Artistas plásticos do street art têm se movimentado para superar as dificuldades que o isolamento social trouxe para um trabalho muitas vezes dependente do estar fora de casa, ao mesmo tempo que em trazem para o jogo preocupações sociais que sempre fizeram parte do universo do seu trabalho em primeiro lugar.
Abre neste sábado, 11, de forma online, a exposição Regra de Três, com obras feitas em conjunto por Fabio Polesi, Alemão Art e Sergio Free. Metade do valor da venda de cada quadro vai ser doada para famílias carentes, de comunidades, que perderam suas rendas com o surto de covid-19. A iniciativa “Spray do Bem” está vendendo latas de spray personalizadas e vai repassar parte do valor, em parceria com a Cruz Vermelha, para a população em situação de rua. Já Binho Ribeiro, veterano da street art no Brasil, lançou nas redes sociais o desafio #socialvirus. A ideia é que cada artista que se engaje no projeto venda obras a R$100 e doe 50% do valor para quem precisa mais.
Mais de 1,2 mil posts apareceram no Instagram com a hashtag #socialvirus, e Ribeiro explica que a ideia foi lançar um projeto que pudesse ser realizado inteiramente pelos artistas, de forma independente, e que “contagiasse” pessoas de diferentes partes do mundo. Se mil artistas participarem com dez obras cada um, já seriam R$ 1 milhão levantados.
“O projeto começou com intenção de buscar fonte de renda para artistas, com comércio direto de desenhos”, explica. “Surgiu então a ligação com o momento atual (da pandemia), e adequei o projeto para que o artista também doasse de forma independente. Ele desenha, publica nas redes, vende e entrega, e com parte desse dinheiro faz a doação para uma instituição, para algum amigo que esteja em necessidade. Ele define, existe uma sugestão de ser 50%, mas não existe um controle nesse sentido, uma ONG responsável, nada, é tudo independente.”
Uma das inspirações do #socialvirus foi o filme espanhol O Poço, lançamento recente da Netflix. “O questionamento social ali é que, se cada um pegar somente o necessário, mais pessoas poderão sobreviver com o que existe. A gente vive isso na sociedade.”
Outra iniciativa semelhante, a “Spray do Bem”, partiu de duas galerias paulistanas: a Casa Jacarepaguá e a Galeria Crua. Diversos artistas (entre eles, Gen Duarte, Fabiano Senk, Feik Frasão, Ciro Schu) estão personalizando seus instrumentos de trabalho — a lata de spray —, que serão vendidos a colecionadores. Em parceria com a Cruz Vermelha, parte de cada venda é transformada em doações de cestas básicas e kits de higiene para populações de rua, que estão mais expostas e vulneráveis à covid-19; e também em auxílio para a classe artística.
“O artista de street art tem ligação forte com as populações de ruas, fragilizadas”, explica José Brazuna, da Casa Jacarepaguá. “Os que lá vivem são nossos primeiros ‘espectadores’. As ruas são seu local trabalho, ou mesmo suas residências. Eles percebem a nossa arte como algo que está sendo feito na casa, no ‘escritório’ deles. Nesse vazio (do momento atual), surgiu então a ideia da mobilização online, e de usar a lata de spray, tão presente em nossa arte de rua.”
Cada lata é vendida por R$ 750, e está à venda nas contas de Instagram @casajacarepagua e @galeriacrua ou pelos telefones 11-97158-9878 (Casa Jacarepaguá) e 11-97462-4925 (Galeria Crua). Mais de 50 obras do projeto já foram vendidas.
Já a exposição Regra de Três, com curadoria é de Kleber Pagú e Fernanda Bueno, é composta por telas pintadas a seis mãos por Fabio Polesi, Alemão Art e Sergio Free. A mostra pode ser acessada no site http://regrade3.com, em 360º. A ideia surgiu após a participação do três artistas no The Off Project, uma exposição coletiva em Miami, em dezembro de 2019, que acontece no período da Art Basel, portanto num momento pré-pandemia. A situação do momento, porém, ativou para os envolvidos uma questão que perpassa o trabalho na rua: a preocupação social.
As telas, à caneta, spray e tinta acrílica, são um trabalho a seis mãos cujo processo orgânico atravessa as referências de cada um dos artistas. O resultado é uma releitura pop art via São Paulo século 21. A exposição fica no ar e as telas à venda até o dia 11 de junho.
Em tempos de pandemia, artistas buscam opções para trabalhar
Com viagens internacionais desmarcadas por conta da pandemia do novo coronavírus, Binho Ribeiro conta que vem aproveitando o tempo em casa para finalizar encomendas de telas e organizar seus canais virtuais, especialmente o Youtube. Ele estima o prejuízo dos trabalhos cancelados em cerca de R$ 50 mil.
“Como artista, tenho um ateliê em casa um espaço em que consigo pintar com alguma liberdade de execução. Mas acompanho vários amigos que estão com enormes dificuldades, até para conseguir se adaptar a esse novo mundo em que não podemos ir para a rua. Esperamos que isso logo se restaure, mas as coisas serão diferentes. Vamos precisar encontrar novas formas de existência”, comenta.
Ele lamenta a falta de uma entidade que pudesse dar algum suporte coletivo aos artistas nesse momento de incertezas. “Eu não vou quebrar (financeiramente), mas como sei que diversas pessoas do nosso meio terão problemas, posso ser solidário”, diz o criador do projeto #socialvirus.
O artista plástico e muralista Alex Senna está em situação parecida. “Sinto muito a falta da rua por ser um de meus pilares, as viagens também são importantes, mas sempre fiz desenhos e pinturas, que me permitem trabalhar remotamente”, explica. Trabalhos seus que estavam agendados até setembro foram cancelados ou adiados.
Há 10 anos na profissão e com murais em 25 países, ele também diz desconhecer grupos ou associações que pudessem dar suporte aos artistas. “Vejo que há iniciativas do próprio estado em alguns países para ajudar a classe artística. Li um artigo dizendo que a Alemanha prometeu assistência financeira a artistas afetados por cancelamentos devido à covid-19, mas infelizmente essa é uma realidade muito distante por aqui”, lamenta. “Além do Brasil ser um país com maior discrepância social e nem mesmo termos equipamentos adequados ao pessoal da saúde, o desmonte que a educação e arte vêm sofrendo na atual gestão é surreal”, aponta.
Ele destaca, porém, projetos que ganharam tração com o isolamento social forçado. “Vários dos principais museus do mundo estão com suas portas abertas virtualmente, o MoMA tem exposições que podem ser visitadas sem sair de casa, essa democratização da arte, conhecimento, das produções audiovisuais estão incríveis, mas ainda não tenho visto muita saída em relação a conseguirmos nos organizar para pagar as contas de fato”, diz, sublinhando uma realidade vivida atualmente em diversos segmentos da produção cultural, não apenas nas artes visuais.
“É difícil, muitas vezes acaba sendo um corre individual”, afirma. “Estou ansioso para acompanhar as mudanças (acredito que todos nós estamos), mas muito preocupado ao mesmo tempo. Me parece muito limitador, inclusive economicamente, definir o trabalho remoto como o único possível. Existem muitos artistas, inclusive vários artistas de rua, que não têm acesso à internet ou a um computador. Como fica o pessoal que sofre dessa exclusão digital? Por mais que se possa produzir a partir de smartphones, é complicado.”