A fé e o tom


Por Daniel Piza

Na brecha entre opostos não vejo nem a ponta do infinito nem a vertigem do vazio. Vejo abertura para os vários matizes. Perdi o pouco que tinha ou poderia ter de fé religiosa entre os 13 e 14 anos, depois de um coquetel de leituras que viria a conter Dostoiévski, Darwin, Nietzsche (O Anticristo) e Bertrand Russell (Por Que não Sou Cristão), os dois últimos na coleção Os Pensadores da editora Abril. Mas, na realidade, já desconfiava de tudo aquilo desde quando fui obrigado a fazer primeira comunhão, aos 10 anos, período em que de fato tentei acreditar e rezar e confessar. A chatice e caretice das aulas, a falta de vontade de obedecer aos padres, a sensação de que não fazia sentido pedir perdão por um pecado que a espécie humana teria gravado em sua alma, não apenas por eventualmente ter roubado o chocolate do meu irmão do armário da cozinha - tudo isso era difícil de engolir, como a hóstia que só provei naquela ocasião e nunca mais. Passei a me declarar agnóstico, como que dizendo ''''não sei se Deus existe'''', o que era a mais pura e dura verdade. Depois aprendi que o termo tinha sido cunhado por outro escritor-biólogo de grande estilo, Thomas Huxley, com intenção muito mais combativa: a de negar qualquer possibilidade de conhecermos fenômenos supernaturais ou místicos. Ao mesmo tempo, ele traçou uma distinção com os ateístas da época, que supunham poder provar a não-existência de Deus ou deuses. Em países como o Brasil, porém, quando alguém declara ser ateu ou agnóstico causa levantar de sobrancelhas ou olhares de esguelha, como se prestes a cometer algum gesto feio ou autodestrutivo. Nos EUA, principalmente em certas regiões, a reação é ainda pior. De uns anos para cá, talvez por causa dos atentados de 11/9/2001, os ateus e agnósticos decidiram sair do armário. Surgiram movimentos como o dos ''''brights'''' (você leu aqui primeiro), que acham importante aglutinar pessoas que não acreditam em entidades superiores, espírito e vida pós-morte. O livro do mais célebre desses ''''brights'''', Richard Dawkins, Deus, um Delírio (Companhia das Letras) , acaba de chegar ao Brasil, onde no final do ano passado já tinha sido publicado o do quase tão célebre Daniel C. Dennett, Quebrando o Encanto (Globo). Recentemente li também God Is not Great, de Christopher Hitchens (Twelve), o polemista inglês. Todos têm bons argumentos, mas, devo dizer, nada acrescentam ao que eu já tinha lido e pensado naquele tempo. O que fica sem destaque nesses livros é a observação de que até mesmo pessoas não-religiosas atribuem sentidos diversos à palavra Deus, como a qualquer palavra genérica e antiga, e de que isso é um direito delas. Para umas, é justamente a aceitação de que não podemos explicar tudo, de que somos pequenos diante dos mistérios e da passagem do tempo, etc. Minha palavra para isso é Natureza. Para outras, Deus é uma crença que ajudaria a fortalecer valores morais, em especial a humildade e a responsabilidade, numa era em que há tanto materialismo e egoísmo. Chamo a isso Ética. E outras defendem a noção como forma de consolo ou esperança, necessária para situações de desespero como a do pai de família bêbado e agressivo que encontra conforto na palavra de Jesus. Meu nome para isso é Ânimo - ou boa vontade, ou bom humor, ou qualquer coisa que designe disposição de continuar vivendo e superar obstáculos. Mas, se quiserem chamar de Deus, estarei errado ao supor que defendam ou estejam sujeitas a defender um comportamento repressivo e hipócrita, como diz em especial Hitchens, que é mais um panfletário do que um pensador e nem sequer reconhece o papel do imaginário cristão na tradição cultural. Dennett se mostra mais inclinado a investigar por que o cérebro humano precisa de uma dose de ilusão sobre o futuro, mas acha que não existe convívio possível entre ciência e religião, como se a mesma pessoa não pudesse encarar a fé como ''''encanto'''' e defender evolução e genética. Dawkins, no prefácio à nova edição de seu best-seller, rebate a crítica - de que a presença da religião na humanidade desde priscas eras é inelutável - dizendo que a aceitaria se dita ''''num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação''''. Aqui está, portanto. A religião me preocupa quando pretende explicar a dinâmica das coisas e estimula dogmatismo e conformismo; só não perco meu tempo sonhando em aboli-la. E, tal como Dawkins, acho que seu problema e o de Dennett e Hitchens é de tom. Há algo tolo em quem critica o fundamentalismo com o mesmo dedo em riste e a mesma pregação exaltada daqueles que acusa. RODAPÉ (1) Quem tem dificuldade em perceber o sentido histórico das palavras ''''direita'''' e ''''esquerda'''' não pode perder A Batalha pela Espanha, de Antony Beevor (Record). É um catatau sobre a Guerra Civil Espanhola de 1936-39, reescrito em 2006 em virtude da abertura dos arquivos do regime soviético, e Beevor narra com tanta fluência e ênfase que não damos bola para o tamanho do livro. Vemos a escala de irracionalismo que existe em toda guerra, ao mesmo tempo que percebemos como aquela foi peculiar, até mesmo pela atenção que despertou em artistas e intelectuais como George Orwell e Ernest Hemingway e por ter sido uma espécie de ensaio para a Segunda Guerra Mundial. A chamada direita era composta por Igreja, Exército, oligarquia rural e toda uma classe privilegiada e tradicionalista, unida em torno do anticomunismo, mas acima de tudo com repúdio à república. A chamada esquerda se pretendia revolucionária, acreditava no marxismo leninista e odiava o capitalismo democrático. Numa Espanha atrasada em relação à maioria dos países da Europa, mais parecida com a França do século 18, e num mundo convulsionado pelas crises econômicas dos anos 30, tal dicotomia não era nada senão explosiva. Em comum, os extremos eram nacionalistas e, para usar um eufemismo, tinham boa predisposição a suspender o Estado de Direito caso necessário... Não por acaso, venceu o general Franco e sua ditadura. Há quem prefira isso à alternativa de uma ditadura bolchevique, que seria comandada pelo carbonário Largo Caballero. Eu prefiro não escolher. As alternativas mais ao centro falharam em parte por serem míopes e oportunistas - Alejandro Lerroux era contra mexer nos latifúndios feudais e Manuel Azaña não conseguia dominar os socialistas e anarquistas - e em parte pela vitória da paixão sobre a lucidez. Beevor, ex-oficial, conhece estratégia militar como poucos e descreve as batalhas de modo que prende qualquer tipo de leitor. RODAPÉ (2) Há alguns pais clássicos na literatura, como o Rei Lear de Shakespeare e o Goriot de Balzac, embora a paternidade seja apenas um dos temas dessas histórias. Há também muitos livros sobre filhos com deficiências, como o do Nobel japonês Kenzaburo Oe, que tem um filho com anomalia cerebral. Agora, no Brasil, acaba de sair O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza (Record), que conta a história de seu filho com downiano. Como Oe, ele optou pela terceira pessoa, mas não conseguiu suplantar o registro autobiográfico, o desabafo ora tocante ora digressivo, o relato sucessivo de esperanças e desesperanças à medida que tratamentos são tentados. O narrador em muitos momentos parece relutante em se expor, e com isso muitas reflexões não são desdobradas, apesar das referências literárias e filosóficas. Não é memória nem ensaio nem uma mescla, até porque as mesclas são sempre mais difíceis de fazer. UMA LÁGRIMA Para Joel Silveira, aos 88 anos, que morreu dormindo na quarta-feira. Suas reportagens nos anos 40 para revistas como O Cruzeiro e Diretrizes marcaram época, como as duas sobre os grã-finos de São Paulo. Também fez bons perfis e, como Rubem Braga, cobriu a Segunda Guerra Mundial acompanhando a FEB. Foi seguramente o repórter brasileiro que mais se aproximou do bom ''''jornalismo literário'''', texto que recorre a diálogos, detalhes e efeitos emprestados da narrativa ficcional e reforça em vez de relegar a informação. POR QUE NÃO ME UFANO Os ''''líderes'''' brasileiros são pródigos em fingir que nada têm a ver com os fracassos que comandam. Ricardo Teixeira falou sobre a Copa de 2006 como se não tivesse feito todos os arranjos para treinar na Suíça com platéia pagante. Fernando Henrique Cardoso disse que em seu governo o acesso à educação foi ''''universalizado'''' (sic) e que isso de nada adiantou, porque o que se ensina nas escolas públicas é um ''''desastre''''. E Lula afirmou que a crise aérea já está ''''meio resolvida'''', como se o problema do ministro Nelson Jobim com o tamanho das poltronas fosse metade de tudo. Com ''''líderes'''' assim, quem precisa de inimigos?

Na brecha entre opostos não vejo nem a ponta do infinito nem a vertigem do vazio. Vejo abertura para os vários matizes. Perdi o pouco que tinha ou poderia ter de fé religiosa entre os 13 e 14 anos, depois de um coquetel de leituras que viria a conter Dostoiévski, Darwin, Nietzsche (O Anticristo) e Bertrand Russell (Por Que não Sou Cristão), os dois últimos na coleção Os Pensadores da editora Abril. Mas, na realidade, já desconfiava de tudo aquilo desde quando fui obrigado a fazer primeira comunhão, aos 10 anos, período em que de fato tentei acreditar e rezar e confessar. A chatice e caretice das aulas, a falta de vontade de obedecer aos padres, a sensação de que não fazia sentido pedir perdão por um pecado que a espécie humana teria gravado em sua alma, não apenas por eventualmente ter roubado o chocolate do meu irmão do armário da cozinha - tudo isso era difícil de engolir, como a hóstia que só provei naquela ocasião e nunca mais. Passei a me declarar agnóstico, como que dizendo ''''não sei se Deus existe'''', o que era a mais pura e dura verdade. Depois aprendi que o termo tinha sido cunhado por outro escritor-biólogo de grande estilo, Thomas Huxley, com intenção muito mais combativa: a de negar qualquer possibilidade de conhecermos fenômenos supernaturais ou místicos. Ao mesmo tempo, ele traçou uma distinção com os ateístas da época, que supunham poder provar a não-existência de Deus ou deuses. Em países como o Brasil, porém, quando alguém declara ser ateu ou agnóstico causa levantar de sobrancelhas ou olhares de esguelha, como se prestes a cometer algum gesto feio ou autodestrutivo. Nos EUA, principalmente em certas regiões, a reação é ainda pior. De uns anos para cá, talvez por causa dos atentados de 11/9/2001, os ateus e agnósticos decidiram sair do armário. Surgiram movimentos como o dos ''''brights'''' (você leu aqui primeiro), que acham importante aglutinar pessoas que não acreditam em entidades superiores, espírito e vida pós-morte. O livro do mais célebre desses ''''brights'''', Richard Dawkins, Deus, um Delírio (Companhia das Letras) , acaba de chegar ao Brasil, onde no final do ano passado já tinha sido publicado o do quase tão célebre Daniel C. Dennett, Quebrando o Encanto (Globo). Recentemente li também God Is not Great, de Christopher Hitchens (Twelve), o polemista inglês. Todos têm bons argumentos, mas, devo dizer, nada acrescentam ao que eu já tinha lido e pensado naquele tempo. O que fica sem destaque nesses livros é a observação de que até mesmo pessoas não-religiosas atribuem sentidos diversos à palavra Deus, como a qualquer palavra genérica e antiga, e de que isso é um direito delas. Para umas, é justamente a aceitação de que não podemos explicar tudo, de que somos pequenos diante dos mistérios e da passagem do tempo, etc. Minha palavra para isso é Natureza. Para outras, Deus é uma crença que ajudaria a fortalecer valores morais, em especial a humildade e a responsabilidade, numa era em que há tanto materialismo e egoísmo. Chamo a isso Ética. E outras defendem a noção como forma de consolo ou esperança, necessária para situações de desespero como a do pai de família bêbado e agressivo que encontra conforto na palavra de Jesus. Meu nome para isso é Ânimo - ou boa vontade, ou bom humor, ou qualquer coisa que designe disposição de continuar vivendo e superar obstáculos. Mas, se quiserem chamar de Deus, estarei errado ao supor que defendam ou estejam sujeitas a defender um comportamento repressivo e hipócrita, como diz em especial Hitchens, que é mais um panfletário do que um pensador e nem sequer reconhece o papel do imaginário cristão na tradição cultural. Dennett se mostra mais inclinado a investigar por que o cérebro humano precisa de uma dose de ilusão sobre o futuro, mas acha que não existe convívio possível entre ciência e religião, como se a mesma pessoa não pudesse encarar a fé como ''''encanto'''' e defender evolução e genética. Dawkins, no prefácio à nova edição de seu best-seller, rebate a crítica - de que a presença da religião na humanidade desde priscas eras é inelutável - dizendo que a aceitaria se dita ''''num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação''''. Aqui está, portanto. A religião me preocupa quando pretende explicar a dinâmica das coisas e estimula dogmatismo e conformismo; só não perco meu tempo sonhando em aboli-la. E, tal como Dawkins, acho que seu problema e o de Dennett e Hitchens é de tom. Há algo tolo em quem critica o fundamentalismo com o mesmo dedo em riste e a mesma pregação exaltada daqueles que acusa. RODAPÉ (1) Quem tem dificuldade em perceber o sentido histórico das palavras ''''direita'''' e ''''esquerda'''' não pode perder A Batalha pela Espanha, de Antony Beevor (Record). É um catatau sobre a Guerra Civil Espanhola de 1936-39, reescrito em 2006 em virtude da abertura dos arquivos do regime soviético, e Beevor narra com tanta fluência e ênfase que não damos bola para o tamanho do livro. Vemos a escala de irracionalismo que existe em toda guerra, ao mesmo tempo que percebemos como aquela foi peculiar, até mesmo pela atenção que despertou em artistas e intelectuais como George Orwell e Ernest Hemingway e por ter sido uma espécie de ensaio para a Segunda Guerra Mundial. A chamada direita era composta por Igreja, Exército, oligarquia rural e toda uma classe privilegiada e tradicionalista, unida em torno do anticomunismo, mas acima de tudo com repúdio à república. A chamada esquerda se pretendia revolucionária, acreditava no marxismo leninista e odiava o capitalismo democrático. Numa Espanha atrasada em relação à maioria dos países da Europa, mais parecida com a França do século 18, e num mundo convulsionado pelas crises econômicas dos anos 30, tal dicotomia não era nada senão explosiva. Em comum, os extremos eram nacionalistas e, para usar um eufemismo, tinham boa predisposição a suspender o Estado de Direito caso necessário... Não por acaso, venceu o general Franco e sua ditadura. Há quem prefira isso à alternativa de uma ditadura bolchevique, que seria comandada pelo carbonário Largo Caballero. Eu prefiro não escolher. As alternativas mais ao centro falharam em parte por serem míopes e oportunistas - Alejandro Lerroux era contra mexer nos latifúndios feudais e Manuel Azaña não conseguia dominar os socialistas e anarquistas - e em parte pela vitória da paixão sobre a lucidez. Beevor, ex-oficial, conhece estratégia militar como poucos e descreve as batalhas de modo que prende qualquer tipo de leitor. RODAPÉ (2) Há alguns pais clássicos na literatura, como o Rei Lear de Shakespeare e o Goriot de Balzac, embora a paternidade seja apenas um dos temas dessas histórias. Há também muitos livros sobre filhos com deficiências, como o do Nobel japonês Kenzaburo Oe, que tem um filho com anomalia cerebral. Agora, no Brasil, acaba de sair O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza (Record), que conta a história de seu filho com downiano. Como Oe, ele optou pela terceira pessoa, mas não conseguiu suplantar o registro autobiográfico, o desabafo ora tocante ora digressivo, o relato sucessivo de esperanças e desesperanças à medida que tratamentos são tentados. O narrador em muitos momentos parece relutante em se expor, e com isso muitas reflexões não são desdobradas, apesar das referências literárias e filosóficas. Não é memória nem ensaio nem uma mescla, até porque as mesclas são sempre mais difíceis de fazer. UMA LÁGRIMA Para Joel Silveira, aos 88 anos, que morreu dormindo na quarta-feira. Suas reportagens nos anos 40 para revistas como O Cruzeiro e Diretrizes marcaram época, como as duas sobre os grã-finos de São Paulo. Também fez bons perfis e, como Rubem Braga, cobriu a Segunda Guerra Mundial acompanhando a FEB. Foi seguramente o repórter brasileiro que mais se aproximou do bom ''''jornalismo literário'''', texto que recorre a diálogos, detalhes e efeitos emprestados da narrativa ficcional e reforça em vez de relegar a informação. POR QUE NÃO ME UFANO Os ''''líderes'''' brasileiros são pródigos em fingir que nada têm a ver com os fracassos que comandam. Ricardo Teixeira falou sobre a Copa de 2006 como se não tivesse feito todos os arranjos para treinar na Suíça com platéia pagante. Fernando Henrique Cardoso disse que em seu governo o acesso à educação foi ''''universalizado'''' (sic) e que isso de nada adiantou, porque o que se ensina nas escolas públicas é um ''''desastre''''. E Lula afirmou que a crise aérea já está ''''meio resolvida'''', como se o problema do ministro Nelson Jobim com o tamanho das poltronas fosse metade de tudo. Com ''''líderes'''' assim, quem precisa de inimigos?

Na brecha entre opostos não vejo nem a ponta do infinito nem a vertigem do vazio. Vejo abertura para os vários matizes. Perdi o pouco que tinha ou poderia ter de fé religiosa entre os 13 e 14 anos, depois de um coquetel de leituras que viria a conter Dostoiévski, Darwin, Nietzsche (O Anticristo) e Bertrand Russell (Por Que não Sou Cristão), os dois últimos na coleção Os Pensadores da editora Abril. Mas, na realidade, já desconfiava de tudo aquilo desde quando fui obrigado a fazer primeira comunhão, aos 10 anos, período em que de fato tentei acreditar e rezar e confessar. A chatice e caretice das aulas, a falta de vontade de obedecer aos padres, a sensação de que não fazia sentido pedir perdão por um pecado que a espécie humana teria gravado em sua alma, não apenas por eventualmente ter roubado o chocolate do meu irmão do armário da cozinha - tudo isso era difícil de engolir, como a hóstia que só provei naquela ocasião e nunca mais. Passei a me declarar agnóstico, como que dizendo ''''não sei se Deus existe'''', o que era a mais pura e dura verdade. Depois aprendi que o termo tinha sido cunhado por outro escritor-biólogo de grande estilo, Thomas Huxley, com intenção muito mais combativa: a de negar qualquer possibilidade de conhecermos fenômenos supernaturais ou místicos. Ao mesmo tempo, ele traçou uma distinção com os ateístas da época, que supunham poder provar a não-existência de Deus ou deuses. Em países como o Brasil, porém, quando alguém declara ser ateu ou agnóstico causa levantar de sobrancelhas ou olhares de esguelha, como se prestes a cometer algum gesto feio ou autodestrutivo. Nos EUA, principalmente em certas regiões, a reação é ainda pior. De uns anos para cá, talvez por causa dos atentados de 11/9/2001, os ateus e agnósticos decidiram sair do armário. Surgiram movimentos como o dos ''''brights'''' (você leu aqui primeiro), que acham importante aglutinar pessoas que não acreditam em entidades superiores, espírito e vida pós-morte. O livro do mais célebre desses ''''brights'''', Richard Dawkins, Deus, um Delírio (Companhia das Letras) , acaba de chegar ao Brasil, onde no final do ano passado já tinha sido publicado o do quase tão célebre Daniel C. Dennett, Quebrando o Encanto (Globo). Recentemente li também God Is not Great, de Christopher Hitchens (Twelve), o polemista inglês. Todos têm bons argumentos, mas, devo dizer, nada acrescentam ao que eu já tinha lido e pensado naquele tempo. O que fica sem destaque nesses livros é a observação de que até mesmo pessoas não-religiosas atribuem sentidos diversos à palavra Deus, como a qualquer palavra genérica e antiga, e de que isso é um direito delas. Para umas, é justamente a aceitação de que não podemos explicar tudo, de que somos pequenos diante dos mistérios e da passagem do tempo, etc. Minha palavra para isso é Natureza. Para outras, Deus é uma crença que ajudaria a fortalecer valores morais, em especial a humildade e a responsabilidade, numa era em que há tanto materialismo e egoísmo. Chamo a isso Ética. E outras defendem a noção como forma de consolo ou esperança, necessária para situações de desespero como a do pai de família bêbado e agressivo que encontra conforto na palavra de Jesus. Meu nome para isso é Ânimo - ou boa vontade, ou bom humor, ou qualquer coisa que designe disposição de continuar vivendo e superar obstáculos. Mas, se quiserem chamar de Deus, estarei errado ao supor que defendam ou estejam sujeitas a defender um comportamento repressivo e hipócrita, como diz em especial Hitchens, que é mais um panfletário do que um pensador e nem sequer reconhece o papel do imaginário cristão na tradição cultural. Dennett se mostra mais inclinado a investigar por que o cérebro humano precisa de uma dose de ilusão sobre o futuro, mas acha que não existe convívio possível entre ciência e religião, como se a mesma pessoa não pudesse encarar a fé como ''''encanto'''' e defender evolução e genética. Dawkins, no prefácio à nova edição de seu best-seller, rebate a crítica - de que a presença da religião na humanidade desde priscas eras é inelutável - dizendo que a aceitaria se dita ''''num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação''''. Aqui está, portanto. A religião me preocupa quando pretende explicar a dinâmica das coisas e estimula dogmatismo e conformismo; só não perco meu tempo sonhando em aboli-la. E, tal como Dawkins, acho que seu problema e o de Dennett e Hitchens é de tom. Há algo tolo em quem critica o fundamentalismo com o mesmo dedo em riste e a mesma pregação exaltada daqueles que acusa. RODAPÉ (1) Quem tem dificuldade em perceber o sentido histórico das palavras ''''direita'''' e ''''esquerda'''' não pode perder A Batalha pela Espanha, de Antony Beevor (Record). É um catatau sobre a Guerra Civil Espanhola de 1936-39, reescrito em 2006 em virtude da abertura dos arquivos do regime soviético, e Beevor narra com tanta fluência e ênfase que não damos bola para o tamanho do livro. Vemos a escala de irracionalismo que existe em toda guerra, ao mesmo tempo que percebemos como aquela foi peculiar, até mesmo pela atenção que despertou em artistas e intelectuais como George Orwell e Ernest Hemingway e por ter sido uma espécie de ensaio para a Segunda Guerra Mundial. A chamada direita era composta por Igreja, Exército, oligarquia rural e toda uma classe privilegiada e tradicionalista, unida em torno do anticomunismo, mas acima de tudo com repúdio à república. A chamada esquerda se pretendia revolucionária, acreditava no marxismo leninista e odiava o capitalismo democrático. Numa Espanha atrasada em relação à maioria dos países da Europa, mais parecida com a França do século 18, e num mundo convulsionado pelas crises econômicas dos anos 30, tal dicotomia não era nada senão explosiva. Em comum, os extremos eram nacionalistas e, para usar um eufemismo, tinham boa predisposição a suspender o Estado de Direito caso necessário... Não por acaso, venceu o general Franco e sua ditadura. Há quem prefira isso à alternativa de uma ditadura bolchevique, que seria comandada pelo carbonário Largo Caballero. Eu prefiro não escolher. As alternativas mais ao centro falharam em parte por serem míopes e oportunistas - Alejandro Lerroux era contra mexer nos latifúndios feudais e Manuel Azaña não conseguia dominar os socialistas e anarquistas - e em parte pela vitória da paixão sobre a lucidez. Beevor, ex-oficial, conhece estratégia militar como poucos e descreve as batalhas de modo que prende qualquer tipo de leitor. RODAPÉ (2) Há alguns pais clássicos na literatura, como o Rei Lear de Shakespeare e o Goriot de Balzac, embora a paternidade seja apenas um dos temas dessas histórias. Há também muitos livros sobre filhos com deficiências, como o do Nobel japonês Kenzaburo Oe, que tem um filho com anomalia cerebral. Agora, no Brasil, acaba de sair O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza (Record), que conta a história de seu filho com downiano. Como Oe, ele optou pela terceira pessoa, mas não conseguiu suplantar o registro autobiográfico, o desabafo ora tocante ora digressivo, o relato sucessivo de esperanças e desesperanças à medida que tratamentos são tentados. O narrador em muitos momentos parece relutante em se expor, e com isso muitas reflexões não são desdobradas, apesar das referências literárias e filosóficas. Não é memória nem ensaio nem uma mescla, até porque as mesclas são sempre mais difíceis de fazer. UMA LÁGRIMA Para Joel Silveira, aos 88 anos, que morreu dormindo na quarta-feira. Suas reportagens nos anos 40 para revistas como O Cruzeiro e Diretrizes marcaram época, como as duas sobre os grã-finos de São Paulo. Também fez bons perfis e, como Rubem Braga, cobriu a Segunda Guerra Mundial acompanhando a FEB. Foi seguramente o repórter brasileiro que mais se aproximou do bom ''''jornalismo literário'''', texto que recorre a diálogos, detalhes e efeitos emprestados da narrativa ficcional e reforça em vez de relegar a informação. POR QUE NÃO ME UFANO Os ''''líderes'''' brasileiros são pródigos em fingir que nada têm a ver com os fracassos que comandam. Ricardo Teixeira falou sobre a Copa de 2006 como se não tivesse feito todos os arranjos para treinar na Suíça com platéia pagante. Fernando Henrique Cardoso disse que em seu governo o acesso à educação foi ''''universalizado'''' (sic) e que isso de nada adiantou, porque o que se ensina nas escolas públicas é um ''''desastre''''. E Lula afirmou que a crise aérea já está ''''meio resolvida'''', como se o problema do ministro Nelson Jobim com o tamanho das poltronas fosse metade de tudo. Com ''''líderes'''' assim, quem precisa de inimigos?

Na brecha entre opostos não vejo nem a ponta do infinito nem a vertigem do vazio. Vejo abertura para os vários matizes. Perdi o pouco que tinha ou poderia ter de fé religiosa entre os 13 e 14 anos, depois de um coquetel de leituras que viria a conter Dostoiévski, Darwin, Nietzsche (O Anticristo) e Bertrand Russell (Por Que não Sou Cristão), os dois últimos na coleção Os Pensadores da editora Abril. Mas, na realidade, já desconfiava de tudo aquilo desde quando fui obrigado a fazer primeira comunhão, aos 10 anos, período em que de fato tentei acreditar e rezar e confessar. A chatice e caretice das aulas, a falta de vontade de obedecer aos padres, a sensação de que não fazia sentido pedir perdão por um pecado que a espécie humana teria gravado em sua alma, não apenas por eventualmente ter roubado o chocolate do meu irmão do armário da cozinha - tudo isso era difícil de engolir, como a hóstia que só provei naquela ocasião e nunca mais. Passei a me declarar agnóstico, como que dizendo ''''não sei se Deus existe'''', o que era a mais pura e dura verdade. Depois aprendi que o termo tinha sido cunhado por outro escritor-biólogo de grande estilo, Thomas Huxley, com intenção muito mais combativa: a de negar qualquer possibilidade de conhecermos fenômenos supernaturais ou místicos. Ao mesmo tempo, ele traçou uma distinção com os ateístas da época, que supunham poder provar a não-existência de Deus ou deuses. Em países como o Brasil, porém, quando alguém declara ser ateu ou agnóstico causa levantar de sobrancelhas ou olhares de esguelha, como se prestes a cometer algum gesto feio ou autodestrutivo. Nos EUA, principalmente em certas regiões, a reação é ainda pior. De uns anos para cá, talvez por causa dos atentados de 11/9/2001, os ateus e agnósticos decidiram sair do armário. Surgiram movimentos como o dos ''''brights'''' (você leu aqui primeiro), que acham importante aglutinar pessoas que não acreditam em entidades superiores, espírito e vida pós-morte. O livro do mais célebre desses ''''brights'''', Richard Dawkins, Deus, um Delírio (Companhia das Letras) , acaba de chegar ao Brasil, onde no final do ano passado já tinha sido publicado o do quase tão célebre Daniel C. Dennett, Quebrando o Encanto (Globo). Recentemente li também God Is not Great, de Christopher Hitchens (Twelve), o polemista inglês. Todos têm bons argumentos, mas, devo dizer, nada acrescentam ao que eu já tinha lido e pensado naquele tempo. O que fica sem destaque nesses livros é a observação de que até mesmo pessoas não-religiosas atribuem sentidos diversos à palavra Deus, como a qualquer palavra genérica e antiga, e de que isso é um direito delas. Para umas, é justamente a aceitação de que não podemos explicar tudo, de que somos pequenos diante dos mistérios e da passagem do tempo, etc. Minha palavra para isso é Natureza. Para outras, Deus é uma crença que ajudaria a fortalecer valores morais, em especial a humildade e a responsabilidade, numa era em que há tanto materialismo e egoísmo. Chamo a isso Ética. E outras defendem a noção como forma de consolo ou esperança, necessária para situações de desespero como a do pai de família bêbado e agressivo que encontra conforto na palavra de Jesus. Meu nome para isso é Ânimo - ou boa vontade, ou bom humor, ou qualquer coisa que designe disposição de continuar vivendo e superar obstáculos. Mas, se quiserem chamar de Deus, estarei errado ao supor que defendam ou estejam sujeitas a defender um comportamento repressivo e hipócrita, como diz em especial Hitchens, que é mais um panfletário do que um pensador e nem sequer reconhece o papel do imaginário cristão na tradição cultural. Dennett se mostra mais inclinado a investigar por que o cérebro humano precisa de uma dose de ilusão sobre o futuro, mas acha que não existe convívio possível entre ciência e religião, como se a mesma pessoa não pudesse encarar a fé como ''''encanto'''' e defender evolução e genética. Dawkins, no prefácio à nova edição de seu best-seller, rebate a crítica - de que a presença da religião na humanidade desde priscas eras é inelutável - dizendo que a aceitaria se dita ''''num tom que chegasse pelo menos perto do da pena ou da preocupação''''. Aqui está, portanto. A religião me preocupa quando pretende explicar a dinâmica das coisas e estimula dogmatismo e conformismo; só não perco meu tempo sonhando em aboli-la. E, tal como Dawkins, acho que seu problema e o de Dennett e Hitchens é de tom. Há algo tolo em quem critica o fundamentalismo com o mesmo dedo em riste e a mesma pregação exaltada daqueles que acusa. RODAPÉ (1) Quem tem dificuldade em perceber o sentido histórico das palavras ''''direita'''' e ''''esquerda'''' não pode perder A Batalha pela Espanha, de Antony Beevor (Record). É um catatau sobre a Guerra Civil Espanhola de 1936-39, reescrito em 2006 em virtude da abertura dos arquivos do regime soviético, e Beevor narra com tanta fluência e ênfase que não damos bola para o tamanho do livro. Vemos a escala de irracionalismo que existe em toda guerra, ao mesmo tempo que percebemos como aquela foi peculiar, até mesmo pela atenção que despertou em artistas e intelectuais como George Orwell e Ernest Hemingway e por ter sido uma espécie de ensaio para a Segunda Guerra Mundial. A chamada direita era composta por Igreja, Exército, oligarquia rural e toda uma classe privilegiada e tradicionalista, unida em torno do anticomunismo, mas acima de tudo com repúdio à república. A chamada esquerda se pretendia revolucionária, acreditava no marxismo leninista e odiava o capitalismo democrático. Numa Espanha atrasada em relação à maioria dos países da Europa, mais parecida com a França do século 18, e num mundo convulsionado pelas crises econômicas dos anos 30, tal dicotomia não era nada senão explosiva. Em comum, os extremos eram nacionalistas e, para usar um eufemismo, tinham boa predisposição a suspender o Estado de Direito caso necessário... Não por acaso, venceu o general Franco e sua ditadura. Há quem prefira isso à alternativa de uma ditadura bolchevique, que seria comandada pelo carbonário Largo Caballero. Eu prefiro não escolher. As alternativas mais ao centro falharam em parte por serem míopes e oportunistas - Alejandro Lerroux era contra mexer nos latifúndios feudais e Manuel Azaña não conseguia dominar os socialistas e anarquistas - e em parte pela vitória da paixão sobre a lucidez. Beevor, ex-oficial, conhece estratégia militar como poucos e descreve as batalhas de modo que prende qualquer tipo de leitor. RODAPÉ (2) Há alguns pais clássicos na literatura, como o Rei Lear de Shakespeare e o Goriot de Balzac, embora a paternidade seja apenas um dos temas dessas histórias. Há também muitos livros sobre filhos com deficiências, como o do Nobel japonês Kenzaburo Oe, que tem um filho com anomalia cerebral. Agora, no Brasil, acaba de sair O Filho Eterno, de Cristóvão Tezza (Record), que conta a história de seu filho com downiano. Como Oe, ele optou pela terceira pessoa, mas não conseguiu suplantar o registro autobiográfico, o desabafo ora tocante ora digressivo, o relato sucessivo de esperanças e desesperanças à medida que tratamentos são tentados. O narrador em muitos momentos parece relutante em se expor, e com isso muitas reflexões não são desdobradas, apesar das referências literárias e filosóficas. Não é memória nem ensaio nem uma mescla, até porque as mesclas são sempre mais difíceis de fazer. UMA LÁGRIMA Para Joel Silveira, aos 88 anos, que morreu dormindo na quarta-feira. Suas reportagens nos anos 40 para revistas como O Cruzeiro e Diretrizes marcaram época, como as duas sobre os grã-finos de São Paulo. Também fez bons perfis e, como Rubem Braga, cobriu a Segunda Guerra Mundial acompanhando a FEB. Foi seguramente o repórter brasileiro que mais se aproximou do bom ''''jornalismo literário'''', texto que recorre a diálogos, detalhes e efeitos emprestados da narrativa ficcional e reforça em vez de relegar a informação. POR QUE NÃO ME UFANO Os ''''líderes'''' brasileiros são pródigos em fingir que nada têm a ver com os fracassos que comandam. Ricardo Teixeira falou sobre a Copa de 2006 como se não tivesse feito todos os arranjos para treinar na Suíça com platéia pagante. Fernando Henrique Cardoso disse que em seu governo o acesso à educação foi ''''universalizado'''' (sic) e que isso de nada adiantou, porque o que se ensina nas escolas públicas é um ''''desastre''''. E Lula afirmou que a crise aérea já está ''''meio resolvida'''', como se o problema do ministro Nelson Jobim com o tamanho das poltronas fosse metade de tudo. Com ''''líderes'''' assim, quem precisa de inimigos?

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