A Bienal de Veneza anunciou na última sexta-feira, 15 que a 59.ª edição da mostra de arte contemporânea incluirá uma exposição ao ar livre de trabalhos de artistas ucranianos - quase todos criados desde o início da invasão russa em fevereiro.
Intitulada Piazza Ucrania, a adição de última hora ocorre uma semana antes do início do evento, que apresenta a partir do dia 23 de abril pavilhões nacionais com curadoria dos países participantes, juntamente com outras programações artísticas.
Organizada pelos curadores Borys Filonenko, Lizaveta German e Maria Lanko, a exposição destacará artistas selecionados pelo Fundo Ucraniano de Arte de Emergência (UEAF). As obras de arte, que foram coletadas nas mídias sociais, serão impressas como pôsteres e poderão ser vistas em um espaço projetado pela arquiteta ucraniana Dana Kosmina, que será atualizado regularmente na seção Giardini da bienal.
De acordo com o curador e CEO da UEAF, Ilya Zabolotnyi, é importante valorizar os artistas ucranianos, não apenas para chamar a atenção para a guerra, mas também para afirmar a independência cultural da Ucrânia. “Nós não lutamos apenas pela democracia. Lutamos pela identidade", disse Zabolotnyi, em uma entrevista conjunta com Olga Balashova, administradora de artes e curadora com quem Zabolotnyi compartilha a supervisão da UEAF. “A narrativa imperial russa quer claramente apagar isso.”
Zabolotnyi acrescentou que no dia 21 de fevereiro, quando Putin tentou justificou a invasão, “uma das principais mensagens de sua declaração era a de que não há Ucrânia”. “Ele afirmou que não há cultura ucraniana. É parte da Rússia. É por isso que é um dos momentos mais importantes para os nossos trabalhadores culturais e suas vozes vibrantes e vivas não desaparecerem.”
Um dos principais eventos da arte internacional, a Bienal de Veneza começou em 1895, e muitas vezes se viu no centro de conflitos políticos e guerras. Em 1936, várias nações, incluindo os Estados Unidos, boicotaram o evento em protesto ao governo fascista da Itália e, em 1940, a Bienal foi realizada apesar da Segunda Guerra Mundial, em um evento que o crítico de arte Lawrence Alloway chamou de “tão impressionante quanto bizarro”. Em uma reação particularmente extrema aos acontecimentos políticos, os protestos tomaram o lugar de uma exposição após o golpe de 1974 do ditador chileno Augusto Pinochet. Olhando para trás a partir de 2015, o curador da Bienal, Okwui Enwezor, chamou os protestos de 1974 de “um dos únicos casos de Veneza confrontando uma catástrofe contemporânea e montando uma crítica radical naquele momento”. “Você pode imaginar alguém fazendo isso hoje”, perguntou.
A Piazza Ucraina acontece graças aos esforços dos curadores ucranianos. Lanko transportou pessoalmente várias peças de uma escultura cinética do artista Pavlo Makov, de Kiev. E por conta da retirada da Bienal dos artistas russos Alexandra Sukhareva e Kirill Savchenkov e do curador Raimundas Malasauskas, um lituano que trabalhava no Pavilhão Russo.
A mostra apresentará trabalhos de cerca de quarenta artistas que conseguiram produzir arte apesar da guerra. O primeiro trabalho da exposição será uma peça de Kateryna Lisovenko, feita logo após o discurso de Putin em 21 de fevereiro - ela apresenta uma mãe e um filho, ambos levantando os dedos do meio em repreensão.
Balashova coleciona as obras desde o início de março e diz que se sente muito confortável com o trabalho. “Quando eu os reúno com meus colegas, é como uma cura” diz ela. “Quando você vê essas fotos, que simbolizam esse estado emocional, você entende o que está acontecendo com você.” Ver as obras online, diz ela, adiciona outra camada de solidariedade. “Você se dá conta de quantas pessoas estão comentando sobre a arte e falando que nunca poderiam imaginar que sentem o que vêem.”
Alguns dos artistas convidados adotam uma abordagem quase documental. O Kinder Album, por exemplo, contribuirá com aquarelas representando refugiados amontoados em trens e mulheres abusadas por soldados russos, bem como uma pintura de figuras nuas empurrando um tanque. As obras de Matviy Vaisberg incluem cenas de mídia mista silenciosas e quase abstratas de uma série chamada Diário de Viagem, enquanto os desenhos gráficos viscerais de Vlada Ralko, intitulados Diário de Lviv, aproximam os espectadores da violência na cidade natal do artista.
Zabolotnyi diz que acorda todos os dias em Kiev e marca não o dia do ano, mas o dia da guerra. “Tudo pode mudar drasticamente a qualquer minuto”, diz ele. “Então trabalhamos apenas com o horizonte de um dia.” Olhando para essa produção artística, no entanto, ele acha esses artefatos instantâneos estranhamente adequados. “Quando sua vida é encurtada para planejar apenas um dia e você está trabalhando com material que basicamente pode durar séculos, a conexão muito próxima”, diz ele. “É como estar a um passo para a eternidade.”(TRADUÇÃO DE JOÃO LUIZ SAMPAIO)