A 'carta' de Nelson Felix para tempos de guerra


Na Galeria Millan, artista expõe esculturas em mármore e peças em lacre numa parábola pacífica

Por Antonio Gonçalves Filho

Em 1980, o artista carioca Nelson Felix escreveu que a nossa civilização “visou quase sempre o passado ou o futuro, sendo o presente geralmente esquecido”. Evocando a filosofia do francês Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962), Felix concluiu: se o passado não existe e o futuro também não, então realizar o presente é a única verdade. Foi assim que nasceu a exposição Carta de Amor, dirigida ao mundo contemporâneo. Nela, Felix exibe uma série de esculturas em mármore de Carrara e peças que usam lacre francês, hastes de bronze com espinhos, vasos de cactos e uma rosa escarlate.

A exposição ocupa dois lugares, a Galeria Millan e o seu anexo a poucos metros de distância. No primeiro, uma única obra cruza dois andares, ligados por uma haste de mármore que atravessa verticalmente o piso superior e segue por um buraco aberto no teto do andar de baixo. Num momento futuro, essa haste vai formar uma cruz com o eixo do sol, garante Felix, replicando um procedimento de uma outra obra sua mais antiga, Grafite (1985-1988) –basicamente o encontro de duas hastes esculpidas em grafite em que uma delas era colocada paralelamente ao eixo do sol.

Nelson Felixentre as obras em homenagem aos poetasSofia e Brossa Foto: Werther Santana/Estadão
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No presente, a Carta de Amor é uma dádiva de Felix à humanidade num momento de crise marcado pela tragédia de uma guerra e uma pandemia. “O mundo está muito feio”, sentencia Felix . Concebida justamente durante o confinamento compulsório da covid-19, Carta de Amor é o que sugere o título: a fusão do êxtase erótico com o espiritual. O crítico Rodrigo Naves já observou que há no trabalho de Felix uma “espiritualização laica”. Nele, o corpo humano se integra ao mármore numa composição híbrida que faz pensar sobre as relações entre ciência e arte – vale lembrar que o pai do artista era médico e o tio, Moacir Felix, um poeta e diretor da conceituada editora Paz e Terra. Carta de Amor é também um tributo à memória de ambos, unindo a ciência do pai e a poesia do tio.

Duas obras que abrem a exposição no anexo da Millan fazem, inclusive, referência a dois grandes poetas, a portuguesa Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), de matriz platônica, sempre às voltas com questões transcendentais, e o espanhol Joan Brossa (1919-1998), surrealista, irônico, subversivo. Entre esses dois polos oscila Felix, mas sua Carta de Amor tem ainda outra natureza, que não é outra senão a mensagem de Rilke a seus pares: a celebração da união entre o transcendental e o humano.

Esculturas em mármore de Carrara de Nelson Felix Foto: Werther Santana
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No “espaço cósmico interior” de Felix caberiam outros poetas. Ele pensou no antifascista Cesare Pavese (obra em progresso), mas saiu na frente o simbolista Mallarmé, citado na peça dedicada a Brossa – na figura de um alegórico dado. Como se sabe, Mallarmé é autor do poema tipográfico Un Coup de Dés, em que o poeta francês diz: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A referência é propositalmente direta. Em outros casos, ela não é tão literal. O visitante da exposição vai buscar relações entre Felix e as obras de quatro artistas por ele escolhidos para dialogar com seu trabalho atual na Millan: Arthur Barrio, David Almeida, Mira Schendel e Paulo Pasta.

Mira fez uma série (a do “ouro”) em que o metal – incorruptível na tradição cristã e utilizado no passado para distinguir figuras santas – surge como um signo da individuação no caótico. Paulo Pasta, um pouco como os renascentistas, usa a figura de um portal para separar o mundo físico do metafísico. Barrio é o caótico em busca de organização espacial. David Almeida se localiza pela memória dos lugares por que passou. Enfim, todos têm a ver com Felix, mas cada um de modo diferente.

O que se verifica, por exemplo, nas esculturas em mármore, é a busca de um estado de suspensão advindo de uma poética arquitetônica: os grandes blocos de Carrara por vezes escondem um osso occipital em sua base, mas também podem escancarar outras formas orgânicas como uma “mordida” (erótica) registrada no mármore como um molde de prótese dentária. Em ambos os casos, são obras de um mestre digno de ocupar o lugar de Tunga.

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Carta de Amor.

Galeria Millan. R. Fradique Coutinho, 1.360/1.416. Tel. 3031-6007. 2ª/6ª, 10h/19h; sábados, 11h/15h. Entrada gratuita. Até 27/5.

Em 1980, o artista carioca Nelson Felix escreveu que a nossa civilização “visou quase sempre o passado ou o futuro, sendo o presente geralmente esquecido”. Evocando a filosofia do francês Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962), Felix concluiu: se o passado não existe e o futuro também não, então realizar o presente é a única verdade. Foi assim que nasceu a exposição Carta de Amor, dirigida ao mundo contemporâneo. Nela, Felix exibe uma série de esculturas em mármore de Carrara e peças que usam lacre francês, hastes de bronze com espinhos, vasos de cactos e uma rosa escarlate.

A exposição ocupa dois lugares, a Galeria Millan e o seu anexo a poucos metros de distância. No primeiro, uma única obra cruza dois andares, ligados por uma haste de mármore que atravessa verticalmente o piso superior e segue por um buraco aberto no teto do andar de baixo. Num momento futuro, essa haste vai formar uma cruz com o eixo do sol, garante Felix, replicando um procedimento de uma outra obra sua mais antiga, Grafite (1985-1988) –basicamente o encontro de duas hastes esculpidas em grafite em que uma delas era colocada paralelamente ao eixo do sol.

Nelson Felixentre as obras em homenagem aos poetasSofia e Brossa Foto: Werther Santana/Estadão

No presente, a Carta de Amor é uma dádiva de Felix à humanidade num momento de crise marcado pela tragédia de uma guerra e uma pandemia. “O mundo está muito feio”, sentencia Felix . Concebida justamente durante o confinamento compulsório da covid-19, Carta de Amor é o que sugere o título: a fusão do êxtase erótico com o espiritual. O crítico Rodrigo Naves já observou que há no trabalho de Felix uma “espiritualização laica”. Nele, o corpo humano se integra ao mármore numa composição híbrida que faz pensar sobre as relações entre ciência e arte – vale lembrar que o pai do artista era médico e o tio, Moacir Felix, um poeta e diretor da conceituada editora Paz e Terra. Carta de Amor é também um tributo à memória de ambos, unindo a ciência do pai e a poesia do tio.

Duas obras que abrem a exposição no anexo da Millan fazem, inclusive, referência a dois grandes poetas, a portuguesa Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), de matriz platônica, sempre às voltas com questões transcendentais, e o espanhol Joan Brossa (1919-1998), surrealista, irônico, subversivo. Entre esses dois polos oscila Felix, mas sua Carta de Amor tem ainda outra natureza, que não é outra senão a mensagem de Rilke a seus pares: a celebração da união entre o transcendental e o humano.

Esculturas em mármore de Carrara de Nelson Felix Foto: Werther Santana

No “espaço cósmico interior” de Felix caberiam outros poetas. Ele pensou no antifascista Cesare Pavese (obra em progresso), mas saiu na frente o simbolista Mallarmé, citado na peça dedicada a Brossa – na figura de um alegórico dado. Como se sabe, Mallarmé é autor do poema tipográfico Un Coup de Dés, em que o poeta francês diz: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A referência é propositalmente direta. Em outros casos, ela não é tão literal. O visitante da exposição vai buscar relações entre Felix e as obras de quatro artistas por ele escolhidos para dialogar com seu trabalho atual na Millan: Arthur Barrio, David Almeida, Mira Schendel e Paulo Pasta.

Mira fez uma série (a do “ouro”) em que o metal – incorruptível na tradição cristã e utilizado no passado para distinguir figuras santas – surge como um signo da individuação no caótico. Paulo Pasta, um pouco como os renascentistas, usa a figura de um portal para separar o mundo físico do metafísico. Barrio é o caótico em busca de organização espacial. David Almeida se localiza pela memória dos lugares por que passou. Enfim, todos têm a ver com Felix, mas cada um de modo diferente.

O que se verifica, por exemplo, nas esculturas em mármore, é a busca de um estado de suspensão advindo de uma poética arquitetônica: os grandes blocos de Carrara por vezes escondem um osso occipital em sua base, mas também podem escancarar outras formas orgânicas como uma “mordida” (erótica) registrada no mármore como um molde de prótese dentária. Em ambos os casos, são obras de um mestre digno de ocupar o lugar de Tunga.

Carta de Amor.

Galeria Millan. R. Fradique Coutinho, 1.360/1.416. Tel. 3031-6007. 2ª/6ª, 10h/19h; sábados, 11h/15h. Entrada gratuita. Até 27/5.

Em 1980, o artista carioca Nelson Felix escreveu que a nossa civilização “visou quase sempre o passado ou o futuro, sendo o presente geralmente esquecido”. Evocando a filosofia do francês Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962), Felix concluiu: se o passado não existe e o futuro também não, então realizar o presente é a única verdade. Foi assim que nasceu a exposição Carta de Amor, dirigida ao mundo contemporâneo. Nela, Felix exibe uma série de esculturas em mármore de Carrara e peças que usam lacre francês, hastes de bronze com espinhos, vasos de cactos e uma rosa escarlate.

A exposição ocupa dois lugares, a Galeria Millan e o seu anexo a poucos metros de distância. No primeiro, uma única obra cruza dois andares, ligados por uma haste de mármore que atravessa verticalmente o piso superior e segue por um buraco aberto no teto do andar de baixo. Num momento futuro, essa haste vai formar uma cruz com o eixo do sol, garante Felix, replicando um procedimento de uma outra obra sua mais antiga, Grafite (1985-1988) –basicamente o encontro de duas hastes esculpidas em grafite em que uma delas era colocada paralelamente ao eixo do sol.

Nelson Felixentre as obras em homenagem aos poetasSofia e Brossa Foto: Werther Santana/Estadão

No presente, a Carta de Amor é uma dádiva de Felix à humanidade num momento de crise marcado pela tragédia de uma guerra e uma pandemia. “O mundo está muito feio”, sentencia Felix . Concebida justamente durante o confinamento compulsório da covid-19, Carta de Amor é o que sugere o título: a fusão do êxtase erótico com o espiritual. O crítico Rodrigo Naves já observou que há no trabalho de Felix uma “espiritualização laica”. Nele, o corpo humano se integra ao mármore numa composição híbrida que faz pensar sobre as relações entre ciência e arte – vale lembrar que o pai do artista era médico e o tio, Moacir Felix, um poeta e diretor da conceituada editora Paz e Terra. Carta de Amor é também um tributo à memória de ambos, unindo a ciência do pai e a poesia do tio.

Duas obras que abrem a exposição no anexo da Millan fazem, inclusive, referência a dois grandes poetas, a portuguesa Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), de matriz platônica, sempre às voltas com questões transcendentais, e o espanhol Joan Brossa (1919-1998), surrealista, irônico, subversivo. Entre esses dois polos oscila Felix, mas sua Carta de Amor tem ainda outra natureza, que não é outra senão a mensagem de Rilke a seus pares: a celebração da união entre o transcendental e o humano.

Esculturas em mármore de Carrara de Nelson Felix Foto: Werther Santana

No “espaço cósmico interior” de Felix caberiam outros poetas. Ele pensou no antifascista Cesare Pavese (obra em progresso), mas saiu na frente o simbolista Mallarmé, citado na peça dedicada a Brossa – na figura de um alegórico dado. Como se sabe, Mallarmé é autor do poema tipográfico Un Coup de Dés, em que o poeta francês diz: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A referência é propositalmente direta. Em outros casos, ela não é tão literal. O visitante da exposição vai buscar relações entre Felix e as obras de quatro artistas por ele escolhidos para dialogar com seu trabalho atual na Millan: Arthur Barrio, David Almeida, Mira Schendel e Paulo Pasta.

Mira fez uma série (a do “ouro”) em que o metal – incorruptível na tradição cristã e utilizado no passado para distinguir figuras santas – surge como um signo da individuação no caótico. Paulo Pasta, um pouco como os renascentistas, usa a figura de um portal para separar o mundo físico do metafísico. Barrio é o caótico em busca de organização espacial. David Almeida se localiza pela memória dos lugares por que passou. Enfim, todos têm a ver com Felix, mas cada um de modo diferente.

O que se verifica, por exemplo, nas esculturas em mármore, é a busca de um estado de suspensão advindo de uma poética arquitetônica: os grandes blocos de Carrara por vezes escondem um osso occipital em sua base, mas também podem escancarar outras formas orgânicas como uma “mordida” (erótica) registrada no mármore como um molde de prótese dentária. Em ambos os casos, são obras de um mestre digno de ocupar o lugar de Tunga.

Carta de Amor.

Galeria Millan. R. Fradique Coutinho, 1.360/1.416. Tel. 3031-6007. 2ª/6ª, 10h/19h; sábados, 11h/15h. Entrada gratuita. Até 27/5.

Em 1980, o artista carioca Nelson Felix escreveu que a nossa civilização “visou quase sempre o passado ou o futuro, sendo o presente geralmente esquecido”. Evocando a filosofia do francês Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962), Felix concluiu: se o passado não existe e o futuro também não, então realizar o presente é a única verdade. Foi assim que nasceu a exposição Carta de Amor, dirigida ao mundo contemporâneo. Nela, Felix exibe uma série de esculturas em mármore de Carrara e peças que usam lacre francês, hastes de bronze com espinhos, vasos de cactos e uma rosa escarlate.

A exposição ocupa dois lugares, a Galeria Millan e o seu anexo a poucos metros de distância. No primeiro, uma única obra cruza dois andares, ligados por uma haste de mármore que atravessa verticalmente o piso superior e segue por um buraco aberto no teto do andar de baixo. Num momento futuro, essa haste vai formar uma cruz com o eixo do sol, garante Felix, replicando um procedimento de uma outra obra sua mais antiga, Grafite (1985-1988) –basicamente o encontro de duas hastes esculpidas em grafite em que uma delas era colocada paralelamente ao eixo do sol.

Nelson Felixentre as obras em homenagem aos poetasSofia e Brossa Foto: Werther Santana/Estadão

No presente, a Carta de Amor é uma dádiva de Felix à humanidade num momento de crise marcado pela tragédia de uma guerra e uma pandemia. “O mundo está muito feio”, sentencia Felix . Concebida justamente durante o confinamento compulsório da covid-19, Carta de Amor é o que sugere o título: a fusão do êxtase erótico com o espiritual. O crítico Rodrigo Naves já observou que há no trabalho de Felix uma “espiritualização laica”. Nele, o corpo humano se integra ao mármore numa composição híbrida que faz pensar sobre as relações entre ciência e arte – vale lembrar que o pai do artista era médico e o tio, Moacir Felix, um poeta e diretor da conceituada editora Paz e Terra. Carta de Amor é também um tributo à memória de ambos, unindo a ciência do pai e a poesia do tio.

Duas obras que abrem a exposição no anexo da Millan fazem, inclusive, referência a dois grandes poetas, a portuguesa Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), de matriz platônica, sempre às voltas com questões transcendentais, e o espanhol Joan Brossa (1919-1998), surrealista, irônico, subversivo. Entre esses dois polos oscila Felix, mas sua Carta de Amor tem ainda outra natureza, que não é outra senão a mensagem de Rilke a seus pares: a celebração da união entre o transcendental e o humano.

Esculturas em mármore de Carrara de Nelson Felix Foto: Werther Santana

No “espaço cósmico interior” de Felix caberiam outros poetas. Ele pensou no antifascista Cesare Pavese (obra em progresso), mas saiu na frente o simbolista Mallarmé, citado na peça dedicada a Brossa – na figura de um alegórico dado. Como se sabe, Mallarmé é autor do poema tipográfico Un Coup de Dés, em que o poeta francês diz: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A referência é propositalmente direta. Em outros casos, ela não é tão literal. O visitante da exposição vai buscar relações entre Felix e as obras de quatro artistas por ele escolhidos para dialogar com seu trabalho atual na Millan: Arthur Barrio, David Almeida, Mira Schendel e Paulo Pasta.

Mira fez uma série (a do “ouro”) em que o metal – incorruptível na tradição cristã e utilizado no passado para distinguir figuras santas – surge como um signo da individuação no caótico. Paulo Pasta, um pouco como os renascentistas, usa a figura de um portal para separar o mundo físico do metafísico. Barrio é o caótico em busca de organização espacial. David Almeida se localiza pela memória dos lugares por que passou. Enfim, todos têm a ver com Felix, mas cada um de modo diferente.

O que se verifica, por exemplo, nas esculturas em mármore, é a busca de um estado de suspensão advindo de uma poética arquitetônica: os grandes blocos de Carrara por vezes escondem um osso occipital em sua base, mas também podem escancarar outras formas orgânicas como uma “mordida” (erótica) registrada no mármore como um molde de prótese dentária. Em ambos os casos, são obras de um mestre digno de ocupar o lugar de Tunga.

Carta de Amor.

Galeria Millan. R. Fradique Coutinho, 1.360/1.416. Tel. 3031-6007. 2ª/6ª, 10h/19h; sábados, 11h/15h. Entrada gratuita. Até 27/5.

Em 1980, o artista carioca Nelson Felix escreveu que a nossa civilização “visou quase sempre o passado ou o futuro, sendo o presente geralmente esquecido”. Evocando a filosofia do francês Serge Raynaud de la Ferrière (1916-1962), Felix concluiu: se o passado não existe e o futuro também não, então realizar o presente é a única verdade. Foi assim que nasceu a exposição Carta de Amor, dirigida ao mundo contemporâneo. Nela, Felix exibe uma série de esculturas em mármore de Carrara e peças que usam lacre francês, hastes de bronze com espinhos, vasos de cactos e uma rosa escarlate.

A exposição ocupa dois lugares, a Galeria Millan e o seu anexo a poucos metros de distância. No primeiro, uma única obra cruza dois andares, ligados por uma haste de mármore que atravessa verticalmente o piso superior e segue por um buraco aberto no teto do andar de baixo. Num momento futuro, essa haste vai formar uma cruz com o eixo do sol, garante Felix, replicando um procedimento de uma outra obra sua mais antiga, Grafite (1985-1988) –basicamente o encontro de duas hastes esculpidas em grafite em que uma delas era colocada paralelamente ao eixo do sol.

Nelson Felixentre as obras em homenagem aos poetasSofia e Brossa Foto: Werther Santana/Estadão

No presente, a Carta de Amor é uma dádiva de Felix à humanidade num momento de crise marcado pela tragédia de uma guerra e uma pandemia. “O mundo está muito feio”, sentencia Felix . Concebida justamente durante o confinamento compulsório da covid-19, Carta de Amor é o que sugere o título: a fusão do êxtase erótico com o espiritual. O crítico Rodrigo Naves já observou que há no trabalho de Felix uma “espiritualização laica”. Nele, o corpo humano se integra ao mármore numa composição híbrida que faz pensar sobre as relações entre ciência e arte – vale lembrar que o pai do artista era médico e o tio, Moacir Felix, um poeta e diretor da conceituada editora Paz e Terra. Carta de Amor é também um tributo à memória de ambos, unindo a ciência do pai e a poesia do tio.

Duas obras que abrem a exposição no anexo da Millan fazem, inclusive, referência a dois grandes poetas, a portuguesa Sofia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), de matriz platônica, sempre às voltas com questões transcendentais, e o espanhol Joan Brossa (1919-1998), surrealista, irônico, subversivo. Entre esses dois polos oscila Felix, mas sua Carta de Amor tem ainda outra natureza, que não é outra senão a mensagem de Rilke a seus pares: a celebração da união entre o transcendental e o humano.

Esculturas em mármore de Carrara de Nelson Felix Foto: Werther Santana

No “espaço cósmico interior” de Felix caberiam outros poetas. Ele pensou no antifascista Cesare Pavese (obra em progresso), mas saiu na frente o simbolista Mallarmé, citado na peça dedicada a Brossa – na figura de um alegórico dado. Como se sabe, Mallarmé é autor do poema tipográfico Un Coup de Dés, em que o poeta francês diz: “Um lance de dados jamais abolirá o acaso”. A referência é propositalmente direta. Em outros casos, ela não é tão literal. O visitante da exposição vai buscar relações entre Felix e as obras de quatro artistas por ele escolhidos para dialogar com seu trabalho atual na Millan: Arthur Barrio, David Almeida, Mira Schendel e Paulo Pasta.

Mira fez uma série (a do “ouro”) em que o metal – incorruptível na tradição cristã e utilizado no passado para distinguir figuras santas – surge como um signo da individuação no caótico. Paulo Pasta, um pouco como os renascentistas, usa a figura de um portal para separar o mundo físico do metafísico. Barrio é o caótico em busca de organização espacial. David Almeida se localiza pela memória dos lugares por que passou. Enfim, todos têm a ver com Felix, mas cada um de modo diferente.

O que se verifica, por exemplo, nas esculturas em mármore, é a busca de um estado de suspensão advindo de uma poética arquitetônica: os grandes blocos de Carrara por vezes escondem um osso occipital em sua base, mas também podem escancarar outras formas orgânicas como uma “mordida” (erótica) registrada no mármore como um molde de prótese dentária. Em ambos os casos, são obras de um mestre digno de ocupar o lugar de Tunga.

Carta de Amor.

Galeria Millan. R. Fradique Coutinho, 1.360/1.416. Tel. 3031-6007. 2ª/6ª, 10h/19h; sábados, 11h/15h. Entrada gratuita. Até 27/5.

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