Depois da capa de ‘Torto Arado’ e obras no Minhocão, Aline Bispo investiga os sincretismos do Brasil


Nascida no Capão Redondo, a artista, hoje com 34 anos, ficou mais conhecida por causa do livro de Itamar Vieira Junior, mas é dona de uma arte que se expande por telas, roupas e prédios. Agora, ela abre exposição na Galeria Luis Maluf

Por Thaís Ferraz
Atualização:

Lançado em 2019, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, foi um verdadeiro fenômeno do mercado editorial brasileiro. Com quase 1 milhão de cópias vendidas – e prêmios importantes conquistados no caminho –, o livro, que acompanha a história das irmãs Bibiana e Belonísia, tem um grande trunfo para além da escrita: uma capa emblemática.

Aline Bispo é o nome por trás dela. Artista visual, ilustradora e curadora, a paulistana de 34 anos ficou conhecida principalmente pelo romance, mas é dona de uma arte que se expande por telas, livros, jornais, roupas e prédios. No seu traço característico, raça, religião, política e natureza se encontram.

A artista paulista Aline Bispo, responsável pela capa do livro 'Torto Arado', que abre abre a mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf neste sábado, 24.  Foto: Daisy Serena/Divulgação
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Nascida no Capão Redondo, Bispo começou sua trajetória em 2009, com o grafite. À época, cursava design de interiores na Etec e precisava se deslocar diariamente até o centro. Foi nesse trajeto que suas primeiras questões começaram a surgir. “Ter que me deslocar para fazer os cursos que queria fazer, ser tratada de formas diferentes na periferia e no centro eram questões que me atravessavam”, conta. “Eu estava em um processo de busca, de autoconhecimento, de entendimento das questões étnicas. Percebi que tinha uma série de perguntas que não eram só minhas e comecei a querer me comunicar com o mundo.”

Bispo se formou em artes visuais em 2019. Foi quando encontrou Torto Arado, sem querer - o romance, vencedor do Prêmio Leya, de Portugal, teve uma primeira edição lá. “Eu estava pesquisando a foto que inspirou a capa do livro [parte da série Nouvelle semence, do fotógrafo italiano Giovanni Marrozzini], que vinha circulando bastante. Encontrei e fiz uma releitura usando a espada de Santa Bárbara e coloquei no mundo”, conta. A ilustração foi encontrada por Elisa Randow, designer responsável pelo projeto gráfico da edição brasileira de Torto Arado. “Quando Itamar viu a capa, ficou surpreso. Ele tinha enviado a mesma foto que inspirou meu trabalho como referência para uma editora em Portugal”.

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Com a explosão de Torto Arado, a repercussão do trabalho de Bispo cresceu exponencialmente. “Muitas pessoas começaram a me acompanhar, eu passei a ilustrar uma coluna, recebi convites para trabalhar em outros livros”, conta. “Foi uma coisa que me motivou muito, fez com que meu trabalho crescesse. Foi o momento em que fui conseguindo me firmar mais no mercado das artes.”

Sincretismos

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Foi também em 2019 que Bispo fez uma performance que considera fundamental: ‘Tudo o que não cabe em outros lugares encaixa-se aqui’, título inspirado em um trecho do livro ‘Nem preto, nem branco, muito pelo contrário’, da antropóloga Lilia Schwarcz. Na performance, cada elemento tem conexão com um orixá. A ideia é investigar os sincretismos brasileiros e questionar o apagamento histórico da cultura da diáspora. “Lilia diz que o uso do ‘pardo’, no Brasil, é quase um ‘saco de gatos’, onde tudo o que não cabe se encaixa. Isso me diz muito, porque é um lugar pelo qual eu navego, vou e volto”, diz Bispo. “Às vezes faço afirmações sobre esse outro lugar, e a partir delas surgem outras dúvidas.”

Nesse processo, o lugar em que Bispo se encontrou foi o culto das religiões afro-ameríndias. “É onde outras verdades estão postas, mas elas não me fecham; pelo contrário, abrem caminhos”, explica.

O sincretismo se tornou um conceito-chave para Bispo. Em sua obra, elementos visuais são revestidos de diferentes significados, que remetem ao cristianismo e às religiões de matriz africana. Temas como cura e espiritualidade também estão presentes, assim como a brasilidade, que se manifesta em diversos sentidos.

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Aline Bispo investiga os sincretismos brasileiros em sua mostra individual.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

“Olhar para o meu trabalho é também olhar para mim enquanto pessoa. É algo que flutua entre um lugar e outro”, diz Bispo. “Esse lugar da natureza, assim como o da religião, está presente tanto no aspecto das minhas memórias familiares, do meu campo afetivo, quanto do meu trabalho. É olhar para aquele lugar da performance, olhar para esse corpo miscigenado que vai estar no Brasil, que vai ter diversas composições, nosso DNA cultural.”

A nova exposição individual de Aline Bispo, Somatória de Forças, também investiga os sincretismos brasileiros. Montada na Galeria Luis Maluf, na Barra Funda, a mostra é fruto de uma pesquisa voltada a festas temáticas do calendário afro-brasileiro, como a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte e a celebração de Iemanjá.

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Entre as obras, estão altares construídos com objetos que Bispo adquiriu durante suas viagens de pesquisa. São velas, balas, cachimbos, charutos, alguidares, pedras, peças de cultos ou que compõem o imaginário popular. Há, também, um conjunto de pinturas trabalhadas com fios de ouro. Maria I (2023) é uma representação de Nossa Senhora Aparecida adornada com três fios dourados, em referência à sincretização com Oxum. Bispo também cobre imagens de santos com tecidos de contas. “Em alguns terreiros, é possível encontrar imagens de santos católicos. Pegar esse objeto e revestir com contas é quase como o inverso disso. É trazer o avesso dele, outra cor, outro tecido, inverter um pouco essa história”, explica.

Maria I (2023), de Aline Bispo, trabalhada com fios de ouro. Foto: Ana Aliaga/Divulgação

A tela Mães da Boa Morte é significativa neste sentido. Combinando tinta, folhas de ouro e miçangas, a obra referencia a Festa da Boa Morte, celebração que une catolicismo e candomblé na cidade de Cachoeira, na Bahia. “Quando pensamos em sincretismo religioso no Brasil, existe uma violência que parece ser apagada por ele, mas a imagem que vem na minha cabeça é essa festa dentro da igreja, com três missas. Eu visualizo mulheres negras, com cargos dentro dos terreiros, fazendo culto dentro de uma missa, recebendo a hóstia de um padre”, relembra. “Quando olho para essa imagem nesse contexto, penso exatamente nos mecanismos que foram usados para tentar dizimar as pessoas negras no Brasil. Esse lugar do sincretismo faz com que várias pessoas e coisas estejam vivas hoje, apesar de uma série de apagamentos.”

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Obra 'Mães da Boa Morte', de Aline Bispo, exposta na mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf. Foto: Tatiana Mito/Divulgação

Somatória de Forças é um fragmento de um desejo maior de Bispo: ampliar o olhar sobre as miscigenações e encontros. “Para cada tipo de força, existem muitas pessoas que se misturam e são cultuadas de modos parecidos e distintos em cada lugar. São justamente esses encontros que se assemelham e diferenciam que me interessam”, diz.

Pluralidade

Além de Torto Arado, Bispo também ilustrou Doramar ou a Odisseia (2021), Salvar o Fogo (2023), ambos de Itamar Vieira Junior. Ela também assina as capas dos livros Por um feminismo afro-latino-americano (2020), Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia, de Luiz Antônio Simas (2022), e Sula (2021), de Toni Morrison, entre outros. Bispo também ilustrou o livro infantil Serena Finitude, de Anelis Assumpção. Todas as capas da obra, um poema sobre o luto, foram feitas à mão, trabalhadas com fios, texturas e colagem. “Gosto muito de ler e sempre tive essa relação com livros. O espaço da literatura tem sido muito importante para mim”, diz.

Bispo também se embrenhou no universo da moda. Em 2022, lançou a coleção Belezas Brasileiras, da Hering. Ela também criou estampas da coleção Fartura, de Naya Violeta, que foi apresentada na São Paulo Fashion Week.

Sua arte está, ainda, espalhada pela cidade. A artista assina três empenas no Minhocão – Salve, Lélia!, de 2021, uma homenagem à intelectual brasileira, Mulheres (2022), que estimula a presença feminina em espaços públicos, e ARTois, que exalta a criação da primeira tinta feita a partir do lúpulo nobre. Bispo também coassina uma empena no CEU Campo Limpo e pintou recentemente Dança de Fartura, uma obra que se inspira no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, no SESC do bairro.

Arte de Aline Bispo em homenagem a Lélia Gonzalez no Minhocão Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para Bispo, trabalhar com diversos suportes – e estar em todos os lugares – é muito positivo. “Para mim, interessam todas as possibilidades de caminho”, diz. “Acho maravilhoso ver como as mesmas temáticas e paletas se comportam em cada suporte, os processos criativos por trás de cada um deles”. Essa decisão também atrai mais público e democratiza sua arte, acredita. “Algumas pessoas podem não conseguir comprar uma obra em uma galeria, mas têm acesso aos livros ou às peças de roupa. Isso me interessa, conseguir chegar nesse público. Poder ocupar tudo o que for possível sem virar as costas para ninguém.”

Somatória de Forças

  • Onde: Galeria Luis Maluf (R. Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda, São Paulo)
  • De 24/8 a 2/10
  • Segunda a Sexta-feira – 10h às 19h; Sábado – 11h às 16h
  • Abertura com visita guiada da artista e curador: 24/8, às 13h30

Lançado em 2019, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, foi um verdadeiro fenômeno do mercado editorial brasileiro. Com quase 1 milhão de cópias vendidas – e prêmios importantes conquistados no caminho –, o livro, que acompanha a história das irmãs Bibiana e Belonísia, tem um grande trunfo para além da escrita: uma capa emblemática.

Aline Bispo é o nome por trás dela. Artista visual, ilustradora e curadora, a paulistana de 34 anos ficou conhecida principalmente pelo romance, mas é dona de uma arte que se expande por telas, livros, jornais, roupas e prédios. No seu traço característico, raça, religião, política e natureza se encontram.

A artista paulista Aline Bispo, responsável pela capa do livro 'Torto Arado', que abre abre a mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf neste sábado, 24.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

Nascida no Capão Redondo, Bispo começou sua trajetória em 2009, com o grafite. À época, cursava design de interiores na Etec e precisava se deslocar diariamente até o centro. Foi nesse trajeto que suas primeiras questões começaram a surgir. “Ter que me deslocar para fazer os cursos que queria fazer, ser tratada de formas diferentes na periferia e no centro eram questões que me atravessavam”, conta. “Eu estava em um processo de busca, de autoconhecimento, de entendimento das questões étnicas. Percebi que tinha uma série de perguntas que não eram só minhas e comecei a querer me comunicar com o mundo.”

Bispo se formou em artes visuais em 2019. Foi quando encontrou Torto Arado, sem querer - o romance, vencedor do Prêmio Leya, de Portugal, teve uma primeira edição lá. “Eu estava pesquisando a foto que inspirou a capa do livro [parte da série Nouvelle semence, do fotógrafo italiano Giovanni Marrozzini], que vinha circulando bastante. Encontrei e fiz uma releitura usando a espada de Santa Bárbara e coloquei no mundo”, conta. A ilustração foi encontrada por Elisa Randow, designer responsável pelo projeto gráfico da edição brasileira de Torto Arado. “Quando Itamar viu a capa, ficou surpreso. Ele tinha enviado a mesma foto que inspirou meu trabalho como referência para uma editora em Portugal”.

Com a explosão de Torto Arado, a repercussão do trabalho de Bispo cresceu exponencialmente. “Muitas pessoas começaram a me acompanhar, eu passei a ilustrar uma coluna, recebi convites para trabalhar em outros livros”, conta. “Foi uma coisa que me motivou muito, fez com que meu trabalho crescesse. Foi o momento em que fui conseguindo me firmar mais no mercado das artes.”

Sincretismos

Foi também em 2019 que Bispo fez uma performance que considera fundamental: ‘Tudo o que não cabe em outros lugares encaixa-se aqui’, título inspirado em um trecho do livro ‘Nem preto, nem branco, muito pelo contrário’, da antropóloga Lilia Schwarcz. Na performance, cada elemento tem conexão com um orixá. A ideia é investigar os sincretismos brasileiros e questionar o apagamento histórico da cultura da diáspora. “Lilia diz que o uso do ‘pardo’, no Brasil, é quase um ‘saco de gatos’, onde tudo o que não cabe se encaixa. Isso me diz muito, porque é um lugar pelo qual eu navego, vou e volto”, diz Bispo. “Às vezes faço afirmações sobre esse outro lugar, e a partir delas surgem outras dúvidas.”

Nesse processo, o lugar em que Bispo se encontrou foi o culto das religiões afro-ameríndias. “É onde outras verdades estão postas, mas elas não me fecham; pelo contrário, abrem caminhos”, explica.

O sincretismo se tornou um conceito-chave para Bispo. Em sua obra, elementos visuais são revestidos de diferentes significados, que remetem ao cristianismo e às religiões de matriz africana. Temas como cura e espiritualidade também estão presentes, assim como a brasilidade, que se manifesta em diversos sentidos.

Aline Bispo investiga os sincretismos brasileiros em sua mostra individual.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

“Olhar para o meu trabalho é também olhar para mim enquanto pessoa. É algo que flutua entre um lugar e outro”, diz Bispo. “Esse lugar da natureza, assim como o da religião, está presente tanto no aspecto das minhas memórias familiares, do meu campo afetivo, quanto do meu trabalho. É olhar para aquele lugar da performance, olhar para esse corpo miscigenado que vai estar no Brasil, que vai ter diversas composições, nosso DNA cultural.”

A nova exposição individual de Aline Bispo, Somatória de Forças, também investiga os sincretismos brasileiros. Montada na Galeria Luis Maluf, na Barra Funda, a mostra é fruto de uma pesquisa voltada a festas temáticas do calendário afro-brasileiro, como a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte e a celebração de Iemanjá.

Entre as obras, estão altares construídos com objetos que Bispo adquiriu durante suas viagens de pesquisa. São velas, balas, cachimbos, charutos, alguidares, pedras, peças de cultos ou que compõem o imaginário popular. Há, também, um conjunto de pinturas trabalhadas com fios de ouro. Maria I (2023) é uma representação de Nossa Senhora Aparecida adornada com três fios dourados, em referência à sincretização com Oxum. Bispo também cobre imagens de santos com tecidos de contas. “Em alguns terreiros, é possível encontrar imagens de santos católicos. Pegar esse objeto e revestir com contas é quase como o inverso disso. É trazer o avesso dele, outra cor, outro tecido, inverter um pouco essa história”, explica.

Maria I (2023), de Aline Bispo, trabalhada com fios de ouro. Foto: Ana Aliaga/Divulgação

A tela Mães da Boa Morte é significativa neste sentido. Combinando tinta, folhas de ouro e miçangas, a obra referencia a Festa da Boa Morte, celebração que une catolicismo e candomblé na cidade de Cachoeira, na Bahia. “Quando pensamos em sincretismo religioso no Brasil, existe uma violência que parece ser apagada por ele, mas a imagem que vem na minha cabeça é essa festa dentro da igreja, com três missas. Eu visualizo mulheres negras, com cargos dentro dos terreiros, fazendo culto dentro de uma missa, recebendo a hóstia de um padre”, relembra. “Quando olho para essa imagem nesse contexto, penso exatamente nos mecanismos que foram usados para tentar dizimar as pessoas negras no Brasil. Esse lugar do sincretismo faz com que várias pessoas e coisas estejam vivas hoje, apesar de uma série de apagamentos.”

Obra 'Mães da Boa Morte', de Aline Bispo, exposta na mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf. Foto: Tatiana Mito/Divulgação

Somatória de Forças é um fragmento de um desejo maior de Bispo: ampliar o olhar sobre as miscigenações e encontros. “Para cada tipo de força, existem muitas pessoas que se misturam e são cultuadas de modos parecidos e distintos em cada lugar. São justamente esses encontros que se assemelham e diferenciam que me interessam”, diz.

Pluralidade

Além de Torto Arado, Bispo também ilustrou Doramar ou a Odisseia (2021), Salvar o Fogo (2023), ambos de Itamar Vieira Junior. Ela também assina as capas dos livros Por um feminismo afro-latino-americano (2020), Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia, de Luiz Antônio Simas (2022), e Sula (2021), de Toni Morrison, entre outros. Bispo também ilustrou o livro infantil Serena Finitude, de Anelis Assumpção. Todas as capas da obra, um poema sobre o luto, foram feitas à mão, trabalhadas com fios, texturas e colagem. “Gosto muito de ler e sempre tive essa relação com livros. O espaço da literatura tem sido muito importante para mim”, diz.

Bispo também se embrenhou no universo da moda. Em 2022, lançou a coleção Belezas Brasileiras, da Hering. Ela também criou estampas da coleção Fartura, de Naya Violeta, que foi apresentada na São Paulo Fashion Week.

Sua arte está, ainda, espalhada pela cidade. A artista assina três empenas no Minhocão – Salve, Lélia!, de 2021, uma homenagem à intelectual brasileira, Mulheres (2022), que estimula a presença feminina em espaços públicos, e ARTois, que exalta a criação da primeira tinta feita a partir do lúpulo nobre. Bispo também coassina uma empena no CEU Campo Limpo e pintou recentemente Dança de Fartura, uma obra que se inspira no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, no SESC do bairro.

Arte de Aline Bispo em homenagem a Lélia Gonzalez no Minhocão Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para Bispo, trabalhar com diversos suportes – e estar em todos os lugares – é muito positivo. “Para mim, interessam todas as possibilidades de caminho”, diz. “Acho maravilhoso ver como as mesmas temáticas e paletas se comportam em cada suporte, os processos criativos por trás de cada um deles”. Essa decisão também atrai mais público e democratiza sua arte, acredita. “Algumas pessoas podem não conseguir comprar uma obra em uma galeria, mas têm acesso aos livros ou às peças de roupa. Isso me interessa, conseguir chegar nesse público. Poder ocupar tudo o que for possível sem virar as costas para ninguém.”

Somatória de Forças

  • Onde: Galeria Luis Maluf (R. Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda, São Paulo)
  • De 24/8 a 2/10
  • Segunda a Sexta-feira – 10h às 19h; Sábado – 11h às 16h
  • Abertura com visita guiada da artista e curador: 24/8, às 13h30

Lançado em 2019, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, foi um verdadeiro fenômeno do mercado editorial brasileiro. Com quase 1 milhão de cópias vendidas – e prêmios importantes conquistados no caminho –, o livro, que acompanha a história das irmãs Bibiana e Belonísia, tem um grande trunfo para além da escrita: uma capa emblemática.

Aline Bispo é o nome por trás dela. Artista visual, ilustradora e curadora, a paulistana de 34 anos ficou conhecida principalmente pelo romance, mas é dona de uma arte que se expande por telas, livros, jornais, roupas e prédios. No seu traço característico, raça, religião, política e natureza se encontram.

A artista paulista Aline Bispo, responsável pela capa do livro 'Torto Arado', que abre abre a mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf neste sábado, 24.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

Nascida no Capão Redondo, Bispo começou sua trajetória em 2009, com o grafite. À época, cursava design de interiores na Etec e precisava se deslocar diariamente até o centro. Foi nesse trajeto que suas primeiras questões começaram a surgir. “Ter que me deslocar para fazer os cursos que queria fazer, ser tratada de formas diferentes na periferia e no centro eram questões que me atravessavam”, conta. “Eu estava em um processo de busca, de autoconhecimento, de entendimento das questões étnicas. Percebi que tinha uma série de perguntas que não eram só minhas e comecei a querer me comunicar com o mundo.”

Bispo se formou em artes visuais em 2019. Foi quando encontrou Torto Arado, sem querer - o romance, vencedor do Prêmio Leya, de Portugal, teve uma primeira edição lá. “Eu estava pesquisando a foto que inspirou a capa do livro [parte da série Nouvelle semence, do fotógrafo italiano Giovanni Marrozzini], que vinha circulando bastante. Encontrei e fiz uma releitura usando a espada de Santa Bárbara e coloquei no mundo”, conta. A ilustração foi encontrada por Elisa Randow, designer responsável pelo projeto gráfico da edição brasileira de Torto Arado. “Quando Itamar viu a capa, ficou surpreso. Ele tinha enviado a mesma foto que inspirou meu trabalho como referência para uma editora em Portugal”.

Com a explosão de Torto Arado, a repercussão do trabalho de Bispo cresceu exponencialmente. “Muitas pessoas começaram a me acompanhar, eu passei a ilustrar uma coluna, recebi convites para trabalhar em outros livros”, conta. “Foi uma coisa que me motivou muito, fez com que meu trabalho crescesse. Foi o momento em que fui conseguindo me firmar mais no mercado das artes.”

Sincretismos

Foi também em 2019 que Bispo fez uma performance que considera fundamental: ‘Tudo o que não cabe em outros lugares encaixa-se aqui’, título inspirado em um trecho do livro ‘Nem preto, nem branco, muito pelo contrário’, da antropóloga Lilia Schwarcz. Na performance, cada elemento tem conexão com um orixá. A ideia é investigar os sincretismos brasileiros e questionar o apagamento histórico da cultura da diáspora. “Lilia diz que o uso do ‘pardo’, no Brasil, é quase um ‘saco de gatos’, onde tudo o que não cabe se encaixa. Isso me diz muito, porque é um lugar pelo qual eu navego, vou e volto”, diz Bispo. “Às vezes faço afirmações sobre esse outro lugar, e a partir delas surgem outras dúvidas.”

Nesse processo, o lugar em que Bispo se encontrou foi o culto das religiões afro-ameríndias. “É onde outras verdades estão postas, mas elas não me fecham; pelo contrário, abrem caminhos”, explica.

O sincretismo se tornou um conceito-chave para Bispo. Em sua obra, elementos visuais são revestidos de diferentes significados, que remetem ao cristianismo e às religiões de matriz africana. Temas como cura e espiritualidade também estão presentes, assim como a brasilidade, que se manifesta em diversos sentidos.

Aline Bispo investiga os sincretismos brasileiros em sua mostra individual.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

“Olhar para o meu trabalho é também olhar para mim enquanto pessoa. É algo que flutua entre um lugar e outro”, diz Bispo. “Esse lugar da natureza, assim como o da religião, está presente tanto no aspecto das minhas memórias familiares, do meu campo afetivo, quanto do meu trabalho. É olhar para aquele lugar da performance, olhar para esse corpo miscigenado que vai estar no Brasil, que vai ter diversas composições, nosso DNA cultural.”

A nova exposição individual de Aline Bispo, Somatória de Forças, também investiga os sincretismos brasileiros. Montada na Galeria Luis Maluf, na Barra Funda, a mostra é fruto de uma pesquisa voltada a festas temáticas do calendário afro-brasileiro, como a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte e a celebração de Iemanjá.

Entre as obras, estão altares construídos com objetos que Bispo adquiriu durante suas viagens de pesquisa. São velas, balas, cachimbos, charutos, alguidares, pedras, peças de cultos ou que compõem o imaginário popular. Há, também, um conjunto de pinturas trabalhadas com fios de ouro. Maria I (2023) é uma representação de Nossa Senhora Aparecida adornada com três fios dourados, em referência à sincretização com Oxum. Bispo também cobre imagens de santos com tecidos de contas. “Em alguns terreiros, é possível encontrar imagens de santos católicos. Pegar esse objeto e revestir com contas é quase como o inverso disso. É trazer o avesso dele, outra cor, outro tecido, inverter um pouco essa história”, explica.

Maria I (2023), de Aline Bispo, trabalhada com fios de ouro. Foto: Ana Aliaga/Divulgação

A tela Mães da Boa Morte é significativa neste sentido. Combinando tinta, folhas de ouro e miçangas, a obra referencia a Festa da Boa Morte, celebração que une catolicismo e candomblé na cidade de Cachoeira, na Bahia. “Quando pensamos em sincretismo religioso no Brasil, existe uma violência que parece ser apagada por ele, mas a imagem que vem na minha cabeça é essa festa dentro da igreja, com três missas. Eu visualizo mulheres negras, com cargos dentro dos terreiros, fazendo culto dentro de uma missa, recebendo a hóstia de um padre”, relembra. “Quando olho para essa imagem nesse contexto, penso exatamente nos mecanismos que foram usados para tentar dizimar as pessoas negras no Brasil. Esse lugar do sincretismo faz com que várias pessoas e coisas estejam vivas hoje, apesar de uma série de apagamentos.”

Obra 'Mães da Boa Morte', de Aline Bispo, exposta na mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf. Foto: Tatiana Mito/Divulgação

Somatória de Forças é um fragmento de um desejo maior de Bispo: ampliar o olhar sobre as miscigenações e encontros. “Para cada tipo de força, existem muitas pessoas que se misturam e são cultuadas de modos parecidos e distintos em cada lugar. São justamente esses encontros que se assemelham e diferenciam que me interessam”, diz.

Pluralidade

Além de Torto Arado, Bispo também ilustrou Doramar ou a Odisseia (2021), Salvar o Fogo (2023), ambos de Itamar Vieira Junior. Ela também assina as capas dos livros Por um feminismo afro-latino-americano (2020), Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia, de Luiz Antônio Simas (2022), e Sula (2021), de Toni Morrison, entre outros. Bispo também ilustrou o livro infantil Serena Finitude, de Anelis Assumpção. Todas as capas da obra, um poema sobre o luto, foram feitas à mão, trabalhadas com fios, texturas e colagem. “Gosto muito de ler e sempre tive essa relação com livros. O espaço da literatura tem sido muito importante para mim”, diz.

Bispo também se embrenhou no universo da moda. Em 2022, lançou a coleção Belezas Brasileiras, da Hering. Ela também criou estampas da coleção Fartura, de Naya Violeta, que foi apresentada na São Paulo Fashion Week.

Sua arte está, ainda, espalhada pela cidade. A artista assina três empenas no Minhocão – Salve, Lélia!, de 2021, uma homenagem à intelectual brasileira, Mulheres (2022), que estimula a presença feminina em espaços públicos, e ARTois, que exalta a criação da primeira tinta feita a partir do lúpulo nobre. Bispo também coassina uma empena no CEU Campo Limpo e pintou recentemente Dança de Fartura, uma obra que se inspira no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, no SESC do bairro.

Arte de Aline Bispo em homenagem a Lélia Gonzalez no Minhocão Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para Bispo, trabalhar com diversos suportes – e estar em todos os lugares – é muito positivo. “Para mim, interessam todas as possibilidades de caminho”, diz. “Acho maravilhoso ver como as mesmas temáticas e paletas se comportam em cada suporte, os processos criativos por trás de cada um deles”. Essa decisão também atrai mais público e democratiza sua arte, acredita. “Algumas pessoas podem não conseguir comprar uma obra em uma galeria, mas têm acesso aos livros ou às peças de roupa. Isso me interessa, conseguir chegar nesse público. Poder ocupar tudo o que for possível sem virar as costas para ninguém.”

Somatória de Forças

  • Onde: Galeria Luis Maluf (R. Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda, São Paulo)
  • De 24/8 a 2/10
  • Segunda a Sexta-feira – 10h às 19h; Sábado – 11h às 16h
  • Abertura com visita guiada da artista e curador: 24/8, às 13h30

Lançado em 2019, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, foi um verdadeiro fenômeno do mercado editorial brasileiro. Com quase 1 milhão de cópias vendidas – e prêmios importantes conquistados no caminho –, o livro, que acompanha a história das irmãs Bibiana e Belonísia, tem um grande trunfo para além da escrita: uma capa emblemática.

Aline Bispo é o nome por trás dela. Artista visual, ilustradora e curadora, a paulistana de 34 anos ficou conhecida principalmente pelo romance, mas é dona de uma arte que se expande por telas, livros, jornais, roupas e prédios. No seu traço característico, raça, religião, política e natureza se encontram.

A artista paulista Aline Bispo, responsável pela capa do livro 'Torto Arado', que abre abre a mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf neste sábado, 24.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

Nascida no Capão Redondo, Bispo começou sua trajetória em 2009, com o grafite. À época, cursava design de interiores na Etec e precisava se deslocar diariamente até o centro. Foi nesse trajeto que suas primeiras questões começaram a surgir. “Ter que me deslocar para fazer os cursos que queria fazer, ser tratada de formas diferentes na periferia e no centro eram questões que me atravessavam”, conta. “Eu estava em um processo de busca, de autoconhecimento, de entendimento das questões étnicas. Percebi que tinha uma série de perguntas que não eram só minhas e comecei a querer me comunicar com o mundo.”

Bispo se formou em artes visuais em 2019. Foi quando encontrou Torto Arado, sem querer - o romance, vencedor do Prêmio Leya, de Portugal, teve uma primeira edição lá. “Eu estava pesquisando a foto que inspirou a capa do livro [parte da série Nouvelle semence, do fotógrafo italiano Giovanni Marrozzini], que vinha circulando bastante. Encontrei e fiz uma releitura usando a espada de Santa Bárbara e coloquei no mundo”, conta. A ilustração foi encontrada por Elisa Randow, designer responsável pelo projeto gráfico da edição brasileira de Torto Arado. “Quando Itamar viu a capa, ficou surpreso. Ele tinha enviado a mesma foto que inspirou meu trabalho como referência para uma editora em Portugal”.

Com a explosão de Torto Arado, a repercussão do trabalho de Bispo cresceu exponencialmente. “Muitas pessoas começaram a me acompanhar, eu passei a ilustrar uma coluna, recebi convites para trabalhar em outros livros”, conta. “Foi uma coisa que me motivou muito, fez com que meu trabalho crescesse. Foi o momento em que fui conseguindo me firmar mais no mercado das artes.”

Sincretismos

Foi também em 2019 que Bispo fez uma performance que considera fundamental: ‘Tudo o que não cabe em outros lugares encaixa-se aqui’, título inspirado em um trecho do livro ‘Nem preto, nem branco, muito pelo contrário’, da antropóloga Lilia Schwarcz. Na performance, cada elemento tem conexão com um orixá. A ideia é investigar os sincretismos brasileiros e questionar o apagamento histórico da cultura da diáspora. “Lilia diz que o uso do ‘pardo’, no Brasil, é quase um ‘saco de gatos’, onde tudo o que não cabe se encaixa. Isso me diz muito, porque é um lugar pelo qual eu navego, vou e volto”, diz Bispo. “Às vezes faço afirmações sobre esse outro lugar, e a partir delas surgem outras dúvidas.”

Nesse processo, o lugar em que Bispo se encontrou foi o culto das religiões afro-ameríndias. “É onde outras verdades estão postas, mas elas não me fecham; pelo contrário, abrem caminhos”, explica.

O sincretismo se tornou um conceito-chave para Bispo. Em sua obra, elementos visuais são revestidos de diferentes significados, que remetem ao cristianismo e às religiões de matriz africana. Temas como cura e espiritualidade também estão presentes, assim como a brasilidade, que se manifesta em diversos sentidos.

Aline Bispo investiga os sincretismos brasileiros em sua mostra individual.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

“Olhar para o meu trabalho é também olhar para mim enquanto pessoa. É algo que flutua entre um lugar e outro”, diz Bispo. “Esse lugar da natureza, assim como o da religião, está presente tanto no aspecto das minhas memórias familiares, do meu campo afetivo, quanto do meu trabalho. É olhar para aquele lugar da performance, olhar para esse corpo miscigenado que vai estar no Brasil, que vai ter diversas composições, nosso DNA cultural.”

A nova exposição individual de Aline Bispo, Somatória de Forças, também investiga os sincretismos brasileiros. Montada na Galeria Luis Maluf, na Barra Funda, a mostra é fruto de uma pesquisa voltada a festas temáticas do calendário afro-brasileiro, como a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte e a celebração de Iemanjá.

Entre as obras, estão altares construídos com objetos que Bispo adquiriu durante suas viagens de pesquisa. São velas, balas, cachimbos, charutos, alguidares, pedras, peças de cultos ou que compõem o imaginário popular. Há, também, um conjunto de pinturas trabalhadas com fios de ouro. Maria I (2023) é uma representação de Nossa Senhora Aparecida adornada com três fios dourados, em referência à sincretização com Oxum. Bispo também cobre imagens de santos com tecidos de contas. “Em alguns terreiros, é possível encontrar imagens de santos católicos. Pegar esse objeto e revestir com contas é quase como o inverso disso. É trazer o avesso dele, outra cor, outro tecido, inverter um pouco essa história”, explica.

Maria I (2023), de Aline Bispo, trabalhada com fios de ouro. Foto: Ana Aliaga/Divulgação

A tela Mães da Boa Morte é significativa neste sentido. Combinando tinta, folhas de ouro e miçangas, a obra referencia a Festa da Boa Morte, celebração que une catolicismo e candomblé na cidade de Cachoeira, na Bahia. “Quando pensamos em sincretismo religioso no Brasil, existe uma violência que parece ser apagada por ele, mas a imagem que vem na minha cabeça é essa festa dentro da igreja, com três missas. Eu visualizo mulheres negras, com cargos dentro dos terreiros, fazendo culto dentro de uma missa, recebendo a hóstia de um padre”, relembra. “Quando olho para essa imagem nesse contexto, penso exatamente nos mecanismos que foram usados para tentar dizimar as pessoas negras no Brasil. Esse lugar do sincretismo faz com que várias pessoas e coisas estejam vivas hoje, apesar de uma série de apagamentos.”

Obra 'Mães da Boa Morte', de Aline Bispo, exposta na mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf. Foto: Tatiana Mito/Divulgação

Somatória de Forças é um fragmento de um desejo maior de Bispo: ampliar o olhar sobre as miscigenações e encontros. “Para cada tipo de força, existem muitas pessoas que se misturam e são cultuadas de modos parecidos e distintos em cada lugar. São justamente esses encontros que se assemelham e diferenciam que me interessam”, diz.

Pluralidade

Além de Torto Arado, Bispo também ilustrou Doramar ou a Odisseia (2021), Salvar o Fogo (2023), ambos de Itamar Vieira Junior. Ela também assina as capas dos livros Por um feminismo afro-latino-americano (2020), Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia, de Luiz Antônio Simas (2022), e Sula (2021), de Toni Morrison, entre outros. Bispo também ilustrou o livro infantil Serena Finitude, de Anelis Assumpção. Todas as capas da obra, um poema sobre o luto, foram feitas à mão, trabalhadas com fios, texturas e colagem. “Gosto muito de ler e sempre tive essa relação com livros. O espaço da literatura tem sido muito importante para mim”, diz.

Bispo também se embrenhou no universo da moda. Em 2022, lançou a coleção Belezas Brasileiras, da Hering. Ela também criou estampas da coleção Fartura, de Naya Violeta, que foi apresentada na São Paulo Fashion Week.

Sua arte está, ainda, espalhada pela cidade. A artista assina três empenas no Minhocão – Salve, Lélia!, de 2021, uma homenagem à intelectual brasileira, Mulheres (2022), que estimula a presença feminina em espaços públicos, e ARTois, que exalta a criação da primeira tinta feita a partir do lúpulo nobre. Bispo também coassina uma empena no CEU Campo Limpo e pintou recentemente Dança de Fartura, uma obra que se inspira no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, no SESC do bairro.

Arte de Aline Bispo em homenagem a Lélia Gonzalez no Minhocão Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para Bispo, trabalhar com diversos suportes – e estar em todos os lugares – é muito positivo. “Para mim, interessam todas as possibilidades de caminho”, diz. “Acho maravilhoso ver como as mesmas temáticas e paletas se comportam em cada suporte, os processos criativos por trás de cada um deles”. Essa decisão também atrai mais público e democratiza sua arte, acredita. “Algumas pessoas podem não conseguir comprar uma obra em uma galeria, mas têm acesso aos livros ou às peças de roupa. Isso me interessa, conseguir chegar nesse público. Poder ocupar tudo o que for possível sem virar as costas para ninguém.”

Somatória de Forças

  • Onde: Galeria Luis Maluf (R. Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda, São Paulo)
  • De 24/8 a 2/10
  • Segunda a Sexta-feira – 10h às 19h; Sábado – 11h às 16h
  • Abertura com visita guiada da artista e curador: 24/8, às 13h30

Lançado em 2019, Torto Arado, de Itamar Vieira Junior, foi um verdadeiro fenômeno do mercado editorial brasileiro. Com quase 1 milhão de cópias vendidas – e prêmios importantes conquistados no caminho –, o livro, que acompanha a história das irmãs Bibiana e Belonísia, tem um grande trunfo para além da escrita: uma capa emblemática.

Aline Bispo é o nome por trás dela. Artista visual, ilustradora e curadora, a paulistana de 34 anos ficou conhecida principalmente pelo romance, mas é dona de uma arte que se expande por telas, livros, jornais, roupas e prédios. No seu traço característico, raça, religião, política e natureza se encontram.

A artista paulista Aline Bispo, responsável pela capa do livro 'Torto Arado', que abre abre a mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf neste sábado, 24.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

Nascida no Capão Redondo, Bispo começou sua trajetória em 2009, com o grafite. À época, cursava design de interiores na Etec e precisava se deslocar diariamente até o centro. Foi nesse trajeto que suas primeiras questões começaram a surgir. “Ter que me deslocar para fazer os cursos que queria fazer, ser tratada de formas diferentes na periferia e no centro eram questões que me atravessavam”, conta. “Eu estava em um processo de busca, de autoconhecimento, de entendimento das questões étnicas. Percebi que tinha uma série de perguntas que não eram só minhas e comecei a querer me comunicar com o mundo.”

Bispo se formou em artes visuais em 2019. Foi quando encontrou Torto Arado, sem querer - o romance, vencedor do Prêmio Leya, de Portugal, teve uma primeira edição lá. “Eu estava pesquisando a foto que inspirou a capa do livro [parte da série Nouvelle semence, do fotógrafo italiano Giovanni Marrozzini], que vinha circulando bastante. Encontrei e fiz uma releitura usando a espada de Santa Bárbara e coloquei no mundo”, conta. A ilustração foi encontrada por Elisa Randow, designer responsável pelo projeto gráfico da edição brasileira de Torto Arado. “Quando Itamar viu a capa, ficou surpreso. Ele tinha enviado a mesma foto que inspirou meu trabalho como referência para uma editora em Portugal”.

Com a explosão de Torto Arado, a repercussão do trabalho de Bispo cresceu exponencialmente. “Muitas pessoas começaram a me acompanhar, eu passei a ilustrar uma coluna, recebi convites para trabalhar em outros livros”, conta. “Foi uma coisa que me motivou muito, fez com que meu trabalho crescesse. Foi o momento em que fui conseguindo me firmar mais no mercado das artes.”

Sincretismos

Foi também em 2019 que Bispo fez uma performance que considera fundamental: ‘Tudo o que não cabe em outros lugares encaixa-se aqui’, título inspirado em um trecho do livro ‘Nem preto, nem branco, muito pelo contrário’, da antropóloga Lilia Schwarcz. Na performance, cada elemento tem conexão com um orixá. A ideia é investigar os sincretismos brasileiros e questionar o apagamento histórico da cultura da diáspora. “Lilia diz que o uso do ‘pardo’, no Brasil, é quase um ‘saco de gatos’, onde tudo o que não cabe se encaixa. Isso me diz muito, porque é um lugar pelo qual eu navego, vou e volto”, diz Bispo. “Às vezes faço afirmações sobre esse outro lugar, e a partir delas surgem outras dúvidas.”

Nesse processo, o lugar em que Bispo se encontrou foi o culto das religiões afro-ameríndias. “É onde outras verdades estão postas, mas elas não me fecham; pelo contrário, abrem caminhos”, explica.

O sincretismo se tornou um conceito-chave para Bispo. Em sua obra, elementos visuais são revestidos de diferentes significados, que remetem ao cristianismo e às religiões de matriz africana. Temas como cura e espiritualidade também estão presentes, assim como a brasilidade, que se manifesta em diversos sentidos.

Aline Bispo investiga os sincretismos brasileiros em sua mostra individual.  Foto: Daisy Serena/Divulgação

“Olhar para o meu trabalho é também olhar para mim enquanto pessoa. É algo que flutua entre um lugar e outro”, diz Bispo. “Esse lugar da natureza, assim como o da religião, está presente tanto no aspecto das minhas memórias familiares, do meu campo afetivo, quanto do meu trabalho. É olhar para aquele lugar da performance, olhar para esse corpo miscigenado que vai estar no Brasil, que vai ter diversas composições, nosso DNA cultural.”

A nova exposição individual de Aline Bispo, Somatória de Forças, também investiga os sincretismos brasileiros. Montada na Galeria Luis Maluf, na Barra Funda, a mostra é fruto de uma pesquisa voltada a festas temáticas do calendário afro-brasileiro, como a Festa de Nossa Senhora da Boa Morte e a celebração de Iemanjá.

Entre as obras, estão altares construídos com objetos que Bispo adquiriu durante suas viagens de pesquisa. São velas, balas, cachimbos, charutos, alguidares, pedras, peças de cultos ou que compõem o imaginário popular. Há, também, um conjunto de pinturas trabalhadas com fios de ouro. Maria I (2023) é uma representação de Nossa Senhora Aparecida adornada com três fios dourados, em referência à sincretização com Oxum. Bispo também cobre imagens de santos com tecidos de contas. “Em alguns terreiros, é possível encontrar imagens de santos católicos. Pegar esse objeto e revestir com contas é quase como o inverso disso. É trazer o avesso dele, outra cor, outro tecido, inverter um pouco essa história”, explica.

Maria I (2023), de Aline Bispo, trabalhada com fios de ouro. Foto: Ana Aliaga/Divulgação

A tela Mães da Boa Morte é significativa neste sentido. Combinando tinta, folhas de ouro e miçangas, a obra referencia a Festa da Boa Morte, celebração que une catolicismo e candomblé na cidade de Cachoeira, na Bahia. “Quando pensamos em sincretismo religioso no Brasil, existe uma violência que parece ser apagada por ele, mas a imagem que vem na minha cabeça é essa festa dentro da igreja, com três missas. Eu visualizo mulheres negras, com cargos dentro dos terreiros, fazendo culto dentro de uma missa, recebendo a hóstia de um padre”, relembra. “Quando olho para essa imagem nesse contexto, penso exatamente nos mecanismos que foram usados para tentar dizimar as pessoas negras no Brasil. Esse lugar do sincretismo faz com que várias pessoas e coisas estejam vivas hoje, apesar de uma série de apagamentos.”

Obra 'Mães da Boa Morte', de Aline Bispo, exposta na mostra 'Somatória de Forças', na Galeria Luis Maluf. Foto: Tatiana Mito/Divulgação

Somatória de Forças é um fragmento de um desejo maior de Bispo: ampliar o olhar sobre as miscigenações e encontros. “Para cada tipo de força, existem muitas pessoas que se misturam e são cultuadas de modos parecidos e distintos em cada lugar. São justamente esses encontros que se assemelham e diferenciam que me interessam”, diz.

Pluralidade

Além de Torto Arado, Bispo também ilustrou Doramar ou a Odisseia (2021), Salvar o Fogo (2023), ambos de Itamar Vieira Junior. Ela também assina as capas dos livros Por um feminismo afro-latino-americano (2020), Santos de casa: Fé, crenças e festas de cada dia, de Luiz Antônio Simas (2022), e Sula (2021), de Toni Morrison, entre outros. Bispo também ilustrou o livro infantil Serena Finitude, de Anelis Assumpção. Todas as capas da obra, um poema sobre o luto, foram feitas à mão, trabalhadas com fios, texturas e colagem. “Gosto muito de ler e sempre tive essa relação com livros. O espaço da literatura tem sido muito importante para mim”, diz.

Bispo também se embrenhou no universo da moda. Em 2022, lançou a coleção Belezas Brasileiras, da Hering. Ela também criou estampas da coleção Fartura, de Naya Violeta, que foi apresentada na São Paulo Fashion Week.

Sua arte está, ainda, espalhada pela cidade. A artista assina três empenas no Minhocão – Salve, Lélia!, de 2021, uma homenagem à intelectual brasileira, Mulheres (2022), que estimula a presença feminina em espaços públicos, e ARTois, que exalta a criação da primeira tinta feita a partir do lúpulo nobre. Bispo também coassina uma empena no CEU Campo Limpo e pintou recentemente Dança de Fartura, uma obra que se inspira no livro Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi, no SESC do bairro.

Arte de Aline Bispo em homenagem a Lélia Gonzalez no Minhocão Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Para Bispo, trabalhar com diversos suportes – e estar em todos os lugares – é muito positivo. “Para mim, interessam todas as possibilidades de caminho”, diz. “Acho maravilhoso ver como as mesmas temáticas e paletas se comportam em cada suporte, os processos criativos por trás de cada um deles”. Essa decisão também atrai mais público e democratiza sua arte, acredita. “Algumas pessoas podem não conseguir comprar uma obra em uma galeria, mas têm acesso aos livros ou às peças de roupa. Isso me interessa, conseguir chegar nesse público. Poder ocupar tudo o que for possível sem virar as costas para ninguém.”

Somatória de Forças

  • Onde: Galeria Luis Maluf (R. Brigadeiro Galvão, 996, Barra Funda, São Paulo)
  • De 24/8 a 2/10
  • Segunda a Sexta-feira – 10h às 19h; Sábado – 11h às 16h
  • Abertura com visita guiada da artista e curador: 24/8, às 13h30

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