Após tratar de pedofilia em 'Lolita', Vladimir Nabokov abordou incesto em 'Ada ou Ardor'


Romance mais comprido do aclamado escritor russo faz uma teia de referências literárias

Por Paulo Nogueira

Ada ou o Ardor foi uma minhoca que começou a serpentear na cabeça de Vladimir Nabokov em 1959, quando o autor ruminava dois projetos: A Textura do Tempo e Cartas da Terra. Ao botar a mão na massa fundiu as ideias numa única obra, seu mais longo romance (608 páginas, que a Alfaguara acaba de lançar), publicado em 1969, duas semanas antes de o escritor completar 70 anos. Nabokov batizou a personagem epônima em parte por causa da sua borboleta favorita. Desde Goethe nenhum ficcionista de primeira classe foi mais fissurado na natureza. Já aclamado por Lolita, VN se tornou o lepdopterista respeitadíssimo pelos seus pares e responsável pela respectiva seção do Museu de Zoologia da Universidade de Harvard. 

O escritor russo Vladimir Nabokov Foto: Yousuf Karsh

Ada também coleciona insetos alados. Claro que, sendo o autor um lexicófilo quase imbatível, os nomes aqui têm miríades de ressonâncias (incluindo em russo, neste romance escrito em inglês). De acordo com a pronúncia, Ada pode significar tanto Céu quanto Inferno. O coprotagonista, Vânia Veen, também pode falar pelo seu criador: V.V., Vladimir Vladimirovich. Sim, o próprio. Nabokov era um cabotino de proporções joycianas. Precisamos quase de um tabela Excel para catalogar a cornucópia de citações e trocadilhos espertinhos que gorgolejam no livro, em que cada frase é um criptograma, que vai de Borges (Osberg) a Lolita, de “bric-à-Braques” a Abraham Milton (adição de John Milton e Abraham Lincoln), de Coluba University (Columbia mais a palavra russa para “pombo”), passando pela elegante New Chesire (Catskills e alusão ao gato de Alice no País das Maravilhas), de “Les Amours du Dr. Mervago (jogo de palavras com “jiv”, “vivo” em russo, e “mert”, morto) a mais umas trocentas pirotecnias.  A própria abertura de Ada é uma citação (da abertura icônica de Anna Karienina) – e deliberadamente errada! Como se não bastasse, no final do romances há “Notas” de uma certa Vivian Darkbloom. Que – surpresa! – é tanto um anagrama de Vladimir Nabokov quanto uma personagem de Lolita. Segundo o comentário dela, a citação canhestra de Tolstoi zoa com as traduções ineptas dos clássicos russos. Beleza, mas, a meu ver, significa também que a felicidade é tão difícil de capturar como a infelicidade – e no fundo são farinhas do mesmo saco, que já vem furado.  O romance conta a história de Van Veen e seu longevo amor por sua irmã, Ada (depois de “pedofilia”, agora “incesto”. Afe!) O protagonista vira um psicólogo proeminente, e o livro corresponde às suas memórias aos 97 anos, destinadas à publicação póstuma. Tudo se desenrola no final do século 19 num planeta alternativo. Por exemplo, os EUA incluem todas as Américas (que foram descobertas por navegadores africanos). Porém, o Canadá é uma província russa chamada Estocia, ao passo que a Rússia em si, e muito da Ásia, é parte de um império chamado Tartária. O Império Britânico, que inclui a maioria da Europa e da África, é governado por um Rei Victor. A eletricidade está banida, depois de um perrengue referido como “o desastre L”. Aviões e carros existem, mas televisões e telefones não – suas funções são supridas por geringonças movidas à água.  Ou seja: um rodízio de ficção científica, crônica de costumes, melodrama familiar, literatura erótica, tratado filosófico, paródia de romances clássicos e mais um caminhão de coisas. Como o próprio autor professou numa aula na Universidade de Cornell: “Grandes romances são sobretudo grandes contos de fadas – a literatura não diz a verdade, mas a cria.” Ada é tanto “sobre” o incesto quanto Lolita é “sobre” pedofilia (ou Moby Dick sobre pescaria ou Grande Sertão: Veredas sobre jagunços). Por meio de uma prestidigitação proustiana, Nabokov recicla e restaura as próprias entidades cujas perdas descreve – em um sentido, tudo foi para o beleléu, mas no outro nada se desvaneceu. Na nossa memória, nada muda e ninguém morre. Daí que a seção crucial de Ada seja a parte 4, que contém o ensaio de Van sobre a natureza do tempo. Ele tenta separar o tempo do espaço para, assim, negar o futuro: “Não podemos desfrutar do presente, que é um instante de duração zero”. Ardis, a casa onde Van e Ada consumam seu amor, significa em grego “a ponta da flecha do tempo”, e é o ardor de Ada que une o passado e o presente e nega a entropia do “fim”.  Nabokov detestava a Psicanálise: “Só os tontos acreditam que suas aflições serão curadas com a aplicação regular de mitos gregos em suas partes pudendas”. Mas aqui ele entroniza o sortilégio da primeira parte da vida, como nos versos de Cacaso: “Minha pátria é a infância/Por isso vivo no exílio.” Adultos, somos todos exilados, e jamais voltaremos para casa, que não está no espaço, mas no tempo.  Dúvida cruel: continuará sendo possível escrever, ler e publicar romances assim? Nesta era de tantos autores missionários, que escrevem catecismos para baias tribais com histórias que são hashtags, e em que culpados e inocentes são cartas marcadas? Como notou Lauren Oyler na Bookforum: “Ansiedades sobre ser uma boa pessoa, cercada por boas pessoas, permeiam os romances contemporâneos”. E lacrou: “Por ‘boa pessoa’, escritores contemporâneos não significam alguém racional, como Platão; ou alguém misericordioso, como Agostinho; ou alguém que considera os outros como fins e não como meios, como Kant; ou alguém que celebra a singularidade alheia, como Buber. Em vez disso, uma pessoa se qualifica como ‘boa’ somente se ela se encaixar num kit específico de padrões sociológicos, e suas virtudes pessoais que se danem.” Por estrambólico que pareça, a resposta para a minha pergunta talvez seja “sim” – afinal, o Naturalismo também caducou, e rapidinho. E o que veio depois foi a saturnália verbal do Modernismo, com a sociologia voltando à vaca fria. Pois como a melhor literatura sempre soube, histórias individuais captam algo mais verdadeiro sobre todos nós do que categorias genéricas jamais o farão. Aliás, é precisamente por isso que há 2500 anos amamos a literatura – incluindo malas sublimes como Nabokov. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Ada ou o Ardor foi uma minhoca que começou a serpentear na cabeça de Vladimir Nabokov em 1959, quando o autor ruminava dois projetos: A Textura do Tempo e Cartas da Terra. Ao botar a mão na massa fundiu as ideias numa única obra, seu mais longo romance (608 páginas, que a Alfaguara acaba de lançar), publicado em 1969, duas semanas antes de o escritor completar 70 anos. Nabokov batizou a personagem epônima em parte por causa da sua borboleta favorita. Desde Goethe nenhum ficcionista de primeira classe foi mais fissurado na natureza. Já aclamado por Lolita, VN se tornou o lepdopterista respeitadíssimo pelos seus pares e responsável pela respectiva seção do Museu de Zoologia da Universidade de Harvard. 

O escritor russo Vladimir Nabokov Foto: Yousuf Karsh

Ada também coleciona insetos alados. Claro que, sendo o autor um lexicófilo quase imbatível, os nomes aqui têm miríades de ressonâncias (incluindo em russo, neste romance escrito em inglês). De acordo com a pronúncia, Ada pode significar tanto Céu quanto Inferno. O coprotagonista, Vânia Veen, também pode falar pelo seu criador: V.V., Vladimir Vladimirovich. Sim, o próprio. Nabokov era um cabotino de proporções joycianas. Precisamos quase de um tabela Excel para catalogar a cornucópia de citações e trocadilhos espertinhos que gorgolejam no livro, em que cada frase é um criptograma, que vai de Borges (Osberg) a Lolita, de “bric-à-Braques” a Abraham Milton (adição de John Milton e Abraham Lincoln), de Coluba University (Columbia mais a palavra russa para “pombo”), passando pela elegante New Chesire (Catskills e alusão ao gato de Alice no País das Maravilhas), de “Les Amours du Dr. Mervago (jogo de palavras com “jiv”, “vivo” em russo, e “mert”, morto) a mais umas trocentas pirotecnias.  A própria abertura de Ada é uma citação (da abertura icônica de Anna Karienina) – e deliberadamente errada! Como se não bastasse, no final do romances há “Notas” de uma certa Vivian Darkbloom. Que – surpresa! – é tanto um anagrama de Vladimir Nabokov quanto uma personagem de Lolita. Segundo o comentário dela, a citação canhestra de Tolstoi zoa com as traduções ineptas dos clássicos russos. Beleza, mas, a meu ver, significa também que a felicidade é tão difícil de capturar como a infelicidade – e no fundo são farinhas do mesmo saco, que já vem furado.  O romance conta a história de Van Veen e seu longevo amor por sua irmã, Ada (depois de “pedofilia”, agora “incesto”. Afe!) O protagonista vira um psicólogo proeminente, e o livro corresponde às suas memórias aos 97 anos, destinadas à publicação póstuma. Tudo se desenrola no final do século 19 num planeta alternativo. Por exemplo, os EUA incluem todas as Américas (que foram descobertas por navegadores africanos). Porém, o Canadá é uma província russa chamada Estocia, ao passo que a Rússia em si, e muito da Ásia, é parte de um império chamado Tartária. O Império Britânico, que inclui a maioria da Europa e da África, é governado por um Rei Victor. A eletricidade está banida, depois de um perrengue referido como “o desastre L”. Aviões e carros existem, mas televisões e telefones não – suas funções são supridas por geringonças movidas à água.  Ou seja: um rodízio de ficção científica, crônica de costumes, melodrama familiar, literatura erótica, tratado filosófico, paródia de romances clássicos e mais um caminhão de coisas. Como o próprio autor professou numa aula na Universidade de Cornell: “Grandes romances são sobretudo grandes contos de fadas – a literatura não diz a verdade, mas a cria.” Ada é tanto “sobre” o incesto quanto Lolita é “sobre” pedofilia (ou Moby Dick sobre pescaria ou Grande Sertão: Veredas sobre jagunços). Por meio de uma prestidigitação proustiana, Nabokov recicla e restaura as próprias entidades cujas perdas descreve – em um sentido, tudo foi para o beleléu, mas no outro nada se desvaneceu. Na nossa memória, nada muda e ninguém morre. Daí que a seção crucial de Ada seja a parte 4, que contém o ensaio de Van sobre a natureza do tempo. Ele tenta separar o tempo do espaço para, assim, negar o futuro: “Não podemos desfrutar do presente, que é um instante de duração zero”. Ardis, a casa onde Van e Ada consumam seu amor, significa em grego “a ponta da flecha do tempo”, e é o ardor de Ada que une o passado e o presente e nega a entropia do “fim”.  Nabokov detestava a Psicanálise: “Só os tontos acreditam que suas aflições serão curadas com a aplicação regular de mitos gregos em suas partes pudendas”. Mas aqui ele entroniza o sortilégio da primeira parte da vida, como nos versos de Cacaso: “Minha pátria é a infância/Por isso vivo no exílio.” Adultos, somos todos exilados, e jamais voltaremos para casa, que não está no espaço, mas no tempo.  Dúvida cruel: continuará sendo possível escrever, ler e publicar romances assim? Nesta era de tantos autores missionários, que escrevem catecismos para baias tribais com histórias que são hashtags, e em que culpados e inocentes são cartas marcadas? Como notou Lauren Oyler na Bookforum: “Ansiedades sobre ser uma boa pessoa, cercada por boas pessoas, permeiam os romances contemporâneos”. E lacrou: “Por ‘boa pessoa’, escritores contemporâneos não significam alguém racional, como Platão; ou alguém misericordioso, como Agostinho; ou alguém que considera os outros como fins e não como meios, como Kant; ou alguém que celebra a singularidade alheia, como Buber. Em vez disso, uma pessoa se qualifica como ‘boa’ somente se ela se encaixar num kit específico de padrões sociológicos, e suas virtudes pessoais que se danem.” Por estrambólico que pareça, a resposta para a minha pergunta talvez seja “sim” – afinal, o Naturalismo também caducou, e rapidinho. E o que veio depois foi a saturnália verbal do Modernismo, com a sociologia voltando à vaca fria. Pois como a melhor literatura sempre soube, histórias individuais captam algo mais verdadeiro sobre todos nós do que categorias genéricas jamais o farão. Aliás, é precisamente por isso que há 2500 anos amamos a literatura – incluindo malas sublimes como Nabokov. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Ada ou o Ardor foi uma minhoca que começou a serpentear na cabeça de Vladimir Nabokov em 1959, quando o autor ruminava dois projetos: A Textura do Tempo e Cartas da Terra. Ao botar a mão na massa fundiu as ideias numa única obra, seu mais longo romance (608 páginas, que a Alfaguara acaba de lançar), publicado em 1969, duas semanas antes de o escritor completar 70 anos. Nabokov batizou a personagem epônima em parte por causa da sua borboleta favorita. Desde Goethe nenhum ficcionista de primeira classe foi mais fissurado na natureza. Já aclamado por Lolita, VN se tornou o lepdopterista respeitadíssimo pelos seus pares e responsável pela respectiva seção do Museu de Zoologia da Universidade de Harvard. 

O escritor russo Vladimir Nabokov Foto: Yousuf Karsh

Ada também coleciona insetos alados. Claro que, sendo o autor um lexicófilo quase imbatível, os nomes aqui têm miríades de ressonâncias (incluindo em russo, neste romance escrito em inglês). De acordo com a pronúncia, Ada pode significar tanto Céu quanto Inferno. O coprotagonista, Vânia Veen, também pode falar pelo seu criador: V.V., Vladimir Vladimirovich. Sim, o próprio. Nabokov era um cabotino de proporções joycianas. Precisamos quase de um tabela Excel para catalogar a cornucópia de citações e trocadilhos espertinhos que gorgolejam no livro, em que cada frase é um criptograma, que vai de Borges (Osberg) a Lolita, de “bric-à-Braques” a Abraham Milton (adição de John Milton e Abraham Lincoln), de Coluba University (Columbia mais a palavra russa para “pombo”), passando pela elegante New Chesire (Catskills e alusão ao gato de Alice no País das Maravilhas), de “Les Amours du Dr. Mervago (jogo de palavras com “jiv”, “vivo” em russo, e “mert”, morto) a mais umas trocentas pirotecnias.  A própria abertura de Ada é uma citação (da abertura icônica de Anna Karienina) – e deliberadamente errada! Como se não bastasse, no final do romances há “Notas” de uma certa Vivian Darkbloom. Que – surpresa! – é tanto um anagrama de Vladimir Nabokov quanto uma personagem de Lolita. Segundo o comentário dela, a citação canhestra de Tolstoi zoa com as traduções ineptas dos clássicos russos. Beleza, mas, a meu ver, significa também que a felicidade é tão difícil de capturar como a infelicidade – e no fundo são farinhas do mesmo saco, que já vem furado.  O romance conta a história de Van Veen e seu longevo amor por sua irmã, Ada (depois de “pedofilia”, agora “incesto”. Afe!) O protagonista vira um psicólogo proeminente, e o livro corresponde às suas memórias aos 97 anos, destinadas à publicação póstuma. Tudo se desenrola no final do século 19 num planeta alternativo. Por exemplo, os EUA incluem todas as Américas (que foram descobertas por navegadores africanos). Porém, o Canadá é uma província russa chamada Estocia, ao passo que a Rússia em si, e muito da Ásia, é parte de um império chamado Tartária. O Império Britânico, que inclui a maioria da Europa e da África, é governado por um Rei Victor. A eletricidade está banida, depois de um perrengue referido como “o desastre L”. Aviões e carros existem, mas televisões e telefones não – suas funções são supridas por geringonças movidas à água.  Ou seja: um rodízio de ficção científica, crônica de costumes, melodrama familiar, literatura erótica, tratado filosófico, paródia de romances clássicos e mais um caminhão de coisas. Como o próprio autor professou numa aula na Universidade de Cornell: “Grandes romances são sobretudo grandes contos de fadas – a literatura não diz a verdade, mas a cria.” Ada é tanto “sobre” o incesto quanto Lolita é “sobre” pedofilia (ou Moby Dick sobre pescaria ou Grande Sertão: Veredas sobre jagunços). Por meio de uma prestidigitação proustiana, Nabokov recicla e restaura as próprias entidades cujas perdas descreve – em um sentido, tudo foi para o beleléu, mas no outro nada se desvaneceu. Na nossa memória, nada muda e ninguém morre. Daí que a seção crucial de Ada seja a parte 4, que contém o ensaio de Van sobre a natureza do tempo. Ele tenta separar o tempo do espaço para, assim, negar o futuro: “Não podemos desfrutar do presente, que é um instante de duração zero”. Ardis, a casa onde Van e Ada consumam seu amor, significa em grego “a ponta da flecha do tempo”, e é o ardor de Ada que une o passado e o presente e nega a entropia do “fim”.  Nabokov detestava a Psicanálise: “Só os tontos acreditam que suas aflições serão curadas com a aplicação regular de mitos gregos em suas partes pudendas”. Mas aqui ele entroniza o sortilégio da primeira parte da vida, como nos versos de Cacaso: “Minha pátria é a infância/Por isso vivo no exílio.” Adultos, somos todos exilados, e jamais voltaremos para casa, que não está no espaço, mas no tempo.  Dúvida cruel: continuará sendo possível escrever, ler e publicar romances assim? Nesta era de tantos autores missionários, que escrevem catecismos para baias tribais com histórias que são hashtags, e em que culpados e inocentes são cartas marcadas? Como notou Lauren Oyler na Bookforum: “Ansiedades sobre ser uma boa pessoa, cercada por boas pessoas, permeiam os romances contemporâneos”. E lacrou: “Por ‘boa pessoa’, escritores contemporâneos não significam alguém racional, como Platão; ou alguém misericordioso, como Agostinho; ou alguém que considera os outros como fins e não como meios, como Kant; ou alguém que celebra a singularidade alheia, como Buber. Em vez disso, uma pessoa se qualifica como ‘boa’ somente se ela se encaixar num kit específico de padrões sociológicos, e suas virtudes pessoais que se danem.” Por estrambólico que pareça, a resposta para a minha pergunta talvez seja “sim” – afinal, o Naturalismo também caducou, e rapidinho. E o que veio depois foi a saturnália verbal do Modernismo, com a sociologia voltando à vaca fria. Pois como a melhor literatura sempre soube, histórias individuais captam algo mais verdadeiro sobre todos nós do que categorias genéricas jamais o farão. Aliás, é precisamente por isso que há 2500 anos amamos a literatura – incluindo malas sublimes como Nabokov. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Ada ou o Ardor foi uma minhoca que começou a serpentear na cabeça de Vladimir Nabokov em 1959, quando o autor ruminava dois projetos: A Textura do Tempo e Cartas da Terra. Ao botar a mão na massa fundiu as ideias numa única obra, seu mais longo romance (608 páginas, que a Alfaguara acaba de lançar), publicado em 1969, duas semanas antes de o escritor completar 70 anos. Nabokov batizou a personagem epônima em parte por causa da sua borboleta favorita. Desde Goethe nenhum ficcionista de primeira classe foi mais fissurado na natureza. Já aclamado por Lolita, VN se tornou o lepdopterista respeitadíssimo pelos seus pares e responsável pela respectiva seção do Museu de Zoologia da Universidade de Harvard. 

O escritor russo Vladimir Nabokov Foto: Yousuf Karsh

Ada também coleciona insetos alados. Claro que, sendo o autor um lexicófilo quase imbatível, os nomes aqui têm miríades de ressonâncias (incluindo em russo, neste romance escrito em inglês). De acordo com a pronúncia, Ada pode significar tanto Céu quanto Inferno. O coprotagonista, Vânia Veen, também pode falar pelo seu criador: V.V., Vladimir Vladimirovich. Sim, o próprio. Nabokov era um cabotino de proporções joycianas. Precisamos quase de um tabela Excel para catalogar a cornucópia de citações e trocadilhos espertinhos que gorgolejam no livro, em que cada frase é um criptograma, que vai de Borges (Osberg) a Lolita, de “bric-à-Braques” a Abraham Milton (adição de John Milton e Abraham Lincoln), de Coluba University (Columbia mais a palavra russa para “pombo”), passando pela elegante New Chesire (Catskills e alusão ao gato de Alice no País das Maravilhas), de “Les Amours du Dr. Mervago (jogo de palavras com “jiv”, “vivo” em russo, e “mert”, morto) a mais umas trocentas pirotecnias.  A própria abertura de Ada é uma citação (da abertura icônica de Anna Karienina) – e deliberadamente errada! Como se não bastasse, no final do romances há “Notas” de uma certa Vivian Darkbloom. Que – surpresa! – é tanto um anagrama de Vladimir Nabokov quanto uma personagem de Lolita. Segundo o comentário dela, a citação canhestra de Tolstoi zoa com as traduções ineptas dos clássicos russos. Beleza, mas, a meu ver, significa também que a felicidade é tão difícil de capturar como a infelicidade – e no fundo são farinhas do mesmo saco, que já vem furado.  O romance conta a história de Van Veen e seu longevo amor por sua irmã, Ada (depois de “pedofilia”, agora “incesto”. Afe!) O protagonista vira um psicólogo proeminente, e o livro corresponde às suas memórias aos 97 anos, destinadas à publicação póstuma. Tudo se desenrola no final do século 19 num planeta alternativo. Por exemplo, os EUA incluem todas as Américas (que foram descobertas por navegadores africanos). Porém, o Canadá é uma província russa chamada Estocia, ao passo que a Rússia em si, e muito da Ásia, é parte de um império chamado Tartária. O Império Britânico, que inclui a maioria da Europa e da África, é governado por um Rei Victor. A eletricidade está banida, depois de um perrengue referido como “o desastre L”. Aviões e carros existem, mas televisões e telefones não – suas funções são supridas por geringonças movidas à água.  Ou seja: um rodízio de ficção científica, crônica de costumes, melodrama familiar, literatura erótica, tratado filosófico, paródia de romances clássicos e mais um caminhão de coisas. Como o próprio autor professou numa aula na Universidade de Cornell: “Grandes romances são sobretudo grandes contos de fadas – a literatura não diz a verdade, mas a cria.” Ada é tanto “sobre” o incesto quanto Lolita é “sobre” pedofilia (ou Moby Dick sobre pescaria ou Grande Sertão: Veredas sobre jagunços). Por meio de uma prestidigitação proustiana, Nabokov recicla e restaura as próprias entidades cujas perdas descreve – em um sentido, tudo foi para o beleléu, mas no outro nada se desvaneceu. Na nossa memória, nada muda e ninguém morre. Daí que a seção crucial de Ada seja a parte 4, que contém o ensaio de Van sobre a natureza do tempo. Ele tenta separar o tempo do espaço para, assim, negar o futuro: “Não podemos desfrutar do presente, que é um instante de duração zero”. Ardis, a casa onde Van e Ada consumam seu amor, significa em grego “a ponta da flecha do tempo”, e é o ardor de Ada que une o passado e o presente e nega a entropia do “fim”.  Nabokov detestava a Psicanálise: “Só os tontos acreditam que suas aflições serão curadas com a aplicação regular de mitos gregos em suas partes pudendas”. Mas aqui ele entroniza o sortilégio da primeira parte da vida, como nos versos de Cacaso: “Minha pátria é a infância/Por isso vivo no exílio.” Adultos, somos todos exilados, e jamais voltaremos para casa, que não está no espaço, mas no tempo.  Dúvida cruel: continuará sendo possível escrever, ler e publicar romances assim? Nesta era de tantos autores missionários, que escrevem catecismos para baias tribais com histórias que são hashtags, e em que culpados e inocentes são cartas marcadas? Como notou Lauren Oyler na Bookforum: “Ansiedades sobre ser uma boa pessoa, cercada por boas pessoas, permeiam os romances contemporâneos”. E lacrou: “Por ‘boa pessoa’, escritores contemporâneos não significam alguém racional, como Platão; ou alguém misericordioso, como Agostinho; ou alguém que considera os outros como fins e não como meios, como Kant; ou alguém que celebra a singularidade alheia, como Buber. Em vez disso, uma pessoa se qualifica como ‘boa’ somente se ela se encaixar num kit específico de padrões sociológicos, e suas virtudes pessoais que se danem.” Por estrambólico que pareça, a resposta para a minha pergunta talvez seja “sim” – afinal, o Naturalismo também caducou, e rapidinho. E o que veio depois foi a saturnália verbal do Modernismo, com a sociologia voltando à vaca fria. Pois como a melhor literatura sempre soube, histórias individuais captam algo mais verdadeiro sobre todos nós do que categorias genéricas jamais o farão. Aliás, é precisamente por isso que há 2500 anos amamos a literatura – incluindo malas sublimes como Nabokov. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

Ada ou o Ardor foi uma minhoca que começou a serpentear na cabeça de Vladimir Nabokov em 1959, quando o autor ruminava dois projetos: A Textura do Tempo e Cartas da Terra. Ao botar a mão na massa fundiu as ideias numa única obra, seu mais longo romance (608 páginas, que a Alfaguara acaba de lançar), publicado em 1969, duas semanas antes de o escritor completar 70 anos. Nabokov batizou a personagem epônima em parte por causa da sua borboleta favorita. Desde Goethe nenhum ficcionista de primeira classe foi mais fissurado na natureza. Já aclamado por Lolita, VN se tornou o lepdopterista respeitadíssimo pelos seus pares e responsável pela respectiva seção do Museu de Zoologia da Universidade de Harvard. 

O escritor russo Vladimir Nabokov Foto: Yousuf Karsh

Ada também coleciona insetos alados. Claro que, sendo o autor um lexicófilo quase imbatível, os nomes aqui têm miríades de ressonâncias (incluindo em russo, neste romance escrito em inglês). De acordo com a pronúncia, Ada pode significar tanto Céu quanto Inferno. O coprotagonista, Vânia Veen, também pode falar pelo seu criador: V.V., Vladimir Vladimirovich. Sim, o próprio. Nabokov era um cabotino de proporções joycianas. Precisamos quase de um tabela Excel para catalogar a cornucópia de citações e trocadilhos espertinhos que gorgolejam no livro, em que cada frase é um criptograma, que vai de Borges (Osberg) a Lolita, de “bric-à-Braques” a Abraham Milton (adição de John Milton e Abraham Lincoln), de Coluba University (Columbia mais a palavra russa para “pombo”), passando pela elegante New Chesire (Catskills e alusão ao gato de Alice no País das Maravilhas), de “Les Amours du Dr. Mervago (jogo de palavras com “jiv”, “vivo” em russo, e “mert”, morto) a mais umas trocentas pirotecnias.  A própria abertura de Ada é uma citação (da abertura icônica de Anna Karienina) – e deliberadamente errada! Como se não bastasse, no final do romances há “Notas” de uma certa Vivian Darkbloom. Que – surpresa! – é tanto um anagrama de Vladimir Nabokov quanto uma personagem de Lolita. Segundo o comentário dela, a citação canhestra de Tolstoi zoa com as traduções ineptas dos clássicos russos. Beleza, mas, a meu ver, significa também que a felicidade é tão difícil de capturar como a infelicidade – e no fundo são farinhas do mesmo saco, que já vem furado.  O romance conta a história de Van Veen e seu longevo amor por sua irmã, Ada (depois de “pedofilia”, agora “incesto”. Afe!) O protagonista vira um psicólogo proeminente, e o livro corresponde às suas memórias aos 97 anos, destinadas à publicação póstuma. Tudo se desenrola no final do século 19 num planeta alternativo. Por exemplo, os EUA incluem todas as Américas (que foram descobertas por navegadores africanos). Porém, o Canadá é uma província russa chamada Estocia, ao passo que a Rússia em si, e muito da Ásia, é parte de um império chamado Tartária. O Império Britânico, que inclui a maioria da Europa e da África, é governado por um Rei Victor. A eletricidade está banida, depois de um perrengue referido como “o desastre L”. Aviões e carros existem, mas televisões e telefones não – suas funções são supridas por geringonças movidas à água.  Ou seja: um rodízio de ficção científica, crônica de costumes, melodrama familiar, literatura erótica, tratado filosófico, paródia de romances clássicos e mais um caminhão de coisas. Como o próprio autor professou numa aula na Universidade de Cornell: “Grandes romances são sobretudo grandes contos de fadas – a literatura não diz a verdade, mas a cria.” Ada é tanto “sobre” o incesto quanto Lolita é “sobre” pedofilia (ou Moby Dick sobre pescaria ou Grande Sertão: Veredas sobre jagunços). Por meio de uma prestidigitação proustiana, Nabokov recicla e restaura as próprias entidades cujas perdas descreve – em um sentido, tudo foi para o beleléu, mas no outro nada se desvaneceu. Na nossa memória, nada muda e ninguém morre. Daí que a seção crucial de Ada seja a parte 4, que contém o ensaio de Van sobre a natureza do tempo. Ele tenta separar o tempo do espaço para, assim, negar o futuro: “Não podemos desfrutar do presente, que é um instante de duração zero”. Ardis, a casa onde Van e Ada consumam seu amor, significa em grego “a ponta da flecha do tempo”, e é o ardor de Ada que une o passado e o presente e nega a entropia do “fim”.  Nabokov detestava a Psicanálise: “Só os tontos acreditam que suas aflições serão curadas com a aplicação regular de mitos gregos em suas partes pudendas”. Mas aqui ele entroniza o sortilégio da primeira parte da vida, como nos versos de Cacaso: “Minha pátria é a infância/Por isso vivo no exílio.” Adultos, somos todos exilados, e jamais voltaremos para casa, que não está no espaço, mas no tempo.  Dúvida cruel: continuará sendo possível escrever, ler e publicar romances assim? Nesta era de tantos autores missionários, que escrevem catecismos para baias tribais com histórias que são hashtags, e em que culpados e inocentes são cartas marcadas? Como notou Lauren Oyler na Bookforum: “Ansiedades sobre ser uma boa pessoa, cercada por boas pessoas, permeiam os romances contemporâneos”. E lacrou: “Por ‘boa pessoa’, escritores contemporâneos não significam alguém racional, como Platão; ou alguém misericordioso, como Agostinho; ou alguém que considera os outros como fins e não como meios, como Kant; ou alguém que celebra a singularidade alheia, como Buber. Em vez disso, uma pessoa se qualifica como ‘boa’ somente se ela se encaixar num kit específico de padrões sociológicos, e suas virtudes pessoais que se danem.” Por estrambólico que pareça, a resposta para a minha pergunta talvez seja “sim” – afinal, o Naturalismo também caducou, e rapidinho. E o que veio depois foi a saturnália verbal do Modernismo, com a sociologia voltando à vaca fria. Pois como a melhor literatura sempre soube, histórias individuais captam algo mais verdadeiro sobre todos nós do que categorias genéricas jamais o farão. Aliás, é precisamente por isso que há 2500 anos amamos a literatura – incluindo malas sublimes como Nabokov. É AUTOR DE ‘O AMOR É UM LUGAR COMUM’ (INTERMEIOS)

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