Difícil hoje ser curador de uma Bienal. Imagine-se um espaço amplo, monumental. Pensa-se: como povoar este território desafiador com obras nutrientes do que seja a arte contemporânea? E afinal, o que é arte contemporânea?
Como registrou um grande crítico: não há arte, há artistas. Mas, hoje, quais artistas? Partindo de um tema discutido e proposto pela curadoria, como se dá a escolha? Um tanto de África, um tanto da América Latina, um tanto do Brasil, afinal o hospedeiro, um tanto dos países do universo chamado “primeiro mundo” – os brancos, os desenvolvidos, entre eles os asiáticos de ponta do universo político-econômico global. E, se nesta Bienal se trouxe um número mais reduzido de participantes frente a outras edições, é menos difícil dialogar com os selecionados: há muito espaço, pode-se trazer obras maiores, ou vários trabalhos, a metragem quadrada por artista é generosa...
Embora se possa aqui incidir em enganos. Há artistas que não alcançam em grandes dimensões a excelência de suas provocações quando com obras de menor porte, como no caso de Erika Verzutti.
Há algumas Bienais assistimos à presença numerosa de “inventários”, anotações, arquivos apresentados monotonamente em folhas de cadernos ou pequenos retângulos emoldurados cuidadosamente, objetos colocados em sucessão no espaço reservado ao artista. A impressão que nos passam é de que não possuindo obras com vigor impositivo, seus autores apresentam anotações diárias – como na modesta contribuição de uma Ruth Ewan; ou na oca de Bené Fonteles, esta povoada com “seu” inventário. Sempre “guardados”, ou material de mapotecas, como raridades, tipo estudos de Leonardo, ou desenhos prévios para obras maiores, como as recém-descobertas de um Frans Post. Porém formam antes gabinetes com curiosidades dificilmente elevadas ao protagonismo de “obras”.
Daí porque torna-se difícil aceitar como comparece Antonio Malta, quem deveria se apresentar somente com suas grandes pinturas. E, no entanto, a curadoria expõe no verso de seu espaço intimidades de ateliê, que a meu ver empequenecem a pintura maior.
Outro dado que creio que ainda não se reconheceu é que um “vídeo” a ser apresentado em uma Bienal deve, obrigatoriamente, ser de “timing” dinâmico, 2-3 minutos no máximo. Pois trata-se de espaço que se percorre em ritmo de panorama.
Quem visita a Bienal? Estudantes de ensino médio, trazidos às dúzias, guiados, por quem? Qual o preparo desses heroicos monitores para definir aos incautos e curiosos visitantes o que é “arte de hoje” sem ideia do que se fez “ontem”? Ver a Bienal 2016 é por certo menos excitante que correr atrás de Pokémons – como fazem alguns grupos de várias idades correndo em manadas pelo Ibirapuera – afinal, vivemos em época desconcertante, para não dizer outra coisa.
Gente do meio artístico e cultural habituou-se a comparecer bienalmente para ver o que ocorre em arte contemporânea. Mas talvez seja bem desacorçoante o que se vê na Bienal. Logo à entrada, Xabier Salaberria dá o “clima” do evento para quem aprecia certos trabalhos de Thomas Hirschhorn e seguidores, que contagiam por poder trazer fragmentos e objetos descartados para dentro de instituições. Mesmo quando mesclados seus trastes com um bronze da respeitosa e culta Liuba Wolf (teria ela concordado em participar desse conjunto?)
Grandes painéis esvoaçantes pendentes dos tetos criam um clima de “leveza” tipo anos 1960 em meio às salas de “anotações de ateliês” – para não repetir “inventários”. E a beleza do piso da espacialidade vazia do apaixonado por madeiras como o é José Bento, sem que se justificasse sua segunda ocupação no térreo, sugere uma ausência de presenças possíveis.
Houve homenagens a já falecidos – como Öyvind Fahlström, Gilvan Samico, Leon Hirszman e Víctor Grippo – e a artistas de percurso reconhecido como Frans Krajcberg, Wilma Martins e Lourdes Castro, embora distintos em seus discursos no tempo e na arte.
Na verdade, apesar do título atraente, Incerteza Viva, a incerteza aflora nesta Bienal, sim, mas não tão viva... Às vezes recorda a quem já viveu a monotonia dos eventos dos anos 1970, embora agora embebida em rumos anódinos pelas aberturas em que se esgarçou o fazer artístico. Com visão bem pobre daquilo que se poderia aguardar como “a última palavra em arte hoje”.
Como comentou um historiador visitando a Bienal, arte é o que se vê em museus, coleções, galerias e feiras de arte, e não apenas o exposto nas manifestações expostas na Bienal 2016. A diferença é flagrante. Na ausência do “saber fazer” ou de quem sabe se expressar com acuidade se faz presente a dificuldade do diálogo, a conversação com a balbúrdia do clima das ruas, pichações, a desordem, a desconstrução do meio urbano. E a dificuldade de um pensamento claro, o debate passando para o nível das opções transexuais, dos limites indefinidos entre o virtual e o real, no excesso de informações em que vivemos. E pouco vejo que faça alusão aos fatos que mobilizam multidões no País desde 2013, da crise econômica, da tragédia de Mariana, da situação de porção considerável do País, dos indígenas – salvo pelo trabalho de Vincent Carelli! – do negro, da educação. Raros podem ter a clareza e a criatividade de um Alfredo Jaar para colocar sua obra a serviço do contemporâneo, é certo. Mas, se o artista é a antena do mundo, como dizia Pound com outras palavras, deveríamos poder ver mais, através da arte.
O artista inserido no contexto do cotidiano (Menna Barreto, encarregado da lanchonete) ou como designer (Park McArthur, projetista das lixeiras cúbicas em aço inox) nos transporta com simplicidade ao clima industrialista anos 1950. Porém não há qualquer estímulo a uma ida à Bienal, tipo “Vamos ver o que apresenta tal artista”, ou “Veio a retrospectiva de...”. Não há expectativas que impulsionem uma visita.
Como podem arquitetos, formados para a organização do espaço a partir de uma ideia e de um programa, projetar uma Bienal como esta? Tarefa tão ingrata quanto desafiadora para a seriedade do curador Jochen Volz. No caso da museografia, a equipe de Alvaro Razuk optou pelas aberturas amplas para o parque propiciadas pelo risco de Niemeyer. Para o olhar fatigado frente às contribuições “vintage”, o exterior é a opção de luz.
O entorno do parque assinala a possibilidade de resgate de algo perdido. Bem além dos grandes pneus recheados de plantas que não desejamos para nossos jardins. Se esta edição objetivou uma forma de diálogo com o meio ambiente, podemos perceber a dificuldade de uma poética ou do contato com a realidade atual através da arte. Terá faltado a agressividade de algum(ns) artista(s) ausente(s)? A verdade é que tampouco vimos na Bienal sinal de que melhores momentos venham a surgir.
32ª BIENAL DE SÃO PAULO Pavilhão Ciccillo Matarazzo. Pq. do Ibirapuera, portão 3; 5576-7600. 3ª, 4ª, 6ª e dom., 9h/19h; 5ª e sáb., 9h/22h. Grátis. Até 11/12