Ao narrar a história do conservadorismo, Edmund Fawcett expõe contradições dessa corrente


Livro do ex-jornalista da revista 'The Economist' é um guia preciso para entender uma faceta da política contemporânea que preocupa cada vez mais

Por André Caramuru Aubert
Atualização:

“Com a esquerda retraída, tanto intelectualmente quanto em termos partidários, quem comanda a política atual é a direita. Mas que direita é essa? É o conservadorismo predominantemente liberal que endossou os feitos da democracia liberal pós-1945 ou é uma direita radical, anti-liberal, que alega falar “pelo povo”? Se você pensou no Brasil de hoje ao ler estas linhas, se enganou. Ou não. Elas são, em tradução livre, o segundo parágrafo de Conservatism – The Fight for Tradition (Conservadorismo – A Luta pela Tradição), o novo livro de Edmund Fawcett, pensador refinado e ex-jornalista da revista The Economist por mais de 30 anos. A motivação principal do autor, neste trabalho, era o que se passava nos Estados Unidos de Trump e na Inglaterra do Brexit, que simbolizavam e alimentavam o crescimento de uma direita agressiva, populista e anti-intelectual que haviam se transformado num fenômeno global (do qual nós, no Brasil, não escaparíamos). Assim como nos Estados Unidos existe um fosso gigantesco a separar a direita de um estrategista como John Foster Dulles de um populista como Steve Bannon, no Brasil (que não é mencionado) dá vontade de chorar se comparamos, por exemplo, o conservadorismo elegante de um Alceu Amoroso Lima com a boçalidade terraplanista de um Olavo de Carvalho.

'Gótico Americano' (1930), de Grant Wood Foto: School of the Art Institute of Chicago

Este livro é, de certa forma, uma continuação ao elogiado trabalho anterior de Fawcett, Liberalism, the Life of an Idea (Liberalismo, a Vida de uma Ideia, em tradução livre), de 2014. Trata-se de um longo e erudito ensaio, no qual acompanhamos, alternadamente, vidas e ideias de teóricos e políticos ao longo dos eventos e das desventuras da história. O livro começa explicando as ideias dos dois principais fundadores – na visão do autor – do conservadorismo moderno, Edmund Burke (1729-97) e Joseph de Maistre (1753-1821), e já ali, no nascedouro, são explicitadas as contradições que marcaram o conservadorismo desde sempre: como se posicionar entre razão e religião, entre vontade popular e tradição, entre renovação e revolução, entre direitos individuais e escravidão. Por exemplo, a Revolução Francesa era geralmente vista como destruidora de costumes, direitos e tradições, consequentemente negativa, ao passo que a Guerra de Independência americana, ao lutar por direitos que a Coroa inglesa havia tomado dos colonos, era considerada restauradora e, portanto, positiva.  Ao mesmo tempo, como o próprio autor admite, não é fácil definir o que é “conservadorismo”, até porque as coisas mudam ao longo do tempo. Por exemplo, no começo da Revolução Industrial, os conservadores se aferravam à defesa da velha ordem, de sociedade estratificada e comércio protegido por tarifas, se opondo, portanto, aos liberais, defensores da inovação, da mobilidade social e do livre capitalismo. Os anos se passaram, e chegou o tempo em que os liberais (na economia) seriam associados aos conservadores, enquanto os liberais dos costumes se identificariam com a esquerda. As tensões e contradições do conservadorismo, quando nasceu, continuam vivas, tentando conciliar a valorização das tradições e, portanto, de uma suposta estabilidade passada, com as decantadas inovações disruptivas do capitalismo, que (teoricamente) melhorariam as condições de vida de um número crescente de pessoas? Ao longo das mais de 500 páginas do livro, Fawcett, seguindo uma ordem cronológica em zigue-zague que começa no século 18 e termina em nossos dias, passeia com bastante liberdade por centenas de personagens, alguns bastante conhecidos, como Chateaubriand, Tocqueville, Jefferson, De Gaulle, Eisenhower, Churchill, Thatcher, Reagan, Trump, e outros hoje em dia menos lembrados, mas não menos importantes, como Von Gentz, Enoch Powell, Arnold Gehlen e David Willetts.  Este não é um livro para se ler com pressa, e que requer idas constantes à estante, ou à internet, para se checar nomes e referências. São páginas densas, nas quais se aprende muita coisa e, mais importante, nas quais somos levados a refletir sobre uma série de conceitos que costumávamos assumir como estabelecidos. Mais do que preso a valores fixos, o conservadorismo se transforma ao longo do tempo: se ontem defendia-se a monarquia e os direitos da nobreza, evolui-se, por exemplo, para “Deus, pátria e família.” Se no passado lutava-se pela permanência de vetustas instituições, hoje pode-se alegar que as instituições estão se interpondo entre o líder e “seu” povo. Um dos maiores ícones do conservadorismo da segunda metade do século 20, Margaret Thatcher, defendia, na Inglaterra dos anos 1980, ideias que teriam encantado os liberais e abominado os conservadores de cento e cinquenta anos antes. Ao mesmo tempo, é curioso como alguns debates parecem não mudar jamais: em 1885, o político liberal inglês Joseph Chamberlain reclamava da intransigência dos conservadores com relação a um aumento de impostos com destinação social: “Qual é o montante que a propriedade está disposta a pagar pela segurança e estabilidade de que desfruta?” Um benefício adicional que este livro proporciona é que, ao ampliar nosso repertório, nos fornece inúmeras possibilidades de exemplificar o conservadorismo evitando a já surrada fala de Tancredi no romance O Leopardo, de Lampedusa (“às vezes as coisas precisam mudar para que permaneçam como estão”). Pode-se usar, por exemplo, esta frase de Joseph de Maistre: “Se eu fosse um soberano ateu, defenderia a infalibilidade papal, a fim de manter a paz e a ordem em meus estados.” (ideia que Joaquim Nabuco repetiria, com outras palavras, no Brasil). Ou a frase do filósofo francês Louis de Bonald (1754-1840), mostrando o quanto o conservadorismo do começo do século 19 pode, por vezes, se aproximar dos progressistas do 21: “Onde houver máquinas para tomar o lugar de homens, muitos homens serão apenas máquinas.”  *É AUTOR DE ‘POESIA CHINESA’ (SESI)

“Com a esquerda retraída, tanto intelectualmente quanto em termos partidários, quem comanda a política atual é a direita. Mas que direita é essa? É o conservadorismo predominantemente liberal que endossou os feitos da democracia liberal pós-1945 ou é uma direita radical, anti-liberal, que alega falar “pelo povo”? Se você pensou no Brasil de hoje ao ler estas linhas, se enganou. Ou não. Elas são, em tradução livre, o segundo parágrafo de Conservatism – The Fight for Tradition (Conservadorismo – A Luta pela Tradição), o novo livro de Edmund Fawcett, pensador refinado e ex-jornalista da revista The Economist por mais de 30 anos. A motivação principal do autor, neste trabalho, era o que se passava nos Estados Unidos de Trump e na Inglaterra do Brexit, que simbolizavam e alimentavam o crescimento de uma direita agressiva, populista e anti-intelectual que haviam se transformado num fenômeno global (do qual nós, no Brasil, não escaparíamos). Assim como nos Estados Unidos existe um fosso gigantesco a separar a direita de um estrategista como John Foster Dulles de um populista como Steve Bannon, no Brasil (que não é mencionado) dá vontade de chorar se comparamos, por exemplo, o conservadorismo elegante de um Alceu Amoroso Lima com a boçalidade terraplanista de um Olavo de Carvalho.

'Gótico Americano' (1930), de Grant Wood Foto: School of the Art Institute of Chicago

Este livro é, de certa forma, uma continuação ao elogiado trabalho anterior de Fawcett, Liberalism, the Life of an Idea (Liberalismo, a Vida de uma Ideia, em tradução livre), de 2014. Trata-se de um longo e erudito ensaio, no qual acompanhamos, alternadamente, vidas e ideias de teóricos e políticos ao longo dos eventos e das desventuras da história. O livro começa explicando as ideias dos dois principais fundadores – na visão do autor – do conservadorismo moderno, Edmund Burke (1729-97) e Joseph de Maistre (1753-1821), e já ali, no nascedouro, são explicitadas as contradições que marcaram o conservadorismo desde sempre: como se posicionar entre razão e religião, entre vontade popular e tradição, entre renovação e revolução, entre direitos individuais e escravidão. Por exemplo, a Revolução Francesa era geralmente vista como destruidora de costumes, direitos e tradições, consequentemente negativa, ao passo que a Guerra de Independência americana, ao lutar por direitos que a Coroa inglesa havia tomado dos colonos, era considerada restauradora e, portanto, positiva.  Ao mesmo tempo, como o próprio autor admite, não é fácil definir o que é “conservadorismo”, até porque as coisas mudam ao longo do tempo. Por exemplo, no começo da Revolução Industrial, os conservadores se aferravam à defesa da velha ordem, de sociedade estratificada e comércio protegido por tarifas, se opondo, portanto, aos liberais, defensores da inovação, da mobilidade social e do livre capitalismo. Os anos se passaram, e chegou o tempo em que os liberais (na economia) seriam associados aos conservadores, enquanto os liberais dos costumes se identificariam com a esquerda. As tensões e contradições do conservadorismo, quando nasceu, continuam vivas, tentando conciliar a valorização das tradições e, portanto, de uma suposta estabilidade passada, com as decantadas inovações disruptivas do capitalismo, que (teoricamente) melhorariam as condições de vida de um número crescente de pessoas? Ao longo das mais de 500 páginas do livro, Fawcett, seguindo uma ordem cronológica em zigue-zague que começa no século 18 e termina em nossos dias, passeia com bastante liberdade por centenas de personagens, alguns bastante conhecidos, como Chateaubriand, Tocqueville, Jefferson, De Gaulle, Eisenhower, Churchill, Thatcher, Reagan, Trump, e outros hoje em dia menos lembrados, mas não menos importantes, como Von Gentz, Enoch Powell, Arnold Gehlen e David Willetts.  Este não é um livro para se ler com pressa, e que requer idas constantes à estante, ou à internet, para se checar nomes e referências. São páginas densas, nas quais se aprende muita coisa e, mais importante, nas quais somos levados a refletir sobre uma série de conceitos que costumávamos assumir como estabelecidos. Mais do que preso a valores fixos, o conservadorismo se transforma ao longo do tempo: se ontem defendia-se a monarquia e os direitos da nobreza, evolui-se, por exemplo, para “Deus, pátria e família.” Se no passado lutava-se pela permanência de vetustas instituições, hoje pode-se alegar que as instituições estão se interpondo entre o líder e “seu” povo. Um dos maiores ícones do conservadorismo da segunda metade do século 20, Margaret Thatcher, defendia, na Inglaterra dos anos 1980, ideias que teriam encantado os liberais e abominado os conservadores de cento e cinquenta anos antes. Ao mesmo tempo, é curioso como alguns debates parecem não mudar jamais: em 1885, o político liberal inglês Joseph Chamberlain reclamava da intransigência dos conservadores com relação a um aumento de impostos com destinação social: “Qual é o montante que a propriedade está disposta a pagar pela segurança e estabilidade de que desfruta?” Um benefício adicional que este livro proporciona é que, ao ampliar nosso repertório, nos fornece inúmeras possibilidades de exemplificar o conservadorismo evitando a já surrada fala de Tancredi no romance O Leopardo, de Lampedusa (“às vezes as coisas precisam mudar para que permaneçam como estão”). Pode-se usar, por exemplo, esta frase de Joseph de Maistre: “Se eu fosse um soberano ateu, defenderia a infalibilidade papal, a fim de manter a paz e a ordem em meus estados.” (ideia que Joaquim Nabuco repetiria, com outras palavras, no Brasil). Ou a frase do filósofo francês Louis de Bonald (1754-1840), mostrando o quanto o conservadorismo do começo do século 19 pode, por vezes, se aproximar dos progressistas do 21: “Onde houver máquinas para tomar o lugar de homens, muitos homens serão apenas máquinas.”  *É AUTOR DE ‘POESIA CHINESA’ (SESI)

“Com a esquerda retraída, tanto intelectualmente quanto em termos partidários, quem comanda a política atual é a direita. Mas que direita é essa? É o conservadorismo predominantemente liberal que endossou os feitos da democracia liberal pós-1945 ou é uma direita radical, anti-liberal, que alega falar “pelo povo”? Se você pensou no Brasil de hoje ao ler estas linhas, se enganou. Ou não. Elas são, em tradução livre, o segundo parágrafo de Conservatism – The Fight for Tradition (Conservadorismo – A Luta pela Tradição), o novo livro de Edmund Fawcett, pensador refinado e ex-jornalista da revista The Economist por mais de 30 anos. A motivação principal do autor, neste trabalho, era o que se passava nos Estados Unidos de Trump e na Inglaterra do Brexit, que simbolizavam e alimentavam o crescimento de uma direita agressiva, populista e anti-intelectual que haviam se transformado num fenômeno global (do qual nós, no Brasil, não escaparíamos). Assim como nos Estados Unidos existe um fosso gigantesco a separar a direita de um estrategista como John Foster Dulles de um populista como Steve Bannon, no Brasil (que não é mencionado) dá vontade de chorar se comparamos, por exemplo, o conservadorismo elegante de um Alceu Amoroso Lima com a boçalidade terraplanista de um Olavo de Carvalho.

'Gótico Americano' (1930), de Grant Wood Foto: School of the Art Institute of Chicago

Este livro é, de certa forma, uma continuação ao elogiado trabalho anterior de Fawcett, Liberalism, the Life of an Idea (Liberalismo, a Vida de uma Ideia, em tradução livre), de 2014. Trata-se de um longo e erudito ensaio, no qual acompanhamos, alternadamente, vidas e ideias de teóricos e políticos ao longo dos eventos e das desventuras da história. O livro começa explicando as ideias dos dois principais fundadores – na visão do autor – do conservadorismo moderno, Edmund Burke (1729-97) e Joseph de Maistre (1753-1821), e já ali, no nascedouro, são explicitadas as contradições que marcaram o conservadorismo desde sempre: como se posicionar entre razão e religião, entre vontade popular e tradição, entre renovação e revolução, entre direitos individuais e escravidão. Por exemplo, a Revolução Francesa era geralmente vista como destruidora de costumes, direitos e tradições, consequentemente negativa, ao passo que a Guerra de Independência americana, ao lutar por direitos que a Coroa inglesa havia tomado dos colonos, era considerada restauradora e, portanto, positiva.  Ao mesmo tempo, como o próprio autor admite, não é fácil definir o que é “conservadorismo”, até porque as coisas mudam ao longo do tempo. Por exemplo, no começo da Revolução Industrial, os conservadores se aferravam à defesa da velha ordem, de sociedade estratificada e comércio protegido por tarifas, se opondo, portanto, aos liberais, defensores da inovação, da mobilidade social e do livre capitalismo. Os anos se passaram, e chegou o tempo em que os liberais (na economia) seriam associados aos conservadores, enquanto os liberais dos costumes se identificariam com a esquerda. As tensões e contradições do conservadorismo, quando nasceu, continuam vivas, tentando conciliar a valorização das tradições e, portanto, de uma suposta estabilidade passada, com as decantadas inovações disruptivas do capitalismo, que (teoricamente) melhorariam as condições de vida de um número crescente de pessoas? Ao longo das mais de 500 páginas do livro, Fawcett, seguindo uma ordem cronológica em zigue-zague que começa no século 18 e termina em nossos dias, passeia com bastante liberdade por centenas de personagens, alguns bastante conhecidos, como Chateaubriand, Tocqueville, Jefferson, De Gaulle, Eisenhower, Churchill, Thatcher, Reagan, Trump, e outros hoje em dia menos lembrados, mas não menos importantes, como Von Gentz, Enoch Powell, Arnold Gehlen e David Willetts.  Este não é um livro para se ler com pressa, e que requer idas constantes à estante, ou à internet, para se checar nomes e referências. São páginas densas, nas quais se aprende muita coisa e, mais importante, nas quais somos levados a refletir sobre uma série de conceitos que costumávamos assumir como estabelecidos. Mais do que preso a valores fixos, o conservadorismo se transforma ao longo do tempo: se ontem defendia-se a monarquia e os direitos da nobreza, evolui-se, por exemplo, para “Deus, pátria e família.” Se no passado lutava-se pela permanência de vetustas instituições, hoje pode-se alegar que as instituições estão se interpondo entre o líder e “seu” povo. Um dos maiores ícones do conservadorismo da segunda metade do século 20, Margaret Thatcher, defendia, na Inglaterra dos anos 1980, ideias que teriam encantado os liberais e abominado os conservadores de cento e cinquenta anos antes. Ao mesmo tempo, é curioso como alguns debates parecem não mudar jamais: em 1885, o político liberal inglês Joseph Chamberlain reclamava da intransigência dos conservadores com relação a um aumento de impostos com destinação social: “Qual é o montante que a propriedade está disposta a pagar pela segurança e estabilidade de que desfruta?” Um benefício adicional que este livro proporciona é que, ao ampliar nosso repertório, nos fornece inúmeras possibilidades de exemplificar o conservadorismo evitando a já surrada fala de Tancredi no romance O Leopardo, de Lampedusa (“às vezes as coisas precisam mudar para que permaneçam como estão”). Pode-se usar, por exemplo, esta frase de Joseph de Maistre: “Se eu fosse um soberano ateu, defenderia a infalibilidade papal, a fim de manter a paz e a ordem em meus estados.” (ideia que Joaquim Nabuco repetiria, com outras palavras, no Brasil). Ou a frase do filósofo francês Louis de Bonald (1754-1840), mostrando o quanto o conservadorismo do começo do século 19 pode, por vezes, se aproximar dos progressistas do 21: “Onde houver máquinas para tomar o lugar de homens, muitos homens serão apenas máquinas.”  *É AUTOR DE ‘POESIA CHINESA’ (SESI)

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