Há 23 anos, a crítica belga Ilse Kuijken já observara que as esculturas do artista carioca Waltercio Caldas parecem simplesmente tocar o chão, tendo um grau de invisibilidade compatível com os “silêncios do espaço”que explora. Ela escreveu isso a respeito do conjunto escultórico que ele mostrou na Documenta de Kassel, Alemanha, em 1992, estruturas em aço polido com tampos de vidro sobre as quais espalhou pó de mármore, um espaço fugidio em que a memória da própria história da escultura se esvai na superfície transparente, levando junto os vestígios do desenho.
Agora, na exposição Ficção nas Coisas, que será aberta nesta terça-feira, a partir das 17 horas, na Galeria Raquel Arnaud, Waltercio explora de forma inaudita as relações entre escultura e desenho – que ele chama apropriadamente de objeto, por conquistar a tridimensionalidade, no caminho inverso da sua escultura, que aspira à condição de vestígio de uma folha branca, prestes a ser ocupada pela imagem.
O que importa agora é o campo metafísico. Como se estrutura, afinal, a linguagem? Ao contrário de séries anteriores do artista, que recorriam à história da arte para criar um museu pessoal com suas afinidades eletivas – Velázquez, Mondrian e Giacometti, entre os homenageados na série Veneza (1997) –, Waltercio não usa placas com os nomes de sua “biblioteca” privada. Nas novas esculturas surgem enigmáticas mensagens, que o espectador vai decifrar ao estabelecer relações entre as oito esculturas e os nove desenhos da exposição. Numa dessas esculturas, duas palavras, Not now (Agora não), indicam que o aparato ainda não está pronto para “funcionar”.
Waltercio compara essa escultura a uma máquina do tempo. Nela, as palavras tridimensionais seriam como espectros. Se no livro Velázquez (1996) o artista fazia desaparecer (por meio da computação gráfica) figuras pintadas pelo gênio espanhol, levando os “leitores” a refletir sobre a importância do espaço na composição, em Not now, título algo beckettiano, ele quer que o espectador descubra a dimensão em que a palavra se encontra, a leveza poética que exige um contrapeso físico para sustentar a estrutura. Não sem razão, alguns desenhos – perdão, objetos – trazem uma pedra que equilibra a composição de linhas à maneira dos construtivistas russos do início do século passado – com a diferença que Lissitzky, por exemplo, usava a cor das figuras geométricas pintadas, e não pedras, para sustentar o desenho.
O que singulariza o trabalho de Waltercio é que o diálogo entre a arte bidimensional e a tridimensionalidade passa, enfim, pela fenomenologia da percepção, por uma capacidade de ver retrospectivamente o objeto à sua frente não como resultado de um processo – como nas obras de caráter construtivo –, mas como um espectro da fronteira espaço-tempo. “Uma tela, mesmo branca, já tem uma história acumulada, ao passo que o papel branco tem isenção, quase não tem limite, é parte de um continuum”, observa o artista.
A esse respeito, cabe lembrar que os ‘objetos ativos’ de Willys de Castro – que rompem com a bidimensionalidade para conquistar o espaço – guardam relação estreita com a questão levantada por Waltercio: onde começa o desenho e termina a escultura? Ele tanto pode, como diz, fazer “flutuar” a imagem no desenho com a ajuda de uma pedra, transformando o que era bidimensional numa escultura, como fazer de uma obra tridimensional uma miragem, lidando com o vazio, a ausência, como se vê na obra sem título, em esmalte sobre aço inoxidável, que ilustra esta página.
No espaço indiferenciado, o espectador experimenta ao mesmo tempo essa sensação de ausência e presença, testemunha a metamorfose que esses “objetos-espectros”– por falta de melhor definição – registram nessa condição de vir-a-ser. “Veja, você desenha na horizontal e pinta na vertical, mas o desenho acaba na vertical, sofre de uma gravidade ótica nessa passagem”. O vazio, enfim, é um elemento construtivo do desenho na escultura, e não um trompe l’oeil para enganar o olho – ele está lá, a presença física dele é inegável.
Nas esculturas públicas de Waltercio Caldas, as questões não são muito diferentes. Uma delas, feita em 1996, para uma praça no centro do Rio ostenta duas hastes verticais que pesam 20 toneladas e atingem 10 metros de altura. Revestidas com pedras de mosaico português, o mesmo usado nas calçadas da praia, elas se integram à paisagem local como se do chão brotassem essas colunas. Ou seja, ambas as hastes têm uma presença concreta, que, no entanto, se dilui na simbiose camaleônica delas com a fisionomia da cidade.
Um exemplo mais recente de escultura pública que lida de forma mais radical com essa noção de ausência/presença é a obra que ele executou para a Biblioteca Parque Estadual, no centro do Rio, em 2014, feita de placas de mármore preto que refletem a água do espelho, funcionando ela mesma como um espelho d’água.
Quando a marchande Raquel Arnaud começou a trabalhar com o artista, em 1982, os colecionadores se mostravam reticentes. Foi uma tarefa difícil, ela reconhece, educar o olhar de jovens executivos que então se aventuravam no mercado de arte. Hoje, suas obras estão presentes nas principais coleções privadas do País (Gilberto Chateaubriand, José Olympio Pereira) e do exterior (Patricia Cisneros), além de expostas em instituições internacionais, como o Blanton Museum de Atlanta e a Fundação Daros, na Suíça, que abriu uma mostra do artista na semana passada e comprou a sua coleção de livros.
FICÇÃO NAS COISAS
Galeria Raquel Arnaud. Rua Fidalga, 125, tel. 3083-6322. Seg. a sexta, 10h/18h. Sábados, até 14h. Abre amanhã, 7, às 17h. Até 30/05.