Contos Clássicos de Terror, selecionados por Julio Jeha (também autor do prefácio breve mas arguto), suscita questões intrigantes já desde o título. Ou seja: os textos serão mesmo clássicos? E serão mesmo “de terror”? De que são contos, nem mesmo o mais rabugento dos críticos duvidará. Ufa.
Antologias são, por definição, subjetivas – o que é ótimo. E com frequência desiguais – o que é inevitável. Mas e o conceito de “clássico”, a quem se refere: ao autor, ao conto ou a ambos? Que Machado de Assis e Joseph Conrad são clássicos, não se discute – mas serão “clássicos do terror”? Ou Walt Whitman, estritamente um (grande) poeta? E George Sand, hoje citada quase que só pelo seu valor histórico, será clássica em que acepção? No manjado ensaio de Italo Calvino, “um clássico é um livro que nunca acaba de dizer o que tem para dizer”. Mas os narratólogos jogam mais lenha na fogueira: “Um clássico expressa qualidade artística. Passa no teste do tempo. Tem um certo apelo universal. Estabelece conexões.” Du-vi-de-o-dó que uma George Sand (sem querer chutar cachorro morto) cumpra tais requisitos.
Por outro lado, nada contra um autor “generalista” passear fora da sua zona de conforto, peitando não apenas o conceito de “gênero” (e nichos de mercado, que exigem determinados protocolos narrativos), mas também desafiando o preconceito obtuso de que o terror é um “gênero menor”. Epa! Mas lidamos com o “terror” ou com o “horror”? Para certos exegetas, a diferença é astronômica. O terror se ocuparia de uma atmosfera de suspense, cuja explicação nada tem de sobrenatural, sendo psicológica. É o caso do (clássico até à raiz dos cabelos) O Barril de Amontillado, de Poe, incluído nesta coletânea. Nada há aqui de anômalo: trata-se da boa e velha vingança, tema recorrente da literatura universal desde a tragédia grega (com seus Átridas sanguinolentos). Já o horror conteria elementos de sobrenatural (não tanto no sentido místico, mas de além do que existe na natureza), por vezes combinados com códigos específicos, como a ficção científica ou a fantasia. Assim, um Frankenstein, de Mary Shelley, no qual um cientista decide criar um Novo Prometeu alinhavando cadáveres. Ou O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, presente nesta antologia com um relato de um médico que é um monstro.
Há uma etiqueta mais elástica, a do “fantástico”, da qual Todorov dá uma definição supimpa: “Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, nem sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis. Ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para nós.”
“Gênero menor”, uma pinoia. Como observa Lovecraft, “a emoção mais forte e mais antiga da humanidade é o medo, e o medo mais antigo e forte é o medo do desconhecido.” Daí o proverbial “medo do escuro” – na escuridão, tudo é velado e portanto ameaçador. E nada tão desconhecido – e por isso mesmo apavorante – quanto a morte, o destino do qual nunca ninguém voltou.
Mas o “terror/horror” lida com outra questão: o problema do Mal, que desde sempre desafia filosofias, psicologias, teologias. Por que existe o Mal na natureza humana? O Cristianismo resolveu o dilema com o livre-arbítrio (escolher o bem só é meritocrático se há outra opção). Freud resolveu-o com a pulsão da morte (Tânatos), e Jung com o conceito de Sombra. Já Nietzsche apelou para o Super-homem.
Uma das virtudes desta antologia é a inclusão de brasileiros. A Causa Secreta, de Machado de Assis, a meu ver tem um senão típico do autor: o intelectualismo da concepção tolhe um pouco a vivacidade da fabulação. Já Coelho Neto foi considerado “o Príncipe dos Prosadores Brasileiros”. Mas o Modernismo pegou-o para Cristo e sovou-o sem dó nem piedade, a ponto de Lima Barreto chamá-lo de “o sujeito mais nefasto do nosso meio intelectual”. Infelizmente, A Tapera, aqui incluído, revela o defeito principal do autor: um estilo bombástico e afetado, menos anacrônico que macarrônico, com termos como “desinsofrido”, “remansoso”, “guizalhante”, “estrupidar”, “tábido”, “escachoante”, “flexuoso”. Resultado: o conto dá tanto medo quanto os Teletubbies. Já Venha Ver o Pôr do Sol, de Lygia Fagundes Telles, recicla mas nada acrescenta ao tema da vingança. O melhor nacional aqui é Emoções, de João do Rio, cujo título pressagia como um vício alheio pode ser um deleite pessoal sádico e vil.
Conrad (A Fera) comparece com uma trágica história náutica, em que um navio é a indefectível “casa mal-assombrada” (daí que Nostromo, a nave encapetada do filme Alien, seja um tributo a um dos romances deste autor). Já Lovecraft engendrou um novo reduto para o gênero: o “horror cósmico”, com criaturas que são seres multidimensionais, exteriores a qualquer compreensão humana e na orla da loucura. O escritor não era flor que se cheire: antissemita, supremacista branco e xenófobo. Apesar disso, seu imaginário é longevo: influenciou criadores transversais como Ridley Scott, Guillermo del Toro e Stephen King. Por falar neste último, não obstante as objeções estéticas que tenho a ele, dou a mão à palmatória: Vovó é o conto mais arrepiante deste livro, abordando a ambivalência do medo infantil através de uma voz narrativa na terceira pessoa salpicada de discurso indireto livre, que confere ao relato um efeito da “câmera subjetiva” do cinema. Aqui, a expressão “esqueleto no armário” assume uma dimensão ao mesmo tempo inquietante e moral. Bom, se Kubrick curtia King, quem sou eu para jogar a primeira pedra?
Em suma: independentemente de rótulos acadêmicos, classicismos ou preconceitos de gêneros maiores ou menores, podemos ler estes Contos Clássicos de Terror sem susto. Perdão, o contrário!*PAULO NOGUEIRA É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)