Aos 101, o poeta Lawrence Ferlinghetti revisita o passado em livro


Um dos nomes da geração beat lança o romance autobiográfico 'Little Boy'

Por André Caramuru Aubert

Poucos lugares no mundo tiveram uma importância comparável à Califórnia na definição dos rumos da cultura mundial no século 20. E não estou falando de Hollywood ou Disneylândia, mas à contracultura e tudo o que veio a reboque: os beats, a luta pelos direitos civis, o movimento hippie, as canções de protesto, o pé na estrada, a volta à natureza, o zen-budismo ocidental, o veganismo... E poucas pessoas podem dizer que tiveram um papel tão central nesses movimentos, seja como protagonistas, seja como testemunhas, como o poeta Lawrence Ferlinghetti.

O poeta Lawrence Ferlinghetti em meio às suas pinturas 'Voyager #1'e'Voyager #2' Foto: Brian Flaherty/The New York Times

Na festa de aniversário de seus 100 anos, em março de 2019, Ferlinghetti não se mostrava muito animado. Numa entrevista dada ao repórter Tom Vitale, da rádio NPR, ele reclamava de ter chegado a um ponto, numa vida excessivamente longa, em que nem mesmo conseguia mais ler ou desenhar. Mas não havia perdido nem um pouquinho do humor ácido, da lucidez e nem de suas convicções. Ele ainda acreditava no poder que a arte tem de transformar o mundo e as pessoas e reclamava que, em seu bar preferido em São Francisco, o Café Trieste, as pessoas não conversavam mais, porque cada um vivia mergulhado em seu próprio celular. No fim, indagado sobre qual seria o segredo para viver tantos anos, respondeu na lata: “Nunca deixe de dar boas risadas.” Alguns meses depois, naquele mesmo ano de 2019, Lawrence Ferlinghetti lançou Little Boy (Menininho, em tradução livre), o romance autobiográfico no qual vinha trabalhando havia anos. E, se alguém esperava uma narrativa tradicional, viu suas expectativas atendidas até mais ou menos a página vinte, onde o autor conta sua complicadíssima e improvável infância. Mas, dali em diante, até o ponto final, na página 179, o que se lê é um vertiginoso fluxo de consciência sem pontuação, por vezes parecendo mais um poema em prosa tipicamente beat, no qual lembranças se misturam a reflexões sobre política, religião e mais um monte de coisas, sem qualquer nexo aparente. Lawrence Ferlinghetti nasceu em 1919 em Yonkers, Nova York, filho de um imigrante italiano e uma mãe de origem caribenha com antepassados franceses por um lado e cristãos-novos portugueses, de outro. Ele foi o quinto filho do casal e, quando, meses após seu nascimento, o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu, sua vida sofreu a primeira mudança. Sem dinheiro para sustentar todas as crianças, a mãe entregou o bebê a uma irmã, que o levou para a França. Depois de alguns anos ela voltou para os Estados Unidos e, também sem dinheiro, acabou perdendo a guarda do garoto, que foi enviado para um orfanato público. Passou-se mais algum tempo, a tia conseguiu um emprego e resgatou o garoto. Ela agora era governanta em uma mansão de milionários. Passou-se mais algum tempo, e a tia, que era simpática e expansiva, parece ter sido simpática e expansiva demais com o patrão, levando a patroa a demiti-la. Mas, nesse meio tempo, o garoto, Lawrence, com o mesmo nome de um filho morto do casal, foi convidado a permanecer. A tia deixou, e Ferlinhghetti se tornou um menino extraoficialmente milionário (pois uma adoção formal jamais seria feita). Apesar de lamentar a frieza afetiva de sua família semi-adotiva, Ferlinghetti, em Little Boy, registra o enorme carinho que sentia por ela, especialmente pelo “pai.” E, no mínimo, ele pôde frequentar boas escolas e se formar em jornalismo. Depois de trabalhar brevemente na revista Time, estourou a II Guerra, ele foi convocado e, entre outras coisas, comandou um navio antissubmarino no Dia-D e lutou, depois, no Pacífico. Quando desembarcou em Nagasaki, alguns dias depois da Bomba, assombrado pelo que viu, se tornou, no ato, um pacifista.  Terminada a guerra, Ferlinghetti fez um mestrado em literatura na Universidade Columbia, e seguiu direto para Paris, para o doutorado na Sorbonne. Quando voltou aos Estados Unidos, já casado, foi direto para São Francisco. E foi a partir desse momento, em 1953, que a vida dele passou do status de curiosa epopeia pessoal para o de alguém que faria uma grande diferença no mundo.  Assim que chegou à Califórnia Ferlinghetti se aproximou dos artistas e poetas da área, como Kenneth Rexroth, Robert Duncan e Gary Snyder, se tornou uma referência e ajudou a deslanchar um movimento que viria a ser chamado de San Francisco Renaissance, de enorme influência para a poesia estadunidense das décadas seguintes. Seus poemas começaram a sair em publicações alternativas, e uma delas se chamava City Lights (em homenagem ao filme Luzes da Cidade, de Chaplin). Pouco tempo depois, o editor da revista, Peter Martin, resolveu abrir uma livraria, chamando Ferlinghetti para ajudar na empreitada. Quando, dois anos depois, o nova-iorquino Martin resolveu voltar para casa, o sócio ficou sozinho, expandido as atividades e inaugurando, no mesmo espaço (onde ele vivia, e ainda vive, na sobreloja), uma editora. A City Lights, que já havia se tornado o mais famoso endereço da contracultura californiana, logo seria também um dos seus mais influentes selos editoriais. Em 1957, a City Lights editaria Howl (Uivo), o icônico poema de Allen Ginsberg declamado num evento organizado por Rexroth em São Francisco dois anos antes. Sob a alegação de obscenidade, o livro foi apreendido, e Ferlinghetti e seu assistente (o também icônico Shigeyoshi Murao), presos e processados. Num julgamento emblemático para a democracia estadunidense, em que triunfou a tese da liberdade de expressão da Primeira Emenda, o livro acabou liberado, e os editores, absolvidos, abrindo-se o caminho para que outras obras, até então proibidas, de autores como D. H. Lawrence e Henry Miller, pudessem ser publicadas. Por tudo o que fez como editor, livreiro e agitador cultural, Ferlinghetti sempre foi mais lembrado por essas atividades do que pela poesia que escreveu. Mais de um crítico o descreveu como um poeta beat menor, com uma obra que não está à altura das de, por exemplo, Allen Ginsberg, Jack Kerouac ou William Burroughs. Nada mais injusto – e impreciso. Para começar, Ferlinghetti jamais se considerou um beat, ainda que em seus poemas seja possível identificar, por vezes, os ecos daquele movimento. E considerar sua poesia como “menor” não faz o menor sentido. Em 1958 ele lançou A Coney Island of the Mind, uma coletânea de poemas que chegaria a inacreditáveis um milhão de cópias vendidas e foi traduzido para mais de uma dúzia de línguas, tendo sido, talvez, o livro de poemas mais lido de todos os tempos nos Estados Unidos. Não eram poemas que seguiam o tom predominantemente otimista do país daqueles anos. O livro abre com um poema que começa assim: “Nas melhores cenas de Goya parece que vemos / as pessoas do mundo / no exato momento em que / recebem pela primeira vez o título de / ‘sofrida humanidade.’” E termina com “Somos as mesmas pessoas / apenas longe de casa / em autoestradas de cinquenta faixas / num continente de concreto / com adocicados anúncios preenchendo os espaços / ilustrando ilusões imbecis de felicidade // a cena exibe menos carroças de carrascos / e mais cidadãos chapados / em carros pintados / com suas placas esquisitas / e seus motores / que devoram a América.” É impossível pensar nos beats, no movimento hippie, nas canções de protesto, nas marchas contra a guerra do Vietnã, na cultura do pé na estrada, nas lutas pelos direitos civis e na revalorização da natureza, entre outros temas caros à contracultura norte-americana, sem pensar em Lawrence Ferlinghetti e na City Lights. De um jeito ou de outro, o agitador, sua livraria e sua editora estavam por perto, fosse contestando, testemunhando ou divulgando. A história haverá de guardar um lugar à parte aos seus belos poemas. ANDRÉ CARAMURU AUBERT É HISTORIADOR E ESCRITOR

Poucos lugares no mundo tiveram uma importância comparável à Califórnia na definição dos rumos da cultura mundial no século 20. E não estou falando de Hollywood ou Disneylândia, mas à contracultura e tudo o que veio a reboque: os beats, a luta pelos direitos civis, o movimento hippie, as canções de protesto, o pé na estrada, a volta à natureza, o zen-budismo ocidental, o veganismo... E poucas pessoas podem dizer que tiveram um papel tão central nesses movimentos, seja como protagonistas, seja como testemunhas, como o poeta Lawrence Ferlinghetti.

O poeta Lawrence Ferlinghetti em meio às suas pinturas 'Voyager #1'e'Voyager #2' Foto: Brian Flaherty/The New York Times

Na festa de aniversário de seus 100 anos, em março de 2019, Ferlinghetti não se mostrava muito animado. Numa entrevista dada ao repórter Tom Vitale, da rádio NPR, ele reclamava de ter chegado a um ponto, numa vida excessivamente longa, em que nem mesmo conseguia mais ler ou desenhar. Mas não havia perdido nem um pouquinho do humor ácido, da lucidez e nem de suas convicções. Ele ainda acreditava no poder que a arte tem de transformar o mundo e as pessoas e reclamava que, em seu bar preferido em São Francisco, o Café Trieste, as pessoas não conversavam mais, porque cada um vivia mergulhado em seu próprio celular. No fim, indagado sobre qual seria o segredo para viver tantos anos, respondeu na lata: “Nunca deixe de dar boas risadas.” Alguns meses depois, naquele mesmo ano de 2019, Lawrence Ferlinghetti lançou Little Boy (Menininho, em tradução livre), o romance autobiográfico no qual vinha trabalhando havia anos. E, se alguém esperava uma narrativa tradicional, viu suas expectativas atendidas até mais ou menos a página vinte, onde o autor conta sua complicadíssima e improvável infância. Mas, dali em diante, até o ponto final, na página 179, o que se lê é um vertiginoso fluxo de consciência sem pontuação, por vezes parecendo mais um poema em prosa tipicamente beat, no qual lembranças se misturam a reflexões sobre política, religião e mais um monte de coisas, sem qualquer nexo aparente. Lawrence Ferlinghetti nasceu em 1919 em Yonkers, Nova York, filho de um imigrante italiano e uma mãe de origem caribenha com antepassados franceses por um lado e cristãos-novos portugueses, de outro. Ele foi o quinto filho do casal e, quando, meses após seu nascimento, o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu, sua vida sofreu a primeira mudança. Sem dinheiro para sustentar todas as crianças, a mãe entregou o bebê a uma irmã, que o levou para a França. Depois de alguns anos ela voltou para os Estados Unidos e, também sem dinheiro, acabou perdendo a guarda do garoto, que foi enviado para um orfanato público. Passou-se mais algum tempo, a tia conseguiu um emprego e resgatou o garoto. Ela agora era governanta em uma mansão de milionários. Passou-se mais algum tempo, e a tia, que era simpática e expansiva, parece ter sido simpática e expansiva demais com o patrão, levando a patroa a demiti-la. Mas, nesse meio tempo, o garoto, Lawrence, com o mesmo nome de um filho morto do casal, foi convidado a permanecer. A tia deixou, e Ferlinhghetti se tornou um menino extraoficialmente milionário (pois uma adoção formal jamais seria feita). Apesar de lamentar a frieza afetiva de sua família semi-adotiva, Ferlinghetti, em Little Boy, registra o enorme carinho que sentia por ela, especialmente pelo “pai.” E, no mínimo, ele pôde frequentar boas escolas e se formar em jornalismo. Depois de trabalhar brevemente na revista Time, estourou a II Guerra, ele foi convocado e, entre outras coisas, comandou um navio antissubmarino no Dia-D e lutou, depois, no Pacífico. Quando desembarcou em Nagasaki, alguns dias depois da Bomba, assombrado pelo que viu, se tornou, no ato, um pacifista.  Terminada a guerra, Ferlinghetti fez um mestrado em literatura na Universidade Columbia, e seguiu direto para Paris, para o doutorado na Sorbonne. Quando voltou aos Estados Unidos, já casado, foi direto para São Francisco. E foi a partir desse momento, em 1953, que a vida dele passou do status de curiosa epopeia pessoal para o de alguém que faria uma grande diferença no mundo.  Assim que chegou à Califórnia Ferlinghetti se aproximou dos artistas e poetas da área, como Kenneth Rexroth, Robert Duncan e Gary Snyder, se tornou uma referência e ajudou a deslanchar um movimento que viria a ser chamado de San Francisco Renaissance, de enorme influência para a poesia estadunidense das décadas seguintes. Seus poemas começaram a sair em publicações alternativas, e uma delas se chamava City Lights (em homenagem ao filme Luzes da Cidade, de Chaplin). Pouco tempo depois, o editor da revista, Peter Martin, resolveu abrir uma livraria, chamando Ferlinghetti para ajudar na empreitada. Quando, dois anos depois, o nova-iorquino Martin resolveu voltar para casa, o sócio ficou sozinho, expandido as atividades e inaugurando, no mesmo espaço (onde ele vivia, e ainda vive, na sobreloja), uma editora. A City Lights, que já havia se tornado o mais famoso endereço da contracultura californiana, logo seria também um dos seus mais influentes selos editoriais. Em 1957, a City Lights editaria Howl (Uivo), o icônico poema de Allen Ginsberg declamado num evento organizado por Rexroth em São Francisco dois anos antes. Sob a alegação de obscenidade, o livro foi apreendido, e Ferlinghetti e seu assistente (o também icônico Shigeyoshi Murao), presos e processados. Num julgamento emblemático para a democracia estadunidense, em que triunfou a tese da liberdade de expressão da Primeira Emenda, o livro acabou liberado, e os editores, absolvidos, abrindo-se o caminho para que outras obras, até então proibidas, de autores como D. H. Lawrence e Henry Miller, pudessem ser publicadas. Por tudo o que fez como editor, livreiro e agitador cultural, Ferlinghetti sempre foi mais lembrado por essas atividades do que pela poesia que escreveu. Mais de um crítico o descreveu como um poeta beat menor, com uma obra que não está à altura das de, por exemplo, Allen Ginsberg, Jack Kerouac ou William Burroughs. Nada mais injusto – e impreciso. Para começar, Ferlinghetti jamais se considerou um beat, ainda que em seus poemas seja possível identificar, por vezes, os ecos daquele movimento. E considerar sua poesia como “menor” não faz o menor sentido. Em 1958 ele lançou A Coney Island of the Mind, uma coletânea de poemas que chegaria a inacreditáveis um milhão de cópias vendidas e foi traduzido para mais de uma dúzia de línguas, tendo sido, talvez, o livro de poemas mais lido de todos os tempos nos Estados Unidos. Não eram poemas que seguiam o tom predominantemente otimista do país daqueles anos. O livro abre com um poema que começa assim: “Nas melhores cenas de Goya parece que vemos / as pessoas do mundo / no exato momento em que / recebem pela primeira vez o título de / ‘sofrida humanidade.’” E termina com “Somos as mesmas pessoas / apenas longe de casa / em autoestradas de cinquenta faixas / num continente de concreto / com adocicados anúncios preenchendo os espaços / ilustrando ilusões imbecis de felicidade // a cena exibe menos carroças de carrascos / e mais cidadãos chapados / em carros pintados / com suas placas esquisitas / e seus motores / que devoram a América.” É impossível pensar nos beats, no movimento hippie, nas canções de protesto, nas marchas contra a guerra do Vietnã, na cultura do pé na estrada, nas lutas pelos direitos civis e na revalorização da natureza, entre outros temas caros à contracultura norte-americana, sem pensar em Lawrence Ferlinghetti e na City Lights. De um jeito ou de outro, o agitador, sua livraria e sua editora estavam por perto, fosse contestando, testemunhando ou divulgando. A história haverá de guardar um lugar à parte aos seus belos poemas. ANDRÉ CARAMURU AUBERT É HISTORIADOR E ESCRITOR

Poucos lugares no mundo tiveram uma importância comparável à Califórnia na definição dos rumos da cultura mundial no século 20. E não estou falando de Hollywood ou Disneylândia, mas à contracultura e tudo o que veio a reboque: os beats, a luta pelos direitos civis, o movimento hippie, as canções de protesto, o pé na estrada, a volta à natureza, o zen-budismo ocidental, o veganismo... E poucas pessoas podem dizer que tiveram um papel tão central nesses movimentos, seja como protagonistas, seja como testemunhas, como o poeta Lawrence Ferlinghetti.

O poeta Lawrence Ferlinghetti em meio às suas pinturas 'Voyager #1'e'Voyager #2' Foto: Brian Flaherty/The New York Times

Na festa de aniversário de seus 100 anos, em março de 2019, Ferlinghetti não se mostrava muito animado. Numa entrevista dada ao repórter Tom Vitale, da rádio NPR, ele reclamava de ter chegado a um ponto, numa vida excessivamente longa, em que nem mesmo conseguia mais ler ou desenhar. Mas não havia perdido nem um pouquinho do humor ácido, da lucidez e nem de suas convicções. Ele ainda acreditava no poder que a arte tem de transformar o mundo e as pessoas e reclamava que, em seu bar preferido em São Francisco, o Café Trieste, as pessoas não conversavam mais, porque cada um vivia mergulhado em seu próprio celular. No fim, indagado sobre qual seria o segredo para viver tantos anos, respondeu na lata: “Nunca deixe de dar boas risadas.” Alguns meses depois, naquele mesmo ano de 2019, Lawrence Ferlinghetti lançou Little Boy (Menininho, em tradução livre), o romance autobiográfico no qual vinha trabalhando havia anos. E, se alguém esperava uma narrativa tradicional, viu suas expectativas atendidas até mais ou menos a página vinte, onde o autor conta sua complicadíssima e improvável infância. Mas, dali em diante, até o ponto final, na página 179, o que se lê é um vertiginoso fluxo de consciência sem pontuação, por vezes parecendo mais um poema em prosa tipicamente beat, no qual lembranças se misturam a reflexões sobre política, religião e mais um monte de coisas, sem qualquer nexo aparente. Lawrence Ferlinghetti nasceu em 1919 em Yonkers, Nova York, filho de um imigrante italiano e uma mãe de origem caribenha com antepassados franceses por um lado e cristãos-novos portugueses, de outro. Ele foi o quinto filho do casal e, quando, meses após seu nascimento, o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu, sua vida sofreu a primeira mudança. Sem dinheiro para sustentar todas as crianças, a mãe entregou o bebê a uma irmã, que o levou para a França. Depois de alguns anos ela voltou para os Estados Unidos e, também sem dinheiro, acabou perdendo a guarda do garoto, que foi enviado para um orfanato público. Passou-se mais algum tempo, a tia conseguiu um emprego e resgatou o garoto. Ela agora era governanta em uma mansão de milionários. Passou-se mais algum tempo, e a tia, que era simpática e expansiva, parece ter sido simpática e expansiva demais com o patrão, levando a patroa a demiti-la. Mas, nesse meio tempo, o garoto, Lawrence, com o mesmo nome de um filho morto do casal, foi convidado a permanecer. A tia deixou, e Ferlinhghetti se tornou um menino extraoficialmente milionário (pois uma adoção formal jamais seria feita). Apesar de lamentar a frieza afetiva de sua família semi-adotiva, Ferlinghetti, em Little Boy, registra o enorme carinho que sentia por ela, especialmente pelo “pai.” E, no mínimo, ele pôde frequentar boas escolas e se formar em jornalismo. Depois de trabalhar brevemente na revista Time, estourou a II Guerra, ele foi convocado e, entre outras coisas, comandou um navio antissubmarino no Dia-D e lutou, depois, no Pacífico. Quando desembarcou em Nagasaki, alguns dias depois da Bomba, assombrado pelo que viu, se tornou, no ato, um pacifista.  Terminada a guerra, Ferlinghetti fez um mestrado em literatura na Universidade Columbia, e seguiu direto para Paris, para o doutorado na Sorbonne. Quando voltou aos Estados Unidos, já casado, foi direto para São Francisco. E foi a partir desse momento, em 1953, que a vida dele passou do status de curiosa epopeia pessoal para o de alguém que faria uma grande diferença no mundo.  Assim que chegou à Califórnia Ferlinghetti se aproximou dos artistas e poetas da área, como Kenneth Rexroth, Robert Duncan e Gary Snyder, se tornou uma referência e ajudou a deslanchar um movimento que viria a ser chamado de San Francisco Renaissance, de enorme influência para a poesia estadunidense das décadas seguintes. Seus poemas começaram a sair em publicações alternativas, e uma delas se chamava City Lights (em homenagem ao filme Luzes da Cidade, de Chaplin). Pouco tempo depois, o editor da revista, Peter Martin, resolveu abrir uma livraria, chamando Ferlinghetti para ajudar na empreitada. Quando, dois anos depois, o nova-iorquino Martin resolveu voltar para casa, o sócio ficou sozinho, expandido as atividades e inaugurando, no mesmo espaço (onde ele vivia, e ainda vive, na sobreloja), uma editora. A City Lights, que já havia se tornado o mais famoso endereço da contracultura californiana, logo seria também um dos seus mais influentes selos editoriais. Em 1957, a City Lights editaria Howl (Uivo), o icônico poema de Allen Ginsberg declamado num evento organizado por Rexroth em São Francisco dois anos antes. Sob a alegação de obscenidade, o livro foi apreendido, e Ferlinghetti e seu assistente (o também icônico Shigeyoshi Murao), presos e processados. Num julgamento emblemático para a democracia estadunidense, em que triunfou a tese da liberdade de expressão da Primeira Emenda, o livro acabou liberado, e os editores, absolvidos, abrindo-se o caminho para que outras obras, até então proibidas, de autores como D. H. Lawrence e Henry Miller, pudessem ser publicadas. Por tudo o que fez como editor, livreiro e agitador cultural, Ferlinghetti sempre foi mais lembrado por essas atividades do que pela poesia que escreveu. Mais de um crítico o descreveu como um poeta beat menor, com uma obra que não está à altura das de, por exemplo, Allen Ginsberg, Jack Kerouac ou William Burroughs. Nada mais injusto – e impreciso. Para começar, Ferlinghetti jamais se considerou um beat, ainda que em seus poemas seja possível identificar, por vezes, os ecos daquele movimento. E considerar sua poesia como “menor” não faz o menor sentido. Em 1958 ele lançou A Coney Island of the Mind, uma coletânea de poemas que chegaria a inacreditáveis um milhão de cópias vendidas e foi traduzido para mais de uma dúzia de línguas, tendo sido, talvez, o livro de poemas mais lido de todos os tempos nos Estados Unidos. Não eram poemas que seguiam o tom predominantemente otimista do país daqueles anos. O livro abre com um poema que começa assim: “Nas melhores cenas de Goya parece que vemos / as pessoas do mundo / no exato momento em que / recebem pela primeira vez o título de / ‘sofrida humanidade.’” E termina com “Somos as mesmas pessoas / apenas longe de casa / em autoestradas de cinquenta faixas / num continente de concreto / com adocicados anúncios preenchendo os espaços / ilustrando ilusões imbecis de felicidade // a cena exibe menos carroças de carrascos / e mais cidadãos chapados / em carros pintados / com suas placas esquisitas / e seus motores / que devoram a América.” É impossível pensar nos beats, no movimento hippie, nas canções de protesto, nas marchas contra a guerra do Vietnã, na cultura do pé na estrada, nas lutas pelos direitos civis e na revalorização da natureza, entre outros temas caros à contracultura norte-americana, sem pensar em Lawrence Ferlinghetti e na City Lights. De um jeito ou de outro, o agitador, sua livraria e sua editora estavam por perto, fosse contestando, testemunhando ou divulgando. A história haverá de guardar um lugar à parte aos seus belos poemas. ANDRÉ CARAMURU AUBERT É HISTORIADOR E ESCRITOR

Poucos lugares no mundo tiveram uma importância comparável à Califórnia na definição dos rumos da cultura mundial no século 20. E não estou falando de Hollywood ou Disneylândia, mas à contracultura e tudo o que veio a reboque: os beats, a luta pelos direitos civis, o movimento hippie, as canções de protesto, o pé na estrada, a volta à natureza, o zen-budismo ocidental, o veganismo... E poucas pessoas podem dizer que tiveram um papel tão central nesses movimentos, seja como protagonistas, seja como testemunhas, como o poeta Lawrence Ferlinghetti.

O poeta Lawrence Ferlinghetti em meio às suas pinturas 'Voyager #1'e'Voyager #2' Foto: Brian Flaherty/The New York Times

Na festa de aniversário de seus 100 anos, em março de 2019, Ferlinghetti não se mostrava muito animado. Numa entrevista dada ao repórter Tom Vitale, da rádio NPR, ele reclamava de ter chegado a um ponto, numa vida excessivamente longa, em que nem mesmo conseguia mais ler ou desenhar. Mas não havia perdido nem um pouquinho do humor ácido, da lucidez e nem de suas convicções. Ele ainda acreditava no poder que a arte tem de transformar o mundo e as pessoas e reclamava que, em seu bar preferido em São Francisco, o Café Trieste, as pessoas não conversavam mais, porque cada um vivia mergulhado em seu próprio celular. No fim, indagado sobre qual seria o segredo para viver tantos anos, respondeu na lata: “Nunca deixe de dar boas risadas.” Alguns meses depois, naquele mesmo ano de 2019, Lawrence Ferlinghetti lançou Little Boy (Menininho, em tradução livre), o romance autobiográfico no qual vinha trabalhando havia anos. E, se alguém esperava uma narrativa tradicional, viu suas expectativas atendidas até mais ou menos a página vinte, onde o autor conta sua complicadíssima e improvável infância. Mas, dali em diante, até o ponto final, na página 179, o que se lê é um vertiginoso fluxo de consciência sem pontuação, por vezes parecendo mais um poema em prosa tipicamente beat, no qual lembranças se misturam a reflexões sobre política, religião e mais um monte de coisas, sem qualquer nexo aparente. Lawrence Ferlinghetti nasceu em 1919 em Yonkers, Nova York, filho de um imigrante italiano e uma mãe de origem caribenha com antepassados franceses por um lado e cristãos-novos portugueses, de outro. Ele foi o quinto filho do casal e, quando, meses após seu nascimento, o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu, sua vida sofreu a primeira mudança. Sem dinheiro para sustentar todas as crianças, a mãe entregou o bebê a uma irmã, que o levou para a França. Depois de alguns anos ela voltou para os Estados Unidos e, também sem dinheiro, acabou perdendo a guarda do garoto, que foi enviado para um orfanato público. Passou-se mais algum tempo, a tia conseguiu um emprego e resgatou o garoto. Ela agora era governanta em uma mansão de milionários. Passou-se mais algum tempo, e a tia, que era simpática e expansiva, parece ter sido simpática e expansiva demais com o patrão, levando a patroa a demiti-la. Mas, nesse meio tempo, o garoto, Lawrence, com o mesmo nome de um filho morto do casal, foi convidado a permanecer. A tia deixou, e Ferlinhghetti se tornou um menino extraoficialmente milionário (pois uma adoção formal jamais seria feita). Apesar de lamentar a frieza afetiva de sua família semi-adotiva, Ferlinghetti, em Little Boy, registra o enorme carinho que sentia por ela, especialmente pelo “pai.” E, no mínimo, ele pôde frequentar boas escolas e se formar em jornalismo. Depois de trabalhar brevemente na revista Time, estourou a II Guerra, ele foi convocado e, entre outras coisas, comandou um navio antissubmarino no Dia-D e lutou, depois, no Pacífico. Quando desembarcou em Nagasaki, alguns dias depois da Bomba, assombrado pelo que viu, se tornou, no ato, um pacifista.  Terminada a guerra, Ferlinghetti fez um mestrado em literatura na Universidade Columbia, e seguiu direto para Paris, para o doutorado na Sorbonne. Quando voltou aos Estados Unidos, já casado, foi direto para São Francisco. E foi a partir desse momento, em 1953, que a vida dele passou do status de curiosa epopeia pessoal para o de alguém que faria uma grande diferença no mundo.  Assim que chegou à Califórnia Ferlinghetti se aproximou dos artistas e poetas da área, como Kenneth Rexroth, Robert Duncan e Gary Snyder, se tornou uma referência e ajudou a deslanchar um movimento que viria a ser chamado de San Francisco Renaissance, de enorme influência para a poesia estadunidense das décadas seguintes. Seus poemas começaram a sair em publicações alternativas, e uma delas se chamava City Lights (em homenagem ao filme Luzes da Cidade, de Chaplin). Pouco tempo depois, o editor da revista, Peter Martin, resolveu abrir uma livraria, chamando Ferlinghetti para ajudar na empreitada. Quando, dois anos depois, o nova-iorquino Martin resolveu voltar para casa, o sócio ficou sozinho, expandido as atividades e inaugurando, no mesmo espaço (onde ele vivia, e ainda vive, na sobreloja), uma editora. A City Lights, que já havia se tornado o mais famoso endereço da contracultura californiana, logo seria também um dos seus mais influentes selos editoriais. Em 1957, a City Lights editaria Howl (Uivo), o icônico poema de Allen Ginsberg declamado num evento organizado por Rexroth em São Francisco dois anos antes. Sob a alegação de obscenidade, o livro foi apreendido, e Ferlinghetti e seu assistente (o também icônico Shigeyoshi Murao), presos e processados. Num julgamento emblemático para a democracia estadunidense, em que triunfou a tese da liberdade de expressão da Primeira Emenda, o livro acabou liberado, e os editores, absolvidos, abrindo-se o caminho para que outras obras, até então proibidas, de autores como D. H. Lawrence e Henry Miller, pudessem ser publicadas. Por tudo o que fez como editor, livreiro e agitador cultural, Ferlinghetti sempre foi mais lembrado por essas atividades do que pela poesia que escreveu. Mais de um crítico o descreveu como um poeta beat menor, com uma obra que não está à altura das de, por exemplo, Allen Ginsberg, Jack Kerouac ou William Burroughs. Nada mais injusto – e impreciso. Para começar, Ferlinghetti jamais se considerou um beat, ainda que em seus poemas seja possível identificar, por vezes, os ecos daquele movimento. E considerar sua poesia como “menor” não faz o menor sentido. Em 1958 ele lançou A Coney Island of the Mind, uma coletânea de poemas que chegaria a inacreditáveis um milhão de cópias vendidas e foi traduzido para mais de uma dúzia de línguas, tendo sido, talvez, o livro de poemas mais lido de todos os tempos nos Estados Unidos. Não eram poemas que seguiam o tom predominantemente otimista do país daqueles anos. O livro abre com um poema que começa assim: “Nas melhores cenas de Goya parece que vemos / as pessoas do mundo / no exato momento em que / recebem pela primeira vez o título de / ‘sofrida humanidade.’” E termina com “Somos as mesmas pessoas / apenas longe de casa / em autoestradas de cinquenta faixas / num continente de concreto / com adocicados anúncios preenchendo os espaços / ilustrando ilusões imbecis de felicidade // a cena exibe menos carroças de carrascos / e mais cidadãos chapados / em carros pintados / com suas placas esquisitas / e seus motores / que devoram a América.” É impossível pensar nos beats, no movimento hippie, nas canções de protesto, nas marchas contra a guerra do Vietnã, na cultura do pé na estrada, nas lutas pelos direitos civis e na revalorização da natureza, entre outros temas caros à contracultura norte-americana, sem pensar em Lawrence Ferlinghetti e na City Lights. De um jeito ou de outro, o agitador, sua livraria e sua editora estavam por perto, fosse contestando, testemunhando ou divulgando. A história haverá de guardar um lugar à parte aos seus belos poemas. ANDRÉ CARAMURU AUBERT É HISTORIADOR E ESCRITOR

Poucos lugares no mundo tiveram uma importância comparável à Califórnia na definição dos rumos da cultura mundial no século 20. E não estou falando de Hollywood ou Disneylândia, mas à contracultura e tudo o que veio a reboque: os beats, a luta pelos direitos civis, o movimento hippie, as canções de protesto, o pé na estrada, a volta à natureza, o zen-budismo ocidental, o veganismo... E poucas pessoas podem dizer que tiveram um papel tão central nesses movimentos, seja como protagonistas, seja como testemunhas, como o poeta Lawrence Ferlinghetti.

O poeta Lawrence Ferlinghetti em meio às suas pinturas 'Voyager #1'e'Voyager #2' Foto: Brian Flaherty/The New York Times

Na festa de aniversário de seus 100 anos, em março de 2019, Ferlinghetti não se mostrava muito animado. Numa entrevista dada ao repórter Tom Vitale, da rádio NPR, ele reclamava de ter chegado a um ponto, numa vida excessivamente longa, em que nem mesmo conseguia mais ler ou desenhar. Mas não havia perdido nem um pouquinho do humor ácido, da lucidez e nem de suas convicções. Ele ainda acreditava no poder que a arte tem de transformar o mundo e as pessoas e reclamava que, em seu bar preferido em São Francisco, o Café Trieste, as pessoas não conversavam mais, porque cada um vivia mergulhado em seu próprio celular. No fim, indagado sobre qual seria o segredo para viver tantos anos, respondeu na lata: “Nunca deixe de dar boas risadas.” Alguns meses depois, naquele mesmo ano de 2019, Lawrence Ferlinghetti lançou Little Boy (Menininho, em tradução livre), o romance autobiográfico no qual vinha trabalhando havia anos. E, se alguém esperava uma narrativa tradicional, viu suas expectativas atendidas até mais ou menos a página vinte, onde o autor conta sua complicadíssima e improvável infância. Mas, dali em diante, até o ponto final, na página 179, o que se lê é um vertiginoso fluxo de consciência sem pontuação, por vezes parecendo mais um poema em prosa tipicamente beat, no qual lembranças se misturam a reflexões sobre política, religião e mais um monte de coisas, sem qualquer nexo aparente. Lawrence Ferlinghetti nasceu em 1919 em Yonkers, Nova York, filho de um imigrante italiano e uma mãe de origem caribenha com antepassados franceses por um lado e cristãos-novos portugueses, de outro. Ele foi o quinto filho do casal e, quando, meses após seu nascimento, o pai sofreu um ataque cardíaco e morreu, sua vida sofreu a primeira mudança. Sem dinheiro para sustentar todas as crianças, a mãe entregou o bebê a uma irmã, que o levou para a França. Depois de alguns anos ela voltou para os Estados Unidos e, também sem dinheiro, acabou perdendo a guarda do garoto, que foi enviado para um orfanato público. Passou-se mais algum tempo, a tia conseguiu um emprego e resgatou o garoto. Ela agora era governanta em uma mansão de milionários. Passou-se mais algum tempo, e a tia, que era simpática e expansiva, parece ter sido simpática e expansiva demais com o patrão, levando a patroa a demiti-la. Mas, nesse meio tempo, o garoto, Lawrence, com o mesmo nome de um filho morto do casal, foi convidado a permanecer. A tia deixou, e Ferlinhghetti se tornou um menino extraoficialmente milionário (pois uma adoção formal jamais seria feita). Apesar de lamentar a frieza afetiva de sua família semi-adotiva, Ferlinghetti, em Little Boy, registra o enorme carinho que sentia por ela, especialmente pelo “pai.” E, no mínimo, ele pôde frequentar boas escolas e se formar em jornalismo. Depois de trabalhar brevemente na revista Time, estourou a II Guerra, ele foi convocado e, entre outras coisas, comandou um navio antissubmarino no Dia-D e lutou, depois, no Pacífico. Quando desembarcou em Nagasaki, alguns dias depois da Bomba, assombrado pelo que viu, se tornou, no ato, um pacifista.  Terminada a guerra, Ferlinghetti fez um mestrado em literatura na Universidade Columbia, e seguiu direto para Paris, para o doutorado na Sorbonne. Quando voltou aos Estados Unidos, já casado, foi direto para São Francisco. E foi a partir desse momento, em 1953, que a vida dele passou do status de curiosa epopeia pessoal para o de alguém que faria uma grande diferença no mundo.  Assim que chegou à Califórnia Ferlinghetti se aproximou dos artistas e poetas da área, como Kenneth Rexroth, Robert Duncan e Gary Snyder, se tornou uma referência e ajudou a deslanchar um movimento que viria a ser chamado de San Francisco Renaissance, de enorme influência para a poesia estadunidense das décadas seguintes. Seus poemas começaram a sair em publicações alternativas, e uma delas se chamava City Lights (em homenagem ao filme Luzes da Cidade, de Chaplin). Pouco tempo depois, o editor da revista, Peter Martin, resolveu abrir uma livraria, chamando Ferlinghetti para ajudar na empreitada. Quando, dois anos depois, o nova-iorquino Martin resolveu voltar para casa, o sócio ficou sozinho, expandido as atividades e inaugurando, no mesmo espaço (onde ele vivia, e ainda vive, na sobreloja), uma editora. A City Lights, que já havia se tornado o mais famoso endereço da contracultura californiana, logo seria também um dos seus mais influentes selos editoriais. Em 1957, a City Lights editaria Howl (Uivo), o icônico poema de Allen Ginsberg declamado num evento organizado por Rexroth em São Francisco dois anos antes. Sob a alegação de obscenidade, o livro foi apreendido, e Ferlinghetti e seu assistente (o também icônico Shigeyoshi Murao), presos e processados. Num julgamento emblemático para a democracia estadunidense, em que triunfou a tese da liberdade de expressão da Primeira Emenda, o livro acabou liberado, e os editores, absolvidos, abrindo-se o caminho para que outras obras, até então proibidas, de autores como D. H. Lawrence e Henry Miller, pudessem ser publicadas. Por tudo o que fez como editor, livreiro e agitador cultural, Ferlinghetti sempre foi mais lembrado por essas atividades do que pela poesia que escreveu. Mais de um crítico o descreveu como um poeta beat menor, com uma obra que não está à altura das de, por exemplo, Allen Ginsberg, Jack Kerouac ou William Burroughs. Nada mais injusto – e impreciso. Para começar, Ferlinghetti jamais se considerou um beat, ainda que em seus poemas seja possível identificar, por vezes, os ecos daquele movimento. E considerar sua poesia como “menor” não faz o menor sentido. Em 1958 ele lançou A Coney Island of the Mind, uma coletânea de poemas que chegaria a inacreditáveis um milhão de cópias vendidas e foi traduzido para mais de uma dúzia de línguas, tendo sido, talvez, o livro de poemas mais lido de todos os tempos nos Estados Unidos. Não eram poemas que seguiam o tom predominantemente otimista do país daqueles anos. O livro abre com um poema que começa assim: “Nas melhores cenas de Goya parece que vemos / as pessoas do mundo / no exato momento em que / recebem pela primeira vez o título de / ‘sofrida humanidade.’” E termina com “Somos as mesmas pessoas / apenas longe de casa / em autoestradas de cinquenta faixas / num continente de concreto / com adocicados anúncios preenchendo os espaços / ilustrando ilusões imbecis de felicidade // a cena exibe menos carroças de carrascos / e mais cidadãos chapados / em carros pintados / com suas placas esquisitas / e seus motores / que devoram a América.” É impossível pensar nos beats, no movimento hippie, nas canções de protesto, nas marchas contra a guerra do Vietnã, na cultura do pé na estrada, nas lutas pelos direitos civis e na revalorização da natureza, entre outros temas caros à contracultura norte-americana, sem pensar em Lawrence Ferlinghetti e na City Lights. De um jeito ou de outro, o agitador, sua livraria e sua editora estavam por perto, fosse contestando, testemunhando ou divulgando. A história haverá de guardar um lugar à parte aos seus belos poemas. ANDRÉ CARAMURU AUBERT É HISTORIADOR E ESCRITOR

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