O burburinho toma conta do local, uma antiga sala de aula do colégio Sagrado Coração de Jesus, no Alto da Boa Vista, no Rio de Janeiro, adaptado como set de filmagem - técnicos preparam a câmera, cenógrafos limpam o cenário, microfones se espalham pelo local, mas Arnaldo Jabor parece indiferente à pequena confusão que o rodeia. "Cada cena tem um valor superlativo para mim, é como se um curta-metragem que se fechasse em si mesmo", comenta ele que, despido da condição de colunista, aquela que o tornou conhecido em todo o País, volta a seu ofício original: o de cineasta. Desde a semana passada, Jabor comanda uma grande equipe para rodar A Suprema Felicidade, filme que marca seu retorno ao cinema depois de 23 anos, quando dirigiu Eu Sei que Vou Te Amar, em 1986, que valeu o prêmio de melhor atuação para Fernanda Torres. "Em 1991, fiz um trabalho de 45 minutos para a tevê francesa, Amor à Primeira Vista, e, em seguida, apenas dirigi comerciais." A volta, portanto, é cercada de grande expectativa, preparada há dois anos, quando Jabor começou a rascunhar o roteiro. Acompanha a formação de um garoto, Paulinho, dos 8 aos 20 anos, dividido entre a família deprimida e a cidade alegre e florida. Trata-se do Rio de Janeiro do final dos anos 1950, um local ainda delicado e poético. "A Suprema Felicidade tem um leve tom irônico", observa. "Os personagens buscam alegria e o filme nasceu de alguns artigos que escrevi para jornais como o Estado. São histórias da minha infância, mas não é totalmente biográfica - como dizia Fellini, a única objetividade que conheço é a subjetividade. Por isso, decidi falar sobre coisas que conheci. Aliás, esse será uma espécie Amarcord brasileiro. Penso como Proust: um detalhe irrelevante pode inspirar um épico. E a saga do irrelevante da classe média é muito forte." Jabor é um entrevistado natural, absorvente. Pungentemente engraçado, mordaz e sagaz, discorre sobre tudo, desde jornalismo (adora), teatro (inspirador) e política (odeia), assuntos que habitualmente dominam suas colunas jornalísticas. "Como cronista, saí do ambiente corporativista do cinema para me transformar em alguém mais informado, treinado." O meio, porém, ameaçava contaminá-lo ao dar um basta. "Quando resolvi filmar, há dois anos, estava cansado de lidar com política", explica. "Estava envenenado por figuras como Sarney, Collor, Renan Calheiros. Daí, aumentou minha vontade de voltar ao cinema, de retomar a ilusão de criar vidas e comandar destinos." Mesmo longe de sua rotina (ele tirou férias de suas aparições na tevê e cancelou comentários no rádio, mantendo apenas a coluna semanal que publica no Caderno 2), Jabor não consegue fugir desse ambiente. Afinal, A Suprema Felicidade busca resgatar um tempo perdido, que parece longínquo diante de uma realidade apodrecida. "Será um filme colorido, mas com alma de preto e branco, um filme falado mas recheado das hesitações do cinema mudo." Assim, Paulinho (que será vivido tanto por Michel Joelsas, astro mirim de O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, como por Jayme Matarazzo Neto) acompanha as alegrias e angústias dos pais , Sofia (Mariana Lima) e Marcos (Dan Stulbach), e sempre consolado pelos avós, vividos por Marco Nanini e Elke Maravilha. "Sofia é uma mulher apaixonada pelo marido, mas também reprimida", conta Mariana. "Com o tempo, ela é obrigada a sufocar seu desejo de liberdade, o que a torna uma mulher obcecada pela suspeita de traição de Marcos." O tema instantaneamente faz lembrar das peças de Nelson Rodrigues, uma de suas predileções artísticas. "Não se trata de uma influência decisiva, mas, no roteiro, não resisti a colocar frases típicas do Nelson, como ?a minha casa era bela, tinha até lustre de cristal?. Ou ainda: ?Papai? Era o ciúme em pessoa!?. Adoro isso." A falsa moral e castidade, tão criticadas pelo dramaturgo, também inspiram cenas de A Felicidade Suprema, especialmente nos divertidos momentos que reproduzem as aulas de Paulinho no colégio religioso. A figura castradora do padre, que impedia qualquer manifestação de desejo sexual dos alunos, recebe o formato de uma caricatura na interpretação de Jorge Loredo, comediante que tornou famoso o personagem Zé Bonitinho. Jabor diverte-se com os atores no set. Detalhista, participa de todas as encenações, construindo com cada um o avançar da trama. "Meu papel nasceu do diálogo direto com ele", comenta Mariana Lima. "Observei muito seu temperamento, que serviu como melhor indicação do melhor caminho a seguir." O grau de intimidade é importante, acredita o cineasta que, no set, evita elevar o tom da voz - trata a equipe por diminutivos, como Marianinha, Danzinho e Laurinho, quando se refere ao diretor de fotografia Lauro Escorel. A cumplicidade entre ambos, aliás, é antiga, remonta os anos 1970, quando criaram Toda Nudez Será Castigada. "Jabor é passional, mas busca controlar essas emoções", conta. "Nossa convivência é tão antiga que sei quando ele está feliz ou não com uma cena: basta um olhar, um balançar de cabeça." Os momentos de espera entre as cenas, por exemplo, exasperam o diretor, que caminha sem parar pelo set, ruminando para si os minutos em que é privado de criar. "Eu me concentro em cada cena", conta. "Se pensar no conjunto, tenho arrepios de pavor. Sigo o conselho de um amigo, Miguel Faria Jr.: o filme tem de ser mais João Gilberto que Glauber Rocha, ou seja, não pode ser ostensivo, histérico, e sim minimalista, pois o conjunto é muito forte." Com isso, ele retoma o clima levemente onírico de Tudo Bem, que considera seu melhor filme. Mas muito mais trabalhoso: durante as 11 semanas de filmagem, Jabor vai rodar em diversas locações do Rio ("Foi difícil encontrar locais preservados", conta o produtor João Ramalho Jr.) com um elenco de mais de 30 atores, entre principais e figurantes. Uma produção avaliada em mais de R$ 10 milhões, aliviada pela chegada do empresário Eike Batista como produtor. "Não terá meio-termo", anuncia Jabor. "Ou será um filme muito bom, ou uma merda."