A cada nova edição da Bienal de São Paulo, ressurge um antigo porém crucial debate sobre o futuro e a pertinência da exposição, que um dia já teve o papel de atualizar o público brasileiro em relação às tendências e destaques da produção mundial e hoje traz em seu bojo as contradições, conflitos e paradoxos que parecem acompanhar a arte contemporânea em sua crise permanente. Tal esforço, cada vez mais raro, para compreender as possibilidades e limites da prática artística, já justificaria sua existência. Afinal, qual outra instituição no país suscita algum debate sobre os rumos, a função e o estado da arte, no Brasil e no mundo?
Essa reflexão parece ganhar ainda mais relevância na 32.ª edição da mostra, que pode ser visitada até 11 de dezembro. Isto porque sua proposta curatorial é norteada pelo conceito de incerteza, assumindo a dúvida, o questionamento e o pensamento crítico como objeto de pesquisa e estopim para a criação. Tal liberdade contrasta com a hegemonia crescente do mercado, e torna reflexões como as propostas pela mostra – intitulada Incerteza Viva – uma das raras válvulas de escape ao senso comum e à busca do sucesso fácil que caracterizam as feiras de arte que brotam pelo mundo afora.
É inevitável uma sensação de incompletude quando se percorrem os corredores da 32.ª Bienal. Afinal, trata-se de uma leitura cheia de particularidades e sujeita a falhas e não de um produto acabado. Com suavidade, sem impor barreiras ou rotas preestabelecidas, curadoria e arquitetura situam no espaço obras em relação, que criam linhas de reflexão sobre temas importantes na arte e na vida contemporânea, como ecologia, violência, trabalho, sexualidade e utopia. A própria estratégia adotada pelos curadores de comissionar o maior número de obras possíveis, com cerca de 70% dos trabalhos expostos tendo sido especialmente realizados para o evento, contribui para essa sensação de multiplicidade. Ao invés de uma confortável edição de criações já prontas, houve algo de aposta, de improviso, permitindo a transformação do que ainda era projeto poético em obra concreta.
Não se trata de uma Bienal que vira as costas ao espetáculo, mas tampouco cede a ele como objetivo último. É interessante a opção de separar em espaços diferentes obras de um mesmo artista. O critério não é autoral e nem temático. É quase afetivo, como se pode perceber, por exemplo, na aproximação física entre a fotografia de uma caveira no deserto, de autoria de Pierre Huyghe e intitulada Colina Índio Morto (2016), e as dezenas de réplicas de caixas de fósforo esculpidas por José Bento com as madeiras nativas do Brasil. Afinal, ambos os trabalhos jogam com a noção de extermínio e desnudam nossa tendência a abolir as diferenças ou naturalizar a destruição, seja ela ambiental ou política.
As possibilidades de conexão são múltiplas, mas alguns aspectos se sobressaem, como uma tendência à suavidade, quase a uma certa melancolia, mesmo quando estamos diante de críticas ácidas aos desmandos do mundo. É o caso, por exemplo, de Transbordamento: Mapa Universal (2016), obra de Rikke Lutter. Trata-se de um grande painel de azulejos em tons suaves instalado na grande parede ao fundo do primeiro andar do pavilhão. À primeira vista ele parece delicado, quase ingênuo. Só aos poucos, dedicando um pouco de tempo à leitura e observação, o visitante percebe que se trata de uma denúncia gráfica e textual sobre a exploração desigual e predatória das zonas do universo que, apenas teoricamente, pertencem a toda a humanidade, como o espaço sideral e o fundo do mar.
Como em outras edições do evento (em especial a 27.ª, cuja equipe contou com a participação de Jochen Volz, atual curador da mostra, e a 30.ª), nota-se também uma presença marcante de trabalhos desenvolvidos em série, como uma espécie de reconhecimento que é necessário olhar também para o trabalho cotidiano, permanente, obsessivo da prática artística. São como universos de pensamento com lógicas muitas vezes subjetivas ou particulares, que rejeitam o pragmatismo.
A lista de artistas incluídos neste grupo é grande, a começar pela seleção exaustiva de gravuras produzidas vagarosamente, ao longo de anos, de Gilvan Samico (1928-2013), sínteses preciosas de elementos da cultura popular e um sofisticado universo mítico. Pontuando a mostra, é possível encontrar ainda uma série de pequenos e fascinantes mundos poéticos particulares, como Um Outro Livro Vermelho, de Lourdes de Castro e Manuel Zimbro. Wilma Martins também concilia com delicadeza universos apenas aparentemente opostos em seus delicados desenhos e pinturas, aproximando o universo cotidiano da vida doméstica à fragmentos um tanto idílicos da vida selvagem.
Pode-se dizer que a 32.ª Bienal é uma mostra que grita praticamente em silêncio. Não à toa uma das mais tocantes críticas presentes no evento à escravidão e ao colonialismo, de autoria de Grada Kilomba, é um filme legenda. Esta edição também parece ter obtido mais sucesso do que as anteriores na sempre desejada interação com o entorno. A relação, que em edições passadas parecia um tanto forçada, parece fluir de forma natural em trabalhos como os de Eduardo Navarro e Rachel Rose. Em Everything and More, a artista norte-americana cria uma instigante fusão ao projetar sobre uma tela translúcida, voltada para o Parque, imagens geradas a partir da narrativa de um astronauta sobre as experiências visuais que teve ao regressar à Terra. A percepção da paisagem concreta, real, se dá aos poucos, numa fusão entre o aqui e o agora e uma sucessão de imagens de teor abstrato e sentimental, inconstantes e turvas como o nosso tempo.
32ª BIENAL DE SÃO PAULO Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600. 3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12