Francis Bacon (1909-1992) nunca escondeu seu fascínio pela carne. O pintor irlandês, considerado um dos mais importantes do século 20, fez dela um elemento crucial em suas obras, conhecidas por seu estilo expressivo – às vezes considerado grotesco – e sua visceralidade.
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“Sempre me emocionei muito com fotos sobre matadouros (...) há registros extraordinários de animais feitos antes do abate”, declarou em uma famosa entrevista para o crítico de arte David Sylvester. “É preciso lembrar, como pintor, que existe uma grande beleza na cor da carne”, afirmou, em outro momento, ao mesmo entrevistador.
É esta relação que inspira o título da mostra Francis Bacon: A Beleza da Carne, que abre nesta sexta-feira, 22 de março, no Masp. Em um esforço inédito, ela reúne 23 obras do pintor, produzidas entre os anos de 1940 e 1980 - a maior parte nunca vista no Brasil (veja a lista abaixo).
Esta é a primeira mostra individual de Francis Bacon no Brasil – anteriormente, alguns de seus quadros haviam sido exibidos na 24ª Bienal de Arte de SP, no núcleo Corpos Nus, da mostra História da Sexualidade, e na mostra Acervo em Transformação – as duas últimas, do Masp.
“É uma exposição muito especial, não apenas porque temos poucas oportunidades de ver Bacon no Brasil, mas também por podermos fazer o exercício histórico, nos ciclos curatoriais, de olhar para a arte canônica buscando outras leituras – leituras alternativas, especialmente de um artista tão consagrado”, afirma a curadora assistente da mostra, Laura Cosendey.
Vida e obra de Francis Bacon
É impossível desatrelar vida e obra de Francis Bacon. Nascido na Irlanda, em 1909, filho de um treinador de cavalos de corrida e de uma herdeira do setor de aço e carvão, Bacon teve uma infância difícil, marcada por uma saúde delicada e problemas na relação com o pai. O pintor também viveu em meio a períodos de angústia e agitação social, que incluíram as duas guerras mundiais e a Guerra Fria. Não bastasse isso, era gay, em uma época em que a homossexualidade era criminalizada no Reino Unido.
Autodidata, Bacon foi dono de uma produção extensa, que soma cerca de 590 obras – além daquelas que o próprio pintor destruiu. Embora tenha iniciado sua trajetória dialogando com Picasso, seus trabalhos posteriores tomaram rumos distintos.
Em 1949, ele pintou Study From the Human Body, um quadro que marcou a virada crucial de sua arte rumo à centralidade da figura humana. A pintura trazia uma referência que seria fundamental em sua obra: os registros do fotógrafo inglês Eadweard Muybridge.
A sexualidade do artista foi comumente explorada pela literatura acadêmica e contorna diversos projetos relacionados a ele, mas esta é a primeira vez em que uma mostra sobre o pintor desenvolve o foco queer e o torna uma referência primordial.
“Trazer Francis Bacon dentro do eixo Histórias da Diversidade é uma forma de buscar essas preocupações, questões, pautas, e de manter vivo o olhar para Bacon. Nós apresentamos os artistas com contexto, leituras, valorizando elementos que muitas vezes não são colocados em grandes livros de história da arte”, afirma Cosendey.
Novo olhar
O nu masculino se torna um assunto recorrente na obra de Bacon a partir da década de 1950. Em suas primeiras produções, vemos homens nus, figuras solitárias, em ambientes fechados. Bacon já demonstrava seu fascínio pelo corpo masculino: em Study of a Nude (1952-1953), por exemplo, a figura assume uma posição de mergulhador, exibindo sua musculatura e capacidade atlética. Há um destaque no vigor e na tensão do corpo.
É em 1953 que Bacon pinta uma de suas obras mais fundamentais. Two Figures é uma composição baseada em uma série de fotografias de homens lutando publicadas por Muybridge na década de 1880. Ambígua, pode representar uma luta, mas também uma relação sexual entre homens que se parecem com Bacon e seu amante, o ex-piloto inglês Peter Lacy.
Exibido em 1953 na Galeria Hanover, o quadro precisou ser colocado em um cômodo superior para impedir o escrutínio da polícia. Nessa época, o nu masculino não era um tema popular na pintura e a homossexualidade ainda era ilegal no Reino Unido. Outros artistas gays, como Robert Colquhoun, Robert MacBryde e Keith Vaughan evitavam representar a homossexualidade – ou a faziam de forma ambígua e difusa.
Amor, erotismo e obra
Os relacionamentos amorosos que Bacon teve marcaram profundamente sua obra. Dois homens foram fundamentais nesse sentido: o já citado Peter Lacy, com quem teve um relacionamento intenso e violento entre as décadas de 50 e 60, e George Dyer, com quem se relacionou entre 1963 e 1971. Peter Lacy cometeu suicídio em 1962, na véspera da inauguração de retrospectiva de Bacon no Tate Museum, em Londres; Dyer morreu de overdose duas noites antes da abertura da exposição solo de Bacon no Grand Palais, em Paris.
“Esse é um assunto muito importante. Bacon é muitas vezes colocado nessa história canônica, mas as obras são dissociadas de quem eram as pessoas retratadas. Elas não recebem a devida importância”, explica Cosendey. “Esse ponto de partida, as experiências pessoais, essas pessoas que se tornaram tão frequentes em seus retratos, isso fica muito marcado nas narrativas bibliográficas.”
Laura Cosendey, curadora assistente da mostra ‘Francis Bacon: A Beleza da Carne’
Nem sempre o erótico aparecia de maneira clara na obra de Bacon. “Quando Two Figures foi exposta, a polícia foi chamada, houve indignação das pessoas. Nesse contexto, surge o tratamento velado dado ao erótico”, explica assistente curatorial Isabel Ferreira Loures.
“Existem várias pinturas que não são óbvias, como as dos papas [Bacon pintou mais de 30 quadros sobre o tema, inspirado pelo quadro Retrato de Inocêncio X, de Diego Velázquez]. Em uma entrevista, Sylvester pergunta se há associação entre as figuras do papa e do pai de Bacon, o que o pintor nega em um primeiro momento; em outro momento, ele admite que sentia uma atração sexual pelo pai na adolescência.”
Mesmo pinturas mais tardias podem trazer elementos eróticos de maneira insólita. Um quadro que compõe a mostra, Jet of Water (1988), é bastante interessante nesse sentido, explica Loures. “Ele não traz uma figura humana. É uma paisagem, se considera uma paisagem na obra de Bacon, mas não é tradicional. O que a marca é um jato d’água que se espalha na diagonal.”
“A conotação mais óbvia é a do gozo, mas também há algo na maneira que ele lida com a tinta, na energia que ele coloca na pincelada. É um signo desse erótico que aparece de uma maneira não óbvia, na maneira em que ele lida com o próprio material artístico”, diz.
A mostra integra a programação anual do Masp dedicada às Histórias da Diversidade LGBTQIA+. Além da exposição, o museu lança também um catálogo com ensaios inéditos. O calendário do museu para 2024 inclui mostras de Gran Fury, Mário de Andrade, Masp Renner, Lia D Castro, Catherine Opie, Leonilson, Serigrafistas Queer e a grande coletiva Histórias da diversidade LGBTQIA+.
Francis Bacon ao longo do tempo
A produção de Bacon, que se estende por quase sete décadas, passou por diversas transformações. Ela foi permeada por sequências e variações de motivos.
Durante a década de 1920, Bacon produziu algumas pinturas a óleo, que não sobreviveram; os únicos resquícios da época são uma aquarela e um guache. Sua iniciação se deu de fato em 1930, quando conheceu seu primeiro mentor, o pintor australiano Roy de Maistre (1894–1968). Embora tenha produzido algumas obras-primas nesse período, como Crucificação (1933), o pintor ainda lutava para desenvolver seu estilo.
A década de 1940 marcou a ascensão de Bacon no cenário artístico. Three Studies for Figures at the Base of a Crucifixion (1945) causou comoção quando foi apresentada na Lefevre Gallery, em Londres, em 1945, em um contexto de pós-guerra. Dois anos depois, Bacon passa a desenvolver um de seus temas mais importantes, as já citadas variações de Retrato de Inocêncio X, de Diego Velázquez, que permearam seu trabalho entre 1946 e 1971.
Nos anos 1950, Bacon dedicou-se aos papas, aos animais e às figuras solitárias. A década marcou um período de mudanças fundamentais em sua obra, com o pintor passando a usar cores sombrias e a experimentar temas e estilos. É da mesma época seu primeiro retrato de um modelo identificado, Portrait of Lucian Freud (1952).
Retratos de conhecidos dominaram a produção de Bacon durante os anos 1960. George Dyer, que Bacon conheceu em 1963, se tornou uma figura frequente em suas pinturas. Nelas, havia ênfase à fisicalidade, mas também ternura. Alguns críticos de arte, como Michel Leiris e Lawrence Gowing, consideram os retratos de Dyer como seus favoritos.
A morte de Dyer, em 1971, foi um divisor de águas na pintura de Bacon. Após homenageá-lo com os The Black Triptychs, Bacon se volta para os autorretratos. À época, ele justificou sua nova obsessão afirmando que “as pessoas têm morrido à minha volta como moscas e não tenho mais ninguém para pintar”.
Consolidado, Bacon passou a década de 1980 expondo em instituições de prestígio em todo o mundo. Nessa época, suas pinturas se tornam mais minimalistas, monocromáticas e técnicas, com linhas de perspectiva abstratas.
Serviço - Francis Bacon: a beleza da carne
- De 22/3 a 28 de julho de 2024
- Masp - Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Av. Paulista, 1.578 - São Paulo. Tel. 11 3149-5959_
- Horários: 3ª, 10h-20h (entrada até as 19h); 4ª a domingo, das 10h-18h (entrada até as 17h). Fecha às segundas
- Ingressos: R$ 70 (entrada); R$ 35 (meia-entrada). Terça: entrada gratuita
- Agendamento on-line obrigatório pelo link masp.org.br/ingressos
Lista de obras da exposição
- Man at a Washbasin, c. 1954. Oil paint on canvas. 170.8 × 135 cm. Private Collection
Man at a Washbasin é uma obra do grande período ‘azul’ de Francis Bacon. Ela retrata Peter Lacy. Estilisticamente, se relaciona com Two Figures (1953) e a série Man in Blue (1954). Neste período, que corresponde ao relacionamento turbulento com Peter Lacy, Bacon tinha como inspirações primordiais as fotografias de Eadweard Muybridge, as esculturas de Michelangelo e os nus de Edgar Degas.
- Figure Crouching, 1949. Oil on canvas. 179.6 × 121.3 cm. Private collection
- Study of a Nude, 1952-53. Oil on canvas. 59.7 × 49.5 cm. Sainsbury Centre for Visual Arts. Donated by Robert and Lisa Sainsbury, 1973 / 29
A pintura foi inspirada pela série Athlete: Standing High Jump and Athlete Performing a Standing Broad Jump , de Eadweard Muybridge. Uma figura humana solitária parece mergulhar rumo ao abismo; chama atenção o corpo. Ela também traz referências às esculturas de Michelangelo.
- Study of a Head, 1952. Oil on canvas. 50 × 40.5 cm. Yale Center for British Art, Gift of Beekman C. and Margaret H. Cannon
- Portrait of Lucian Freud, 1951. Oil on canvas. 198 × 137 cm. Whitworth Art Gallery, University of Manchester
Portrait of Lucian Freud é o primeiro retrato com modelo identificado de Francis Bacon. Lucian Freud, pintor inglês, foi amigo íntimo de Bacon por 25 anos. O retrato, no entanto, foi baseado em uma fotografia de Franz Kafka.
- Study for Figure II, 1953. Oil on canvas, 198 × 137 cm. Janine and J. Tomilson Hill Collection
- Study for the Nurse in the Film “Battleship Potemkin”, 1957. Oil paint on canvas. 198.0 × 142.0 cm. Städel Museum
- Seated Figure on a Couch, circa 1959. Oil paint on canvas. 198 × 141.5 cm. Private Collection
- Walking Figure, 1959-60. Oil on canvas. 198 × 142 cm. Dallas Museum of Art, Foundation for the Arts Collection, gift of Mr. and Mrs. J.O. Lambert, Jr. and Mr. and Mrs. David Garrison
- Study for Three Heads, 1962. Oil on canvas, three panels. Each panel: 35.9 × 30.8 cm. MoMA
- Man in blue I, 1954. Oil on canvas. 198 × 137 cm. Museum Boijmans Van Beuningen, Rotterdam
Primeira pintura da série Man in Blue, composta por sete telas. As pinturas correspondem à fase monocromática sustentada de Bacon e foram inspiradas por um homem que Bacon conheceu em um hotel em Henley-on-Thames. As figuras aparecem sempre isoladas em molduras internas e cenários claustrofóbicos.
- Portrait, 1962. Oil on canvas. 198 × 141.5 cm. Museum für Gegenwartskunst Siegen, The Lambrecht-Schadeberg Collection
- Lying Figure, 1969. Oil on canvas. 198 × 147.5 cm. Fondation Beyeler, Riehen/Basel, Beyeler Collection
- Two Figures with a Monkey, 1973. Oil on canvas. 198.3 × 147.9 cm. Museo Tamayo Arte Contemporáneo.
Two Figures with a Money é um marco no trabalho de Francis Bacon. Produzida após a morte de George Dyer, ela traz uma nova injeção de cor e um certo retorno aos trabalhos anteriores inspirados nos lutadores de Muybridge.
- Self-Portrait, 1976. Oil and pastel on canvas. 34 × 29.5 cm. Musée Cantini, Marseille
- Jet of Water, 1988. Oil on canvas. 198 × 147.5 cm. Collection of Janine and J. Tomilson Hill
- Study from the Human Body and Portrait, 1988. Oil and pastel on canvas. 198 × 147.5 cm. Museum für Gegenwartskunst Siegen, The Lambrecht-Schadeberg Collectio
- Study for Portrait on Folding Bed, 1963. Oil paint on canvas. Support: 198.1 × 147.3 cm. frame: 219.8 × 169.0 × 8.2 cm. Tate
- Study for Self-portrait, 1981. Oil and pastel on canvas. 198 × 147.5 cm. Von der Heydt-Museum, Wuppertal
- From Muybridge “The Human Figure in Motion: Woman Emptying a Bowl of Water and Paralytic Child Walking on All Fours, 1965. Oil on canvas. 220 × 169.5 × 5 cm. Stedelijk Museum Amsterdam
- Figure Sitting, 1955. Oil on canvas. 152.5 × 117 cm. Painted at Overstrand Mansions. S.M.A.K Stedelijk Museum voor Actuele Kunst, Ghent
- Seated Figure, 1961. Oil paint on canvas. Support: 165.1 × 142.2 cm. frame: 185.3 × 162.7 × 9.0 cm. Tate
- Head I, 1947–48. Oil and tempera on board. 100.3 × 74.9 cm. The Metropolitan Museum of Art. Bequest of Richard S. Zeisler, 2007