Antes que tarde


Será o autoritarismo a regra, e não a exceção, no Brasil?

Por Luiz Costa Lima

Se não questionarmos a concepção de ciência exata, será possível pensar-se que a história teria estado entre seus membros caso fosse provocada por causas precisas e determinadas. Não o ter não a converte em aleatória. Quando, por ex., autoridades judiciais julgam meritório – de algum modo, portanto excepcional – que tenhamos completado 30 anos de democracia, será o caso de nos perguntarmos se não consideram que o autoritarismo é nosso padrão dominante? Sei que dizê-lo parecerá impróprio a magistrados. Parecerá intrigante que, embora implícita e oblíqua, ela é correta. Dizê-lo será uma ousadia de quem não é um politicólogo. Nem por isso deixa de se impor menos ante a crise institucional que vivemos. Do contrário, uma república de “experts” se depararia com um bando organizado de espertos, prestes a bicar no que tanto almejam. Considero por isso justificada a espontaneidade que cometo.

O crítico literário Luiz Costa Lima Foto: Marcos de Paula/Estadão

Que me leva a pensar que nossa direção mais usual é a adoção de formas autoritárias ou mesmo ditatoriais? Pretendo justificá-lo por duas direções: (a) nossa frequente ignorância do pequeno legado cultural que temos formado; (b) nossa inegável formação histórica. Examino uma e outra em separado. O primeiro fator é sublinhado quando ouvimos o que nossas autoridades atuais declaram a propósito de Paulo Freire. Havendo convivido com ele desde a adolescência e trabalhado por quase cinco anos, só mentirei a seu respeito se estiver em meu propósito. Paulo era um católico convicto, participante dos mais estritos rituais da Igreja, que, vindo de uma classe média sem posses, utilizava seus recursos intelectuais para combater o analfabetismo. Empregava para isso meios extremamente simples: uma máquina de projeção pela qual expunha à parede o que chamava de palavra geradora. Separava-a então em sílabas e, partir de cada uma, mostrava como elas se combinavam em infindas palavras. Lembro-me do reforço que ganhou o projetor com a ajuda do projetista e escultor Francisco Brennand – cuja imensa riqueza o livraria de ser perseguido em 1964. Não preciso me deter no chamado método Paulo Freire, porquanto se acha difundido por seus inúmeros livros. Consagrado pela ONU, que fez possível sua sobrevivência durante o exílio pelo emprego que dele fazia na África e logo por seu conhecimento no Ocidente, seu propósito, entre 1962 e abril de 1964, era alfabetizar nossos pobres e miseráveis. Não creio imaginável que a ONU lhe concedesse outra finalidade nos países africanos, nem tampouco que sua atual difusão tenha algum propósito comunizante. Mas cumpre não nos enganarmos com as palavras. Isso de alfabetizar miseráveis já não é por si comunizante?! O emprego da palavra já contém o que deve ser demonstrado: à nossa direção autoritária-ditatorial toda tentativa de diminuir a disparidade sócio-econômica soa literalmente como algo comunizante. Recordo um exemplo dos anos imediatamente prévios ao golpe de 1964. 

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Os mais velhos lembrarão o teatro da UNE, então chamado de Centro Popular de Cultura (CPC). Entre seus membros, depois se encontrariam o cineasta Leon Hirzmann e o documentalista Eduardo Coutinho. Certa ocasião, acompanhei um deles a um dos morros do Recife, onde encenavam uma de suas peças. Seu constante didatismo fazia parte de seu autoritarismo de esquerda – seria lamentável que restringíssemos o autoritarismo à direita; ele apenas é, entre nós, mais frequente Para surpresa dos presentes, em certo momento, levantou-se da platéia um pedreiro e declarou: não preciso que me ensinem a fazer o que sei. Preciso de outras coisas. A luta que tínhamos na equipe de Paulo com os membros do CPC tornava-se evidente. Seria descabido pedir que o CPC carioca mudasse de direção. Seus membros eram dirigidos pela mesma razão pela qual o Partido comunista discordava do “método Paulo Freire”.

Fora da recordação pessoal, encontro nosso autoritarismo reiterado pela maneira como hoje Paulo Freire é hoje reconhecido. Que adjetivo lhe concede nossa hoje máxima autoridade senão de “energúmeno”? Seria absurdo se lhe pedíssemos que concordasse com Paulo. Tal ato repetiria sua idêntica violência. Mas que arbitrariedade está por detrás do qualificativo senão a completa ignorância? Como toda ela, assim se justificativa sua reiteração.

Poupo-me de apresentar outras provas. Lembro apenas que o renome de Gilberto Freyre como sociólogo depende de se descurar de o quanto Casa grande & senzala se subordina à continuação da ênfase no fator racial, dele apenas retirando o realce biológico - entre nós mantido até que Freyre consubstanciasse a influência das aulas de Franz Boas. Apesar do quê, a fama de Freyre se consolidou desde que seu livro foi lançado. Não importa que São Paulo já então contasse com uma escola de sociologia, para a qual haviam sido contratados jovens professores franceses. Isso não perturbou a história do país.

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Venho à segunda direção acima aludida. Por deficientes que sejam nossos cursos superiores, qualquer um de seus alunos reconhecerá a influência marcante da escravidão no desenvolvimento sócio-econômico do país. Por ela, o trabalho era algo ignóbil e confundido com tarefa do escravo. Assim, se à massa negra correspondia um número reduzido de proprietários, a pequena quantidade de alfabetizados ainda mais o diminuía. Que então se lia no interior das casas grandes além de romances importados da França ou, por suposto, livros de legislação? Os romances se reduziam ao público feminino, os livros jurídicos a alguns proprietários, frequentadoras da corte e/ou de pretensão senatorial. Em decorrência, durante o segundo reinado, quando se impunha a consolidação da unidade do país, os descendentes que se cultivavam como literatti eram motivados a dirigir sua escrita em prol do sentimento de nacionalidade. A excepcionalidade machadiana compreenderia que o sentimento de nacionalidade não compaginava com a literatura. (A falta continuará a ser sentida nos dias de agora). Embora muito citado, quem de fato considerou os diversos níveis do entendimento machadiano? E que teria adiantado fazê-lo no século XX se a repercussão permaneceria quase nula?

Estaremos enganados se pensarmos que isso faz parte de uma história vencida. Como assim, se nossa alfabetização permanece precária? E como poderia ser de outro modo se a suposta especialização, hoje dominante, justifica o desconhecimento da mínima cultura que temos produzido? É cabal que nos períodosexplicitamente autoritários-ditatoriais as mazelas se estampem sem travas. Precisamos de exemplificações? Lembre-se que, para o diretor da Fundação Palmares, cujo título lembraria os negros insurretos, a escravidão fez bem ao escravo. Ademais, declarações absurdas reiteram o elogio do Ato Institucional nº 5, a proposta de fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal; também se repetem os atos de insubordinação, ao mesmo tempo que as demais autoridades se encolhem em declarar que o que escutam são palavras, modos de falar e não atos. Por que se arriscar se, em pleno regime autoritário, a palavra ou não passa de uma exclamação articulada ou é arriscada? Assim, desde final de 2018, temos vivido em um verdadeiro tsunami social que engrossa a cada semana. A diferença palpável quanto ao golpe de 1964 está em que ele foi preparado nos quarteis, enquanto agora os atuais agentes apalpam o terreno. 

Como a história não tem causas determinadas, parece possível abortar-se a ação dos presentes energúmenos.  

Se não questionarmos a concepção de ciência exata, será possível pensar-se que a história teria estado entre seus membros caso fosse provocada por causas precisas e determinadas. Não o ter não a converte em aleatória. Quando, por ex., autoridades judiciais julgam meritório – de algum modo, portanto excepcional – que tenhamos completado 30 anos de democracia, será o caso de nos perguntarmos se não consideram que o autoritarismo é nosso padrão dominante? Sei que dizê-lo parecerá impróprio a magistrados. Parecerá intrigante que, embora implícita e oblíqua, ela é correta. Dizê-lo será uma ousadia de quem não é um politicólogo. Nem por isso deixa de se impor menos ante a crise institucional que vivemos. Do contrário, uma república de “experts” se depararia com um bando organizado de espertos, prestes a bicar no que tanto almejam. Considero por isso justificada a espontaneidade que cometo.

O crítico literário Luiz Costa Lima Foto: Marcos de Paula/Estadão

Que me leva a pensar que nossa direção mais usual é a adoção de formas autoritárias ou mesmo ditatoriais? Pretendo justificá-lo por duas direções: (a) nossa frequente ignorância do pequeno legado cultural que temos formado; (b) nossa inegável formação histórica. Examino uma e outra em separado. O primeiro fator é sublinhado quando ouvimos o que nossas autoridades atuais declaram a propósito de Paulo Freire. Havendo convivido com ele desde a adolescência e trabalhado por quase cinco anos, só mentirei a seu respeito se estiver em meu propósito. Paulo era um católico convicto, participante dos mais estritos rituais da Igreja, que, vindo de uma classe média sem posses, utilizava seus recursos intelectuais para combater o analfabetismo. Empregava para isso meios extremamente simples: uma máquina de projeção pela qual expunha à parede o que chamava de palavra geradora. Separava-a então em sílabas e, partir de cada uma, mostrava como elas se combinavam em infindas palavras. Lembro-me do reforço que ganhou o projetor com a ajuda do projetista e escultor Francisco Brennand – cuja imensa riqueza o livraria de ser perseguido em 1964. Não preciso me deter no chamado método Paulo Freire, porquanto se acha difundido por seus inúmeros livros. Consagrado pela ONU, que fez possível sua sobrevivência durante o exílio pelo emprego que dele fazia na África e logo por seu conhecimento no Ocidente, seu propósito, entre 1962 e abril de 1964, era alfabetizar nossos pobres e miseráveis. Não creio imaginável que a ONU lhe concedesse outra finalidade nos países africanos, nem tampouco que sua atual difusão tenha algum propósito comunizante. Mas cumpre não nos enganarmos com as palavras. Isso de alfabetizar miseráveis já não é por si comunizante?! O emprego da palavra já contém o que deve ser demonstrado: à nossa direção autoritária-ditatorial toda tentativa de diminuir a disparidade sócio-econômica soa literalmente como algo comunizante. Recordo um exemplo dos anos imediatamente prévios ao golpe de 1964. 

Os mais velhos lembrarão o teatro da UNE, então chamado de Centro Popular de Cultura (CPC). Entre seus membros, depois se encontrariam o cineasta Leon Hirzmann e o documentalista Eduardo Coutinho. Certa ocasião, acompanhei um deles a um dos morros do Recife, onde encenavam uma de suas peças. Seu constante didatismo fazia parte de seu autoritarismo de esquerda – seria lamentável que restringíssemos o autoritarismo à direita; ele apenas é, entre nós, mais frequente Para surpresa dos presentes, em certo momento, levantou-se da platéia um pedreiro e declarou: não preciso que me ensinem a fazer o que sei. Preciso de outras coisas. A luta que tínhamos na equipe de Paulo com os membros do CPC tornava-se evidente. Seria descabido pedir que o CPC carioca mudasse de direção. Seus membros eram dirigidos pela mesma razão pela qual o Partido comunista discordava do “método Paulo Freire”.

Fora da recordação pessoal, encontro nosso autoritarismo reiterado pela maneira como hoje Paulo Freire é hoje reconhecido. Que adjetivo lhe concede nossa hoje máxima autoridade senão de “energúmeno”? Seria absurdo se lhe pedíssemos que concordasse com Paulo. Tal ato repetiria sua idêntica violência. Mas que arbitrariedade está por detrás do qualificativo senão a completa ignorância? Como toda ela, assim se justificativa sua reiteração.

Poupo-me de apresentar outras provas. Lembro apenas que o renome de Gilberto Freyre como sociólogo depende de se descurar de o quanto Casa grande & senzala se subordina à continuação da ênfase no fator racial, dele apenas retirando o realce biológico - entre nós mantido até que Freyre consubstanciasse a influência das aulas de Franz Boas. Apesar do quê, a fama de Freyre se consolidou desde que seu livro foi lançado. Não importa que São Paulo já então contasse com uma escola de sociologia, para a qual haviam sido contratados jovens professores franceses. Isso não perturbou a história do país.

Venho à segunda direção acima aludida. Por deficientes que sejam nossos cursos superiores, qualquer um de seus alunos reconhecerá a influência marcante da escravidão no desenvolvimento sócio-econômico do país. Por ela, o trabalho era algo ignóbil e confundido com tarefa do escravo. Assim, se à massa negra correspondia um número reduzido de proprietários, a pequena quantidade de alfabetizados ainda mais o diminuía. Que então se lia no interior das casas grandes além de romances importados da França ou, por suposto, livros de legislação? Os romances se reduziam ao público feminino, os livros jurídicos a alguns proprietários, frequentadoras da corte e/ou de pretensão senatorial. Em decorrência, durante o segundo reinado, quando se impunha a consolidação da unidade do país, os descendentes que se cultivavam como literatti eram motivados a dirigir sua escrita em prol do sentimento de nacionalidade. A excepcionalidade machadiana compreenderia que o sentimento de nacionalidade não compaginava com a literatura. (A falta continuará a ser sentida nos dias de agora). Embora muito citado, quem de fato considerou os diversos níveis do entendimento machadiano? E que teria adiantado fazê-lo no século XX se a repercussão permaneceria quase nula?

Estaremos enganados se pensarmos que isso faz parte de uma história vencida. Como assim, se nossa alfabetização permanece precária? E como poderia ser de outro modo se a suposta especialização, hoje dominante, justifica o desconhecimento da mínima cultura que temos produzido? É cabal que nos períodosexplicitamente autoritários-ditatoriais as mazelas se estampem sem travas. Precisamos de exemplificações? Lembre-se que, para o diretor da Fundação Palmares, cujo título lembraria os negros insurretos, a escravidão fez bem ao escravo. Ademais, declarações absurdas reiteram o elogio do Ato Institucional nº 5, a proposta de fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal; também se repetem os atos de insubordinação, ao mesmo tempo que as demais autoridades se encolhem em declarar que o que escutam são palavras, modos de falar e não atos. Por que se arriscar se, em pleno regime autoritário, a palavra ou não passa de uma exclamação articulada ou é arriscada? Assim, desde final de 2018, temos vivido em um verdadeiro tsunami social que engrossa a cada semana. A diferença palpável quanto ao golpe de 1964 está em que ele foi preparado nos quarteis, enquanto agora os atuais agentes apalpam o terreno. 

Como a história não tem causas determinadas, parece possível abortar-se a ação dos presentes energúmenos.  

Se não questionarmos a concepção de ciência exata, será possível pensar-se que a história teria estado entre seus membros caso fosse provocada por causas precisas e determinadas. Não o ter não a converte em aleatória. Quando, por ex., autoridades judiciais julgam meritório – de algum modo, portanto excepcional – que tenhamos completado 30 anos de democracia, será o caso de nos perguntarmos se não consideram que o autoritarismo é nosso padrão dominante? Sei que dizê-lo parecerá impróprio a magistrados. Parecerá intrigante que, embora implícita e oblíqua, ela é correta. Dizê-lo será uma ousadia de quem não é um politicólogo. Nem por isso deixa de se impor menos ante a crise institucional que vivemos. Do contrário, uma república de “experts” se depararia com um bando organizado de espertos, prestes a bicar no que tanto almejam. Considero por isso justificada a espontaneidade que cometo.

O crítico literário Luiz Costa Lima Foto: Marcos de Paula/Estadão

Que me leva a pensar que nossa direção mais usual é a adoção de formas autoritárias ou mesmo ditatoriais? Pretendo justificá-lo por duas direções: (a) nossa frequente ignorância do pequeno legado cultural que temos formado; (b) nossa inegável formação histórica. Examino uma e outra em separado. O primeiro fator é sublinhado quando ouvimos o que nossas autoridades atuais declaram a propósito de Paulo Freire. Havendo convivido com ele desde a adolescência e trabalhado por quase cinco anos, só mentirei a seu respeito se estiver em meu propósito. Paulo era um católico convicto, participante dos mais estritos rituais da Igreja, que, vindo de uma classe média sem posses, utilizava seus recursos intelectuais para combater o analfabetismo. Empregava para isso meios extremamente simples: uma máquina de projeção pela qual expunha à parede o que chamava de palavra geradora. Separava-a então em sílabas e, partir de cada uma, mostrava como elas se combinavam em infindas palavras. Lembro-me do reforço que ganhou o projetor com a ajuda do projetista e escultor Francisco Brennand – cuja imensa riqueza o livraria de ser perseguido em 1964. Não preciso me deter no chamado método Paulo Freire, porquanto se acha difundido por seus inúmeros livros. Consagrado pela ONU, que fez possível sua sobrevivência durante o exílio pelo emprego que dele fazia na África e logo por seu conhecimento no Ocidente, seu propósito, entre 1962 e abril de 1964, era alfabetizar nossos pobres e miseráveis. Não creio imaginável que a ONU lhe concedesse outra finalidade nos países africanos, nem tampouco que sua atual difusão tenha algum propósito comunizante. Mas cumpre não nos enganarmos com as palavras. Isso de alfabetizar miseráveis já não é por si comunizante?! O emprego da palavra já contém o que deve ser demonstrado: à nossa direção autoritária-ditatorial toda tentativa de diminuir a disparidade sócio-econômica soa literalmente como algo comunizante. Recordo um exemplo dos anos imediatamente prévios ao golpe de 1964. 

Os mais velhos lembrarão o teatro da UNE, então chamado de Centro Popular de Cultura (CPC). Entre seus membros, depois se encontrariam o cineasta Leon Hirzmann e o documentalista Eduardo Coutinho. Certa ocasião, acompanhei um deles a um dos morros do Recife, onde encenavam uma de suas peças. Seu constante didatismo fazia parte de seu autoritarismo de esquerda – seria lamentável que restringíssemos o autoritarismo à direita; ele apenas é, entre nós, mais frequente Para surpresa dos presentes, em certo momento, levantou-se da platéia um pedreiro e declarou: não preciso que me ensinem a fazer o que sei. Preciso de outras coisas. A luta que tínhamos na equipe de Paulo com os membros do CPC tornava-se evidente. Seria descabido pedir que o CPC carioca mudasse de direção. Seus membros eram dirigidos pela mesma razão pela qual o Partido comunista discordava do “método Paulo Freire”.

Fora da recordação pessoal, encontro nosso autoritarismo reiterado pela maneira como hoje Paulo Freire é hoje reconhecido. Que adjetivo lhe concede nossa hoje máxima autoridade senão de “energúmeno”? Seria absurdo se lhe pedíssemos que concordasse com Paulo. Tal ato repetiria sua idêntica violência. Mas que arbitrariedade está por detrás do qualificativo senão a completa ignorância? Como toda ela, assim se justificativa sua reiteração.

Poupo-me de apresentar outras provas. Lembro apenas que o renome de Gilberto Freyre como sociólogo depende de se descurar de o quanto Casa grande & senzala se subordina à continuação da ênfase no fator racial, dele apenas retirando o realce biológico - entre nós mantido até que Freyre consubstanciasse a influência das aulas de Franz Boas. Apesar do quê, a fama de Freyre se consolidou desde que seu livro foi lançado. Não importa que São Paulo já então contasse com uma escola de sociologia, para a qual haviam sido contratados jovens professores franceses. Isso não perturbou a história do país.

Venho à segunda direção acima aludida. Por deficientes que sejam nossos cursos superiores, qualquer um de seus alunos reconhecerá a influência marcante da escravidão no desenvolvimento sócio-econômico do país. Por ela, o trabalho era algo ignóbil e confundido com tarefa do escravo. Assim, se à massa negra correspondia um número reduzido de proprietários, a pequena quantidade de alfabetizados ainda mais o diminuía. Que então se lia no interior das casas grandes além de romances importados da França ou, por suposto, livros de legislação? Os romances se reduziam ao público feminino, os livros jurídicos a alguns proprietários, frequentadoras da corte e/ou de pretensão senatorial. Em decorrência, durante o segundo reinado, quando se impunha a consolidação da unidade do país, os descendentes que se cultivavam como literatti eram motivados a dirigir sua escrita em prol do sentimento de nacionalidade. A excepcionalidade machadiana compreenderia que o sentimento de nacionalidade não compaginava com a literatura. (A falta continuará a ser sentida nos dias de agora). Embora muito citado, quem de fato considerou os diversos níveis do entendimento machadiano? E que teria adiantado fazê-lo no século XX se a repercussão permaneceria quase nula?

Estaremos enganados se pensarmos que isso faz parte de uma história vencida. Como assim, se nossa alfabetização permanece precária? E como poderia ser de outro modo se a suposta especialização, hoje dominante, justifica o desconhecimento da mínima cultura que temos produzido? É cabal que nos períodosexplicitamente autoritários-ditatoriais as mazelas se estampem sem travas. Precisamos de exemplificações? Lembre-se que, para o diretor da Fundação Palmares, cujo título lembraria os negros insurretos, a escravidão fez bem ao escravo. Ademais, declarações absurdas reiteram o elogio do Ato Institucional nº 5, a proposta de fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal; também se repetem os atos de insubordinação, ao mesmo tempo que as demais autoridades se encolhem em declarar que o que escutam são palavras, modos de falar e não atos. Por que se arriscar se, em pleno regime autoritário, a palavra ou não passa de uma exclamação articulada ou é arriscada? Assim, desde final de 2018, temos vivido em um verdadeiro tsunami social que engrossa a cada semana. A diferença palpável quanto ao golpe de 1964 está em que ele foi preparado nos quarteis, enquanto agora os atuais agentes apalpam o terreno. 

Como a história não tem causas determinadas, parece possível abortar-se a ação dos presentes energúmenos.  

Se não questionarmos a concepção de ciência exata, será possível pensar-se que a história teria estado entre seus membros caso fosse provocada por causas precisas e determinadas. Não o ter não a converte em aleatória. Quando, por ex., autoridades judiciais julgam meritório – de algum modo, portanto excepcional – que tenhamos completado 30 anos de democracia, será o caso de nos perguntarmos se não consideram que o autoritarismo é nosso padrão dominante? Sei que dizê-lo parecerá impróprio a magistrados. Parecerá intrigante que, embora implícita e oblíqua, ela é correta. Dizê-lo será uma ousadia de quem não é um politicólogo. Nem por isso deixa de se impor menos ante a crise institucional que vivemos. Do contrário, uma república de “experts” se depararia com um bando organizado de espertos, prestes a bicar no que tanto almejam. Considero por isso justificada a espontaneidade que cometo.

O crítico literário Luiz Costa Lima Foto: Marcos de Paula/Estadão

Que me leva a pensar que nossa direção mais usual é a adoção de formas autoritárias ou mesmo ditatoriais? Pretendo justificá-lo por duas direções: (a) nossa frequente ignorância do pequeno legado cultural que temos formado; (b) nossa inegável formação histórica. Examino uma e outra em separado. O primeiro fator é sublinhado quando ouvimos o que nossas autoridades atuais declaram a propósito de Paulo Freire. Havendo convivido com ele desde a adolescência e trabalhado por quase cinco anos, só mentirei a seu respeito se estiver em meu propósito. Paulo era um católico convicto, participante dos mais estritos rituais da Igreja, que, vindo de uma classe média sem posses, utilizava seus recursos intelectuais para combater o analfabetismo. Empregava para isso meios extremamente simples: uma máquina de projeção pela qual expunha à parede o que chamava de palavra geradora. Separava-a então em sílabas e, partir de cada uma, mostrava como elas se combinavam em infindas palavras. Lembro-me do reforço que ganhou o projetor com a ajuda do projetista e escultor Francisco Brennand – cuja imensa riqueza o livraria de ser perseguido em 1964. Não preciso me deter no chamado método Paulo Freire, porquanto se acha difundido por seus inúmeros livros. Consagrado pela ONU, que fez possível sua sobrevivência durante o exílio pelo emprego que dele fazia na África e logo por seu conhecimento no Ocidente, seu propósito, entre 1962 e abril de 1964, era alfabetizar nossos pobres e miseráveis. Não creio imaginável que a ONU lhe concedesse outra finalidade nos países africanos, nem tampouco que sua atual difusão tenha algum propósito comunizante. Mas cumpre não nos enganarmos com as palavras. Isso de alfabetizar miseráveis já não é por si comunizante?! O emprego da palavra já contém o que deve ser demonstrado: à nossa direção autoritária-ditatorial toda tentativa de diminuir a disparidade sócio-econômica soa literalmente como algo comunizante. Recordo um exemplo dos anos imediatamente prévios ao golpe de 1964. 

Os mais velhos lembrarão o teatro da UNE, então chamado de Centro Popular de Cultura (CPC). Entre seus membros, depois se encontrariam o cineasta Leon Hirzmann e o documentalista Eduardo Coutinho. Certa ocasião, acompanhei um deles a um dos morros do Recife, onde encenavam uma de suas peças. Seu constante didatismo fazia parte de seu autoritarismo de esquerda – seria lamentável que restringíssemos o autoritarismo à direita; ele apenas é, entre nós, mais frequente Para surpresa dos presentes, em certo momento, levantou-se da platéia um pedreiro e declarou: não preciso que me ensinem a fazer o que sei. Preciso de outras coisas. A luta que tínhamos na equipe de Paulo com os membros do CPC tornava-se evidente. Seria descabido pedir que o CPC carioca mudasse de direção. Seus membros eram dirigidos pela mesma razão pela qual o Partido comunista discordava do “método Paulo Freire”.

Fora da recordação pessoal, encontro nosso autoritarismo reiterado pela maneira como hoje Paulo Freire é hoje reconhecido. Que adjetivo lhe concede nossa hoje máxima autoridade senão de “energúmeno”? Seria absurdo se lhe pedíssemos que concordasse com Paulo. Tal ato repetiria sua idêntica violência. Mas que arbitrariedade está por detrás do qualificativo senão a completa ignorância? Como toda ela, assim se justificativa sua reiteração.

Poupo-me de apresentar outras provas. Lembro apenas que o renome de Gilberto Freyre como sociólogo depende de se descurar de o quanto Casa grande & senzala se subordina à continuação da ênfase no fator racial, dele apenas retirando o realce biológico - entre nós mantido até que Freyre consubstanciasse a influência das aulas de Franz Boas. Apesar do quê, a fama de Freyre se consolidou desde que seu livro foi lançado. Não importa que São Paulo já então contasse com uma escola de sociologia, para a qual haviam sido contratados jovens professores franceses. Isso não perturbou a história do país.

Venho à segunda direção acima aludida. Por deficientes que sejam nossos cursos superiores, qualquer um de seus alunos reconhecerá a influência marcante da escravidão no desenvolvimento sócio-econômico do país. Por ela, o trabalho era algo ignóbil e confundido com tarefa do escravo. Assim, se à massa negra correspondia um número reduzido de proprietários, a pequena quantidade de alfabetizados ainda mais o diminuía. Que então se lia no interior das casas grandes além de romances importados da França ou, por suposto, livros de legislação? Os romances se reduziam ao público feminino, os livros jurídicos a alguns proprietários, frequentadoras da corte e/ou de pretensão senatorial. Em decorrência, durante o segundo reinado, quando se impunha a consolidação da unidade do país, os descendentes que se cultivavam como literatti eram motivados a dirigir sua escrita em prol do sentimento de nacionalidade. A excepcionalidade machadiana compreenderia que o sentimento de nacionalidade não compaginava com a literatura. (A falta continuará a ser sentida nos dias de agora). Embora muito citado, quem de fato considerou os diversos níveis do entendimento machadiano? E que teria adiantado fazê-lo no século XX se a repercussão permaneceria quase nula?

Estaremos enganados se pensarmos que isso faz parte de uma história vencida. Como assim, se nossa alfabetização permanece precária? E como poderia ser de outro modo se a suposta especialização, hoje dominante, justifica o desconhecimento da mínima cultura que temos produzido? É cabal que nos períodosexplicitamente autoritários-ditatoriais as mazelas se estampem sem travas. Precisamos de exemplificações? Lembre-se que, para o diretor da Fundação Palmares, cujo título lembraria os negros insurretos, a escravidão fez bem ao escravo. Ademais, declarações absurdas reiteram o elogio do Ato Institucional nº 5, a proposta de fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal; também se repetem os atos de insubordinação, ao mesmo tempo que as demais autoridades se encolhem em declarar que o que escutam são palavras, modos de falar e não atos. Por que se arriscar se, em pleno regime autoritário, a palavra ou não passa de uma exclamação articulada ou é arriscada? Assim, desde final de 2018, temos vivido em um verdadeiro tsunami social que engrossa a cada semana. A diferença palpável quanto ao golpe de 1964 está em que ele foi preparado nos quarteis, enquanto agora os atuais agentes apalpam o terreno. 

Como a história não tem causas determinadas, parece possível abortar-se a ação dos presentes energúmenos.  

Se não questionarmos a concepção de ciência exata, será possível pensar-se que a história teria estado entre seus membros caso fosse provocada por causas precisas e determinadas. Não o ter não a converte em aleatória. Quando, por ex., autoridades judiciais julgam meritório – de algum modo, portanto excepcional – que tenhamos completado 30 anos de democracia, será o caso de nos perguntarmos se não consideram que o autoritarismo é nosso padrão dominante? Sei que dizê-lo parecerá impróprio a magistrados. Parecerá intrigante que, embora implícita e oblíqua, ela é correta. Dizê-lo será uma ousadia de quem não é um politicólogo. Nem por isso deixa de se impor menos ante a crise institucional que vivemos. Do contrário, uma república de “experts” se depararia com um bando organizado de espertos, prestes a bicar no que tanto almejam. Considero por isso justificada a espontaneidade que cometo.

O crítico literário Luiz Costa Lima Foto: Marcos de Paula/Estadão

Que me leva a pensar que nossa direção mais usual é a adoção de formas autoritárias ou mesmo ditatoriais? Pretendo justificá-lo por duas direções: (a) nossa frequente ignorância do pequeno legado cultural que temos formado; (b) nossa inegável formação histórica. Examino uma e outra em separado. O primeiro fator é sublinhado quando ouvimos o que nossas autoridades atuais declaram a propósito de Paulo Freire. Havendo convivido com ele desde a adolescência e trabalhado por quase cinco anos, só mentirei a seu respeito se estiver em meu propósito. Paulo era um católico convicto, participante dos mais estritos rituais da Igreja, que, vindo de uma classe média sem posses, utilizava seus recursos intelectuais para combater o analfabetismo. Empregava para isso meios extremamente simples: uma máquina de projeção pela qual expunha à parede o que chamava de palavra geradora. Separava-a então em sílabas e, partir de cada uma, mostrava como elas se combinavam em infindas palavras. Lembro-me do reforço que ganhou o projetor com a ajuda do projetista e escultor Francisco Brennand – cuja imensa riqueza o livraria de ser perseguido em 1964. Não preciso me deter no chamado método Paulo Freire, porquanto se acha difundido por seus inúmeros livros. Consagrado pela ONU, que fez possível sua sobrevivência durante o exílio pelo emprego que dele fazia na África e logo por seu conhecimento no Ocidente, seu propósito, entre 1962 e abril de 1964, era alfabetizar nossos pobres e miseráveis. Não creio imaginável que a ONU lhe concedesse outra finalidade nos países africanos, nem tampouco que sua atual difusão tenha algum propósito comunizante. Mas cumpre não nos enganarmos com as palavras. Isso de alfabetizar miseráveis já não é por si comunizante?! O emprego da palavra já contém o que deve ser demonstrado: à nossa direção autoritária-ditatorial toda tentativa de diminuir a disparidade sócio-econômica soa literalmente como algo comunizante. Recordo um exemplo dos anos imediatamente prévios ao golpe de 1964. 

Os mais velhos lembrarão o teatro da UNE, então chamado de Centro Popular de Cultura (CPC). Entre seus membros, depois se encontrariam o cineasta Leon Hirzmann e o documentalista Eduardo Coutinho. Certa ocasião, acompanhei um deles a um dos morros do Recife, onde encenavam uma de suas peças. Seu constante didatismo fazia parte de seu autoritarismo de esquerda – seria lamentável que restringíssemos o autoritarismo à direita; ele apenas é, entre nós, mais frequente Para surpresa dos presentes, em certo momento, levantou-se da platéia um pedreiro e declarou: não preciso que me ensinem a fazer o que sei. Preciso de outras coisas. A luta que tínhamos na equipe de Paulo com os membros do CPC tornava-se evidente. Seria descabido pedir que o CPC carioca mudasse de direção. Seus membros eram dirigidos pela mesma razão pela qual o Partido comunista discordava do “método Paulo Freire”.

Fora da recordação pessoal, encontro nosso autoritarismo reiterado pela maneira como hoje Paulo Freire é hoje reconhecido. Que adjetivo lhe concede nossa hoje máxima autoridade senão de “energúmeno”? Seria absurdo se lhe pedíssemos que concordasse com Paulo. Tal ato repetiria sua idêntica violência. Mas que arbitrariedade está por detrás do qualificativo senão a completa ignorância? Como toda ela, assim se justificativa sua reiteração.

Poupo-me de apresentar outras provas. Lembro apenas que o renome de Gilberto Freyre como sociólogo depende de se descurar de o quanto Casa grande & senzala se subordina à continuação da ênfase no fator racial, dele apenas retirando o realce biológico - entre nós mantido até que Freyre consubstanciasse a influência das aulas de Franz Boas. Apesar do quê, a fama de Freyre se consolidou desde que seu livro foi lançado. Não importa que São Paulo já então contasse com uma escola de sociologia, para a qual haviam sido contratados jovens professores franceses. Isso não perturbou a história do país.

Venho à segunda direção acima aludida. Por deficientes que sejam nossos cursos superiores, qualquer um de seus alunos reconhecerá a influência marcante da escravidão no desenvolvimento sócio-econômico do país. Por ela, o trabalho era algo ignóbil e confundido com tarefa do escravo. Assim, se à massa negra correspondia um número reduzido de proprietários, a pequena quantidade de alfabetizados ainda mais o diminuía. Que então se lia no interior das casas grandes além de romances importados da França ou, por suposto, livros de legislação? Os romances se reduziam ao público feminino, os livros jurídicos a alguns proprietários, frequentadoras da corte e/ou de pretensão senatorial. Em decorrência, durante o segundo reinado, quando se impunha a consolidação da unidade do país, os descendentes que se cultivavam como literatti eram motivados a dirigir sua escrita em prol do sentimento de nacionalidade. A excepcionalidade machadiana compreenderia que o sentimento de nacionalidade não compaginava com a literatura. (A falta continuará a ser sentida nos dias de agora). Embora muito citado, quem de fato considerou os diversos níveis do entendimento machadiano? E que teria adiantado fazê-lo no século XX se a repercussão permaneceria quase nula?

Estaremos enganados se pensarmos que isso faz parte de uma história vencida. Como assim, se nossa alfabetização permanece precária? E como poderia ser de outro modo se a suposta especialização, hoje dominante, justifica o desconhecimento da mínima cultura que temos produzido? É cabal que nos períodosexplicitamente autoritários-ditatoriais as mazelas se estampem sem travas. Precisamos de exemplificações? Lembre-se que, para o diretor da Fundação Palmares, cujo título lembraria os negros insurretos, a escravidão fez bem ao escravo. Ademais, declarações absurdas reiteram o elogio do Ato Institucional nº 5, a proposta de fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal; também se repetem os atos de insubordinação, ao mesmo tempo que as demais autoridades se encolhem em declarar que o que escutam são palavras, modos de falar e não atos. Por que se arriscar se, em pleno regime autoritário, a palavra ou não passa de uma exclamação articulada ou é arriscada? Assim, desde final de 2018, temos vivido em um verdadeiro tsunami social que engrossa a cada semana. A diferença palpável quanto ao golpe de 1964 está em que ele foi preparado nos quarteis, enquanto agora os atuais agentes apalpam o terreno. 

Como a história não tem causas determinadas, parece possível abortar-se a ação dos presentes energúmenos.  

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