Bienal da experimentação opta pela correção e não surpreende


Há bons artistas na mostra, mas poucas obras marcantes, predominando o conceito sobre a realização

Por Antonio Gonçalves Filho

Uma bienal chamada Incerteza Viva, como a 32.ª edição da mostra, não pode ser avaliada segundo os parâmetros convencionalmente usados para julgar outros eventos do gênero, até mesmo porque o projeto curatorial, que transformou a bienal numa plataforma do conceito, deu carta branca aos artistas para criar obras experimentais sobre o dilema do homem contemporâneo diante do colapso ecológico e das exóticas tecnologias associadas ao fim de um ciclo natural. Um dos trabalhos presentes na mostra, aliás, trata particularmente do último tema, o da dupla lituana Nomeda & Dediminas Urbonas, que se inspirou nas histórias fantásticas de Vermillion Sand (1971), livro de contos do inglês J. C Ballard.

Todos esses contos da distopia de Ballard têm um componente anacrônico que se atualiza por meio de bizarras tecnologias: são casas sensíveis à presença humana, pinturas que reagem à luz, plantas que cantam e esculturas feitas de nuvens. Ballard tinha uma fértil imaginação literária, mas é difícil transpor suas ideias para o campo visual. Prova disso é essa instalação da dupla Nomeda e Dediminas Urbonas. Algumas outras propostas dos 81 artistas e coletivos participantes parecem igualmente interessantes, mas a realização é simplesmente precária. Rudimentar mesmo.

Obra de Lais Myrrha: dois modos de construir o futuro Foto: Gabriela Bilo/Estadão
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Uma delas, a da paquistanesa Maryam Jafri, que trabalha no território da antropologia cultural, reúne produtos industrializados recolhidos do mercado desde 1970, como uma mamadeira para tomar Pepsi-Cola. Obras como essa, que resgatam a arte conceitual do limbo – Jafri segue os passos de Ed Ruscha – contestam a lógica uniformizadora da indústria, a de tratar nossa comida como commodity, mas não acrescentam muito à história da arte.

A nostalgia de um mundo agrário, ancestral, domina a mostra. Quando tratam do futuro, quase sempre os artistas elegem a distopia como tema, caso da obra Paraíso, do gaúcho Luiz Roque. Seu vídeo, ambientado na segunda metade do século 21, trata de um vírus transmitido pela saliva de transexuais que ameaça a humanidade – o artista, claro, condena a retórica preconceituosa em voga desde o advento da aids nos anos 1980. Em outro trabalho, a instalação da alemã Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die (2016), feita de vídeos sincronizados, robôs são agressivamente enxotados da linha de controle de qualidade, forçando uma associação analógica com o descarte dos humanos na sociedade contemporânea.

Trabalho deHito Steyerl: robôs enxotadoscomo humanos Foto: Gabriela Bilo/Estadão
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A articulação de um conceito artístico nunca foi garantia de boas obras. Ao contrário. Muitas vezes, o aspecto autorreferencial redunda em trabalhos conceituais militantes e datados, como o do colombiano Carlos Motta ou do norte-americano Lyle Ashton Harris, focados na questão racial e sexual – Harris recorre frequentemente à fotomontagem e ao travestismo, evocando a ambivalência sexual na cosmologia africana.

As obras mais interessantes desta bienal escapam dessa prisão antropológica. O belga Francis Alÿs, operando num espaço entre a política e a poesia, mostra pequenas paisagens e desenhos instalados em espelhos que revelam o reverso das obras, integrando o ambiente institucional ao tema da catástrofe de sua série In a Given Situation. Outro destaque da Bienal é o francês Pierre Huyghe e sua série De-extinction, que apresenta em seu filme imagens gigantescas de insetos presos num fragmento de âmbar.

Entre os brasileiros, embora discreta, a presença da pintora Wilma Martins é marcante, mas a tendência rabelaisiana para o monumental se traduz em várias obras, das torres da mineira Lais Myrrha no vão livre do pavilhão à oca concebida por Bené Fonteles, logo à entrada do portão principal. Lugar de encontro entre figuras icônicas da arte experimental (Yves Klein, Beuys) e o universo indígena, a oca do artista paraense é um elegia ao transculturalismo.

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O mineiro José Bento, ao criar seu Chão com tacos reaproveitados e criar zonas de instabilidade no piso, construiu um playground para crianças. Não é muito. Os três painéis de Erika Verzutti são híbridos entre pintura e escultura com referências à arte primitiva, mas filtrados por um olhar contemporâneo. Enfim, trata-se de uma bienal politicamente correta. Tão correta que parte do público que circula pelo pavilhão julga ser mais uma mostra ecológica que uma exposição de arte.

Uma bienal chamada Incerteza Viva, como a 32.ª edição da mostra, não pode ser avaliada segundo os parâmetros convencionalmente usados para julgar outros eventos do gênero, até mesmo porque o projeto curatorial, que transformou a bienal numa plataforma do conceito, deu carta branca aos artistas para criar obras experimentais sobre o dilema do homem contemporâneo diante do colapso ecológico e das exóticas tecnologias associadas ao fim de um ciclo natural. Um dos trabalhos presentes na mostra, aliás, trata particularmente do último tema, o da dupla lituana Nomeda & Dediminas Urbonas, que se inspirou nas histórias fantásticas de Vermillion Sand (1971), livro de contos do inglês J. C Ballard.

Todos esses contos da distopia de Ballard têm um componente anacrônico que se atualiza por meio de bizarras tecnologias: são casas sensíveis à presença humana, pinturas que reagem à luz, plantas que cantam e esculturas feitas de nuvens. Ballard tinha uma fértil imaginação literária, mas é difícil transpor suas ideias para o campo visual. Prova disso é essa instalação da dupla Nomeda e Dediminas Urbonas. Algumas outras propostas dos 81 artistas e coletivos participantes parecem igualmente interessantes, mas a realização é simplesmente precária. Rudimentar mesmo.

Obra de Lais Myrrha: dois modos de construir o futuro Foto: Gabriela Bilo/Estadão

Uma delas, a da paquistanesa Maryam Jafri, que trabalha no território da antropologia cultural, reúne produtos industrializados recolhidos do mercado desde 1970, como uma mamadeira para tomar Pepsi-Cola. Obras como essa, que resgatam a arte conceitual do limbo – Jafri segue os passos de Ed Ruscha – contestam a lógica uniformizadora da indústria, a de tratar nossa comida como commodity, mas não acrescentam muito à história da arte.

A nostalgia de um mundo agrário, ancestral, domina a mostra. Quando tratam do futuro, quase sempre os artistas elegem a distopia como tema, caso da obra Paraíso, do gaúcho Luiz Roque. Seu vídeo, ambientado na segunda metade do século 21, trata de um vírus transmitido pela saliva de transexuais que ameaça a humanidade – o artista, claro, condena a retórica preconceituosa em voga desde o advento da aids nos anos 1980. Em outro trabalho, a instalação da alemã Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die (2016), feita de vídeos sincronizados, robôs são agressivamente enxotados da linha de controle de qualidade, forçando uma associação analógica com o descarte dos humanos na sociedade contemporânea.

Trabalho deHito Steyerl: robôs enxotadoscomo humanos Foto: Gabriela Bilo/Estadão

A articulação de um conceito artístico nunca foi garantia de boas obras. Ao contrário. Muitas vezes, o aspecto autorreferencial redunda em trabalhos conceituais militantes e datados, como o do colombiano Carlos Motta ou do norte-americano Lyle Ashton Harris, focados na questão racial e sexual – Harris recorre frequentemente à fotomontagem e ao travestismo, evocando a ambivalência sexual na cosmologia africana.

As obras mais interessantes desta bienal escapam dessa prisão antropológica. O belga Francis Alÿs, operando num espaço entre a política e a poesia, mostra pequenas paisagens e desenhos instalados em espelhos que revelam o reverso das obras, integrando o ambiente institucional ao tema da catástrofe de sua série In a Given Situation. Outro destaque da Bienal é o francês Pierre Huyghe e sua série De-extinction, que apresenta em seu filme imagens gigantescas de insetos presos num fragmento de âmbar.

Entre os brasileiros, embora discreta, a presença da pintora Wilma Martins é marcante, mas a tendência rabelaisiana para o monumental se traduz em várias obras, das torres da mineira Lais Myrrha no vão livre do pavilhão à oca concebida por Bené Fonteles, logo à entrada do portão principal. Lugar de encontro entre figuras icônicas da arte experimental (Yves Klein, Beuys) e o universo indígena, a oca do artista paraense é um elegia ao transculturalismo.

O mineiro José Bento, ao criar seu Chão com tacos reaproveitados e criar zonas de instabilidade no piso, construiu um playground para crianças. Não é muito. Os três painéis de Erika Verzutti são híbridos entre pintura e escultura com referências à arte primitiva, mas filtrados por um olhar contemporâneo. Enfim, trata-se de uma bienal politicamente correta. Tão correta que parte do público que circula pelo pavilhão julga ser mais uma mostra ecológica que uma exposição de arte.

Uma bienal chamada Incerteza Viva, como a 32.ª edição da mostra, não pode ser avaliada segundo os parâmetros convencionalmente usados para julgar outros eventos do gênero, até mesmo porque o projeto curatorial, que transformou a bienal numa plataforma do conceito, deu carta branca aos artistas para criar obras experimentais sobre o dilema do homem contemporâneo diante do colapso ecológico e das exóticas tecnologias associadas ao fim de um ciclo natural. Um dos trabalhos presentes na mostra, aliás, trata particularmente do último tema, o da dupla lituana Nomeda & Dediminas Urbonas, que se inspirou nas histórias fantásticas de Vermillion Sand (1971), livro de contos do inglês J. C Ballard.

Todos esses contos da distopia de Ballard têm um componente anacrônico que se atualiza por meio de bizarras tecnologias: são casas sensíveis à presença humana, pinturas que reagem à luz, plantas que cantam e esculturas feitas de nuvens. Ballard tinha uma fértil imaginação literária, mas é difícil transpor suas ideias para o campo visual. Prova disso é essa instalação da dupla Nomeda e Dediminas Urbonas. Algumas outras propostas dos 81 artistas e coletivos participantes parecem igualmente interessantes, mas a realização é simplesmente precária. Rudimentar mesmo.

Obra de Lais Myrrha: dois modos de construir o futuro Foto: Gabriela Bilo/Estadão

Uma delas, a da paquistanesa Maryam Jafri, que trabalha no território da antropologia cultural, reúne produtos industrializados recolhidos do mercado desde 1970, como uma mamadeira para tomar Pepsi-Cola. Obras como essa, que resgatam a arte conceitual do limbo – Jafri segue os passos de Ed Ruscha – contestam a lógica uniformizadora da indústria, a de tratar nossa comida como commodity, mas não acrescentam muito à história da arte.

A nostalgia de um mundo agrário, ancestral, domina a mostra. Quando tratam do futuro, quase sempre os artistas elegem a distopia como tema, caso da obra Paraíso, do gaúcho Luiz Roque. Seu vídeo, ambientado na segunda metade do século 21, trata de um vírus transmitido pela saliva de transexuais que ameaça a humanidade – o artista, claro, condena a retórica preconceituosa em voga desde o advento da aids nos anos 1980. Em outro trabalho, a instalação da alemã Hito Steyerl, Hell Yeah We Fuck Die (2016), feita de vídeos sincronizados, robôs são agressivamente enxotados da linha de controle de qualidade, forçando uma associação analógica com o descarte dos humanos na sociedade contemporânea.

Trabalho deHito Steyerl: robôs enxotadoscomo humanos Foto: Gabriela Bilo/Estadão

A articulação de um conceito artístico nunca foi garantia de boas obras. Ao contrário. Muitas vezes, o aspecto autorreferencial redunda em trabalhos conceituais militantes e datados, como o do colombiano Carlos Motta ou do norte-americano Lyle Ashton Harris, focados na questão racial e sexual – Harris recorre frequentemente à fotomontagem e ao travestismo, evocando a ambivalência sexual na cosmologia africana.

As obras mais interessantes desta bienal escapam dessa prisão antropológica. O belga Francis Alÿs, operando num espaço entre a política e a poesia, mostra pequenas paisagens e desenhos instalados em espelhos que revelam o reverso das obras, integrando o ambiente institucional ao tema da catástrofe de sua série In a Given Situation. Outro destaque da Bienal é o francês Pierre Huyghe e sua série De-extinction, que apresenta em seu filme imagens gigantescas de insetos presos num fragmento de âmbar.

Entre os brasileiros, embora discreta, a presença da pintora Wilma Martins é marcante, mas a tendência rabelaisiana para o monumental se traduz em várias obras, das torres da mineira Lais Myrrha no vão livre do pavilhão à oca concebida por Bené Fonteles, logo à entrada do portão principal. Lugar de encontro entre figuras icônicas da arte experimental (Yves Klein, Beuys) e o universo indígena, a oca do artista paraense é um elegia ao transculturalismo.

O mineiro José Bento, ao criar seu Chão com tacos reaproveitados e criar zonas de instabilidade no piso, construiu um playground para crianças. Não é muito. Os três painéis de Erika Verzutti são híbridos entre pintura e escultura com referências à arte primitiva, mas filtrados por um olhar contemporâneo. Enfim, trata-se de uma bienal politicamente correta. Tão correta que parte do público que circula pelo pavilhão julga ser mais uma mostra ecológica que uma exposição de arte.

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