Há alguns anos, o jornalista e historiador britânico Simon Sebag Montefiore teve o duvidoso prazer de descobrir, por meio de uma nota na imprensa americana, que o ex-presidente George W. Bush lia em voz alta para a mulher, Laura, toda noite, na intimidade do leito do casal, seu livro Catherine the Great & Potemkin (2004), com ênfase particular nas partes mais picantes. O fato de ter conquistado até mesmo Bush revela o sucesso da tendência recente que transforma livros de história, antes vistos como "chatos", em saborosos best sellers "highly readable", que podem ser lidos como um romance. Se tantos historiadores se esforçam para se transformar em romancistas, não há como se criticar a mais nova iniciativa de Montefiore com Sashenka: usar o saber adquirido em horas infindas em arquivos empoeirados e partir diretamente para o romance, sua primeira incursão no gênero. Com a vantagem de que, ao contrário das tradicionais novelas históricas, que nos "ensinavam" um passado idealizado e canhestro, em Sashenka, traduzido por Paulo Afonso, a ficção vem referendada por quem conhece a história russa em minúcias, como provam seus livros anteriores, as biografias Stalin (2005) e Jovem Stalin (2008). O livro é dividido em três partes, num painel dos eventos que moldaram a Rússia moderna. Na primeira, que se passa entre 1916 e 1917, conhecemos a jovem Sashenka, filha adolescente de um comerciante judeu que conseguiu ascender, à custa de muitas propinas para a nobreza Romanov, a um status de poder, apesar do intenso antissemitismo da corte do czar. O contraponto do pai é o tio coxo bolchevista que, secretamente, converte a moça ao ideal revolucionário. Rebelde, Sashenka fica orgulhosa em ser presa e colocada numa cela com o que chama de "a verdadeira Rússia, que não a das sanguessugas capitalistas". Solta pelo pai, entra de cabeça no movimento, a ponto de ganhar elogios de Lenin (de quem será secretária), e vibra com a abdicação do czar. A história pula para 1939 e Sashenka é a mulher soviética personificada, mãe de dois filhos, casada com um influente oficial da NKVD, torturador especializado em arrancar confissões de dissidentes. Juntos, eles levam uma vida confortável, com direito a um belo apartamento e uma "dacha". Ganham até o "privilégio" de receber uma visita-surpresa de Stalin (sem dúvida o grande personagem do livro). Quando Sashenka cede aos encantos de um escritor judeu e o marido descobre tudo, o mundo soviético de suposta perfeição vem abaixo e ela descobrirá, dolorosamente, o terror da URSS estalinista, com suas prisões tão cruéis quanto as de Nicolau II. O destino da heroína permanece em suspenso. Na última parte do romance estamos em 1994 numa Rússia dominada por mafiosos e novos-ricos. Uma historiadora (um irônico alter ego do autor) é contratada para vasculhar os arquivos soviéticos recém-abertos e descobrir, para uma oligarca, as razões do desaparecimento de seus parentes em 1939. O resultado é inesperado, mas o melhor de Sashenka não é terminar o livro para saber o desfecho e sim saborear a notável reconstituição de época feita por Montefiore. São detalhes infindos, algo que irritou muito os críticos, que o acusaram de uma overdose de realismo descritivo. Sem dúvida, este é um romance para quem gosta mais de história do que de literatura. Mas não se assuste esperando algo artificial, planejado. Aqui, transparece o pesquisador apaixonado pelo seu objeto de estudo, efetivamente tocado pelos milhares de depoimentos que leu. Por vezes, há a impressão desagradável de ler frases que soam como chavões (muitas são mesmo). Basta, porém, se debruçar sobre The Whisperers, o estudo fascinante de Orlando Figes sobre a vida cotidiana nos tempos de Stalin, para compreender que, naquela época, os chavões eram a mais pura realidade. Assim, embora cercada por acontecimentos épicos, no centro da história está a família, instituição que os bolcheviques abominavam. É quando perde os filhos que Sashenka, enfim, toma consciência do engano em apostar na "sinceridade" do discurso estalinista. Também é ponto importante para Montefiore, de família judaica, o antissemitismo russo. Por fim, a escolha de uma mulher para protagonizar a trama dá voz às muitas vítimas silenciosas do "terror" soviético, em geral desprezadas pela historiografia. Montefiore, ainda bem, não é um saudosista: nada em Sashenka aparece como condenação do curso da história e de como tudo teria sido "maravilhoso" se o bom Nicolau tivesse continuado a reger seu império. O historiador detesta tanto nobres como bolcheviques, embora reserve aos últimos descrições algo planas e caricatas, com figuras deformadas física e mentalmente, cheias de egoísmo e maldade. Mas Montefiore sabe usar bem sua visão histórica e se pode perceber, nas entrelinhas, o pesquisador que, cansado de apenas lidar com os altos círculos do poder, resolveu contar a vida dos indivíduos que ajudaram a criar tais líderes - e acabaram sofrendo por causa deles. Tragédia, aliás, bem retratada em O Círculo do Poder, filme de Andrei Konchalovsky, que conta a história do projecionista que idolatra Stalin, ao mesmo tempo em que os asseclas do ditador destroem a sua família. Não é sem razão que Jovem Stalin está prestes a virar filme, com Johnny Deep, e o inglês já negocia com a indústria cinematográfica o mesmo para o seu romance. Tudo bem. Pode-se dizer que, em Sashenka, Montefiore, como historiador, é um bom romancista e, como autor de ficção, é um excelente pesquisador. Não é pouco hoje em dia. Carlos Haag é jornalista