Em 1942, quando Max Heppner tinha 8 anos, seus pais lhe disseram que a família estava saindo de Amsterdã para passar férias. Mas, na verdade, eles foram se esconder em Zeilberg, uma pequena cidade agrícola na Holanda, onde viveram a guerra em um galinheiro.
Albert Heppner, pai de Max, era um negociante de arte nascido em Berlim, especializado em pinturas de antigos mestres holandeses. Era a segunda vez que ele e sua esposa, Irene, tinham de fugir dos nazistas. Eles haviam deixado a Alemanha em 1933, quando Irene estava grávida, porque eram judeus. Agora precisavam fugir mais uma vez, levando tudo o que cabia em várias malas e uma mochila cinza-azulada.
Eles foram acolhidos por uma família católica de fazendeiros, os Janssen, que tinham nove filhos e muitos animais. Por sorte – Harry Janssen dizia brincando, para amenizar a triste realidade – os nazistas haviam roubado todas as galinhas pouco antes da chegada dos Heppner.
O galinheiro tinha piso de tijolos, dois cômodos pequenos e telhado inclinado. Com 1,83 metro de altura, Albert Heppner só conseguia ficar de pé no ponto mais alto. Havia também um fogareiro, projetado para manter os pintinhos aquecidos, que se mostrou bem útil. Mesmo assim, disse Max Heppner, “sempre fazia frio”.
Heppner brincava com as outras crianças e usava um nome inventado, Fransje, para ajudar a esconder sua identidade. Durante o dia, enquanto as outras crianças iam para a escola, Heppner ficava na fazenda, ordenhando vacas, fazendo outras tarefas e sendo educado em casa por seu pai.
“De certa forma, era bom porque eu gostava de ficar na fazenda, mas às vezes eu me sentia muito desamparado, porque tudo o que eu conhecia de antes havia desaparecido”, disse ele. “Eu não tinha meus brinquedos, não tinha meus amigos. Não tinha nem meu nome, porque precisava usar um nome falso.”
Ele acrescentou: “A mensagem era: ‘Não exista. Finja que você não está aqui’”.
Agora a mochila dos Heppner está em uma das vitrines do Museu Nacional do Holocausto em Amsterdã, como parte de Looted [algo como “Saqueado”], exposição que vai até 27 de outubro e apresenta oito narrativas pessoais sobre perda, cercadas por objetos íntimos, diários e cartas pessoais.
Pratarias, livros e um pergaminho religioso marcado com pegadas de botas nazistas dividem o espaço com obras de arte e itens pessoais, como a mochila e um desenho da mochila que Heppner fez quando menino, encostada na parede do galinheiro no verão de 1944.
Uma exposição diferente poderia ter colocado em primeiro plano a arte que o pai de Heppner perdeu para os nazistas. Mas, para Taco Dibbits, diretor do Rijksmuseum, que fez a curadoria da exposição com o museu do Bairro Cultural Judaico, os objetos “carregados de emoções” ajudam a conectar a história dos saques ao seu efeito sobre os indivíduos.
“Muitas vezes, quando falamos de restituição, é por causa de alguma obra de grande valor monetário, ou de algum leilão ou reivindicação”, disse Dibbits. “As pessoas falam sobre esse lado, mas não falam sobre o impacto nas famílias das quais esses objetos foram roubados.”
Heppner, que agora tem 90 anos e mora em Hillsboro Beach, Flórida, disse que a mochila era o símbolo perfeito de sua experiência sob perseguição. Por um tempo, ela guardou todos os bens materiais da família. Agora, ela guarda o passado.
“A mochila realmente simboliza tudo: pessoas em fuga, pessoas sem posses, pessoas sem um lar”, disse ele. “Enquanto estávamos fugindo, as coisas se perdiam pelo caminho ou eram tomadas de nós”, acrescentou. “Quando chegamos ao galinheiro, aquela mochila era tudo o que nos restava. Era tudo o que eu tinha, exceto o que eu estava vestindo no dia em que saímos de casa”.
A vida durante a ascensão do nazismo
Antes de os nazistas invadirem a Holanda, em 1940, Albert e Irene Heppner viviam com a família em um belo canal no centro de Amsterdã, o Prinsengracht. Em março de 1941, os empresários judeus perderam a permissão para ter negócios. Alguns meses depois, os judeus foram proibidos de frequentar determinados parques públicos. Em seguida, foram expulsos da associação comercial de negociantes de arte, o que significava que Albert não podia mais trabalhar.
Os Heppner se mudaram para outra casa no sul da cidade, mas a polícia holandesa apareceu lá e levou seis pinturas. Alguns dos colegas de Albert avaliaram a arte para os nazistas – o que ele sentiu como uma profunda traição pessoal.
“Depois da guerra, as pessoas falavam sobre o assunto com a ideia de que os nazistas eram monstros desumanos”, disse Max Heppner. “Não é verdade. Eles eram pessoas comuns, e isso é o mais doloroso”.
Em julho de 1942, milhares de judeus holandeses receberam avisos de que deveriam se apresentar para “trabalhar”, mas Albert Heppner entendeu as implicações da deportação. “Albert enxergou toda a dimensão do perigo e nunca acreditou nas notícias de ‘trabalho na Alemanha’”, escreveu Irene Heppner, tempos depois.
De fato, era uma cilada. A grande maioria dos judeus deportados da Holanda foi enviada diretamente para os campos de extermínio de Auschwitz e Sobibor.
Quando os Heppner fugiram, eles tinham esperança de chegar à França. Eles se juntaram a outra família judia, Heinz e Elly Graumann e seu filho de 16 anos, Michael. Mas, pouco antes de cruzarem a fronteira, encontraram o corpo de Michael jogado em uma vala, e então pegaram o caminho de volta.
Max Heppner disse que passara muito melhor do que algumas pessoas que tiveram de se esconder em estábulos ou latrinas, embora tenha crescido com um medo insistente de ser descoberto. “Posso contar toda a minha história na guerra com uma única palavra: medo”, disse ele. “Medo de ser morto”.
A pilhagem sistemática de propriedades judaicas durante a Segunda Guerra Mundial “não era só para roubar objetos bonitos”, disse Dibbits. “Era para despojar as pessoas de sua humanidade. Era um elemento essencial da desumanização. Isolamento, transporte, roubo e assassinato: tudo isso faz parte do Holocausto”.
Acerto de contas com a perseguição aos judeus perpetrada pela Holanda
Dibbits disse que a exposição tenta explicar que a perseguição aos judeus holandeses não foi perpetrada apenas pelos nazistas alemães. “Foi também a polícia holandesa. Foram as empresas de mudança holandesas, as empresas de transporte holandesas, as ferrovias holandesas, etc., etc.”, disse ele. “É algo que temos de enfrentar agora. É também por isso que sentimos que precisávamos fazer essa exposição.”
O sentimento de desumanização de Max Heppner fez com que ele às vezes se identificasse com os animais da fazenda. “Eu me lembro de algumas vezes em que abatemos animais na fazenda”, disse ele. “Tínhamos de amarrar o porco pelas pernas traseiras e, com ele pendurado, cortar sua garganta. Eu vi tudo isso acontecer. Era o que eu imaginava que aconteceria comigo se eu fosse pego.”
Sua família sobreviveu até a libertação de Zeilberg em setembro de 1944, sete meses e meio antes da rendição das forças alemãs na Holanda. Mas seu pai tinha ouvido falar que as pessoas estavam passando fome na capital holandesa e, por isso, carregou uma caixa com legumes para levar para o norte. Foi a última vez que Max Heppner viu o pai, que morreu de insuficiência hepática em junho, no vilarejo de Barneveld.
Depois da guerra, Irene Heppner começou a procurar as pinturas da família e encontrou duas delas penduradas na casa de seus antigos vizinhos, que haviam sido colaboradores nazistas. Ela recebeu ajuda da polícia para recuperá-las. Depois que ela e o filho se mudaram para os Estados Unidos, ela continuou procurando as outras pinturas, mas nunca as encontrou.
Luta pela restituição de patrimônio
Outras narrativas da exposição se concentram em casos de restituição mais conhecidos: Margarete Stern-Lippman, cuja família era proprietária de uma pintura de Wassily Kandinsky, Murnau com a Igreja II, que foi objeto de uma complicada luta pela restituição; Leo Isaac Lessmann, colecionador de artigos judaicos; e Desi Goudstikker-von Halban, viúva do negociante de arte judeu Jacques Goudstikker.
Goudstikker, negociante de antigos mestres e uma das principais figuras culturais da Holanda antes da guerra, morreu em um acidente no navio a vapor em que embarcou com a esposa e o filho pequeno para escapar da invasão alemã, em maio de 1940.
A curadora do Rijksmuseum, Mara Lagerweij, disse que se concentrou em Goudstikker-von Halban como personagem principal dessa exposição, em vez de Goudstikker, porque muito já foi escrito sobre ele.
“Sempre tento imaginar como deve ter sido para ela, quando jovem”, disse Lagerweij. “Depois desse trágico acidente, ela tinha um filho de um ano e meio de idade e precisou começar uma vida nova.”
Goudstikker-von Halban desembarcou nos Estados Unidos sozinha com o filho, enquanto, em Amsterdã, Hermann Goering, o braço direito de Hitler, saqueava a galeria de arte de seu marido.
Depois da guerra, ela tentou recuperar parte do patrimônio da família e recebeu compensações parciais em acordos com o estado holandês. Ela concordou em abrir mão de algumas obras que tinham sido vendidas por meio de um agente nazista. Mas centenas de outras obras de arte da galeria de sua família permaneceram em museus holandeses.
“Poderíamos imaginar que ela não estaria disposta a travar essa batalha pela coleção de arte dele”, disse Lagerweij, “mas acho que ela entendeu que era o trabalho da vida dele e pensou: ‘Não posso trazer meu marido de volta, mas vou lutar pelo que é dele por direito’”.
Em 2006, a nora do casal, Marei von Saher, e a neta, Charlène von Saher, ganharam um dos casos de restituição mais importantes da história holandesa, quando 202 pinturas foram devolvidas às herdeiras do casal. Centenas das obras de arte de Goudstikker ainda estão perdidas, provavelmente espalhadas pelo mundo.
“Ao nos concentrarmos nela, podemos ver os motivos que levaram alguém a querer as coisas de volta”, disse Lagerweij. “Não é apenas o dinheiro – é a vida que as pessoas tiveram juntas, é sua herança, é emocional. A ideia de recuperar as coisas como uma forma de reconciliação ainda é muito presente”.
A exposição reflete o objetivo do Museu Nacional do Holocausto de “re-humanizar” as vítimas dos nazistas, disse seu diretor, Emile Schrijver.
Max Heppner, especialista em informações públicas aposentado do Departamento de Agricultura dos Estados Unidos, escreveu dois livros sobre a vida da família durante a guerra: I Live in a Chickenhouse e The Submergers. [em tradução direta, Eu moro em um galinheiro e Os Submersos, respectivamente].
“Tem sido um desafio para toda a vida não me ver como uma vítima”, disse ele. “A palavra holandesa para vítima é slachtoffer, que é a palavra que designa os animais levados ao templo para serem abatidos como oferenda a Deus. Não quero me ver assim, como uma vítima. Prefiro me ver como um contador de histórias”. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU