Retrato do escritor francês Marcel Proust, outra referência literária na obra da autora Foto: Acervo Estadão

O Método Albertine (Edições Jabuticaba, 2017), por exemplo, primeiro livro da autora publicado no Brasil, sustenta-se pela paixão de Carson por Em Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust – em especial por Albertine, aprisionada pelo narrador no volume A Prisioneira. Albertine é a personagem que mais aparece no romance de autor francês – 2.363 vezes, em 807 páginas, adormecida em pelo menos 19% delas. Os dados estão no texto e lhe dão o tom bem-vindo de um exame obsessivo.

Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 107 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas – apesar da singeleza da linguagem – parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa. Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: “Quem é você?”. Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente.

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De início, o leitor de Falas Curtas sabe: tudo o que acontecer dali em diante será projetado pelas palavras que faltavam. A introdução funciona como uma espécie de guia para o ambiente de flutuação que encontramos a seguir. Carson nos revela o seu método: “Comecei a anotar tudo o que era dito”. “Rastros e vestígios” são perseguidos pela autora de modo a evitar o tédio.

À primeira vista, tudo parece ser muito concreto e até plano no mundo recriado pela autora. E pode parecer óbvio, mas não é: se olharmos para as palavras de outro ângulo, tudo parece perder a sua forma primal para depois, aos poucos, reconquistá-la.

A escritora e poeta canadense Anne Carson, autora de 'Autobiografia do Vermelho' e 'Falas Curtas' Foto: Relicário

A sequência de 53 fascículos surge a partir de um encadeamento de reflexões e imagens que justamente repelem a obviedade. Vívidos e inconclusivos, os poemas apontam para lugares diversos, de Ovídio a Brigitte Bardot, passando por Van Gogh, Sylvia Plath, gueixas e a decolagem de um avião.

Não se trata de uma obra passível a interpretações fáceis ou elogios despropositados. Antes, Falas Curtas é um livro que convoca o leitor para o estilo inconfundível da autora e para os meandros da linguagem poética. Desfaz as fronteiras tênues entre os gêneros literários. Serão mesmo poemas em prosa ou talvez ensaios, narrativas curtas? A definição pouco importa diante do fascínio obscuro que os textos suscitam no leitor, com camadas diversas de compreensão, mal situados entre a erudição e o que parece, de imediato, banal. E é neste deslocamento que está a força do livro.

Cabe ao leitor ampliar sentidos para se deixar levar pela precisão das frases de Carson. E, como ela mesma já disse sobre a literatura grega antiga, é uma leitura que exige buscar a lição de cada frase. Não como uma cifra, mas como a contação de um segredo íntimo e ao mesmo tempo universal. Em sua Fala Curta Sobre Parmênides, Carson escreve, sobre um amigo italiano: “Receio não termos entendido o que ele dizia ou seus motivos. E se cada vez que ele dizia ‘cidades’ quisesse dizer “embuste”, por exemplo?”.

A poeta Sylvia Plath é uma das referências de Anne Carson, assim como Van Gogh e a cultural oriental  Foto: Knopf Books

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Nascida em Toronto, Canadá, em 1950, Carson é poeta, ensaísta, professora de literatura clássica e reconhecida tradutora de grego antigo, tendo traduzido para o inglês peças de Sófocles e Eurípedes e poemas de Safo. Nos últimos anos, foi um nome frequente na lista de indicações ao Prêmio Nobel de Literatura. Original e diversa, a sua obra está localizada em grande parte entre o ensaio e a poesia, estabelecendo diálogos com outros escritores, pensadores e artistas, além de figuras bíblicas, históricas e mitológicas.

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Autobiografia do Vermelho (Editora 34, 2021), por sua vez, reinventa a história de Gerião. Na mitologia grega, Gerião é um gigante detentor de um enorme rebanho de bois vermelhos, e Hércules, para tornar-se herói, tem como uma das suas doze tarefas matá-lo. Na versão irreverente de Carson, Gerião aparece como um adolescente gay apaixonado por Hércules. Nos Estados Unidos, o romance conquistou a crítica e os leitores.

Falas Curtas talvez seja o mais misterioso entre os três, e a sua leitura está sempre no limite do risco entre o que funciona e o que não funciona. Mas não se vale desse risco toda poesia? Para os mais afeitos ao gênero, o lançamento de 107 páginas é um mar que se abre. Nada-se a braçadas. Para quem não é fã de poesia, Falas Curtas – apesar da singeleza da linguagem – parece deter uma opacidade indecifrável e diz, com o perdão do trocadilho, pouca coisa. Saímos da sua leitura com mais perguntas do que entramos, e com um estranho sentimento de fidelidade à obra. Talvez possamos inclusive devolver ao livro a indagação essencial que, a certa altura, ele mesmo faz: “Quem é você?”. Mas, para uma pergunta tão grande, talvez nenhuma resposta seja correta ou boa o suficiente.

FALAS CURTAS

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