Então Vermeer não pintou ‘Moça com Flauta’. Por que menosprezar o quadro?


A autenticidade de pinturas tem sido uma questão de avareza e fraude e de honesta confusão e incerteza

Por Philip Kennicott
Atualização:

THE WASHINGTON POST - A pintura Moça com Flauta da National Gallery of Art gera dúvidas sobre seu pertencimento ao autêntico cânone de Vermeer há décadas. O anúncio de sexta-feira, 7, de que novas pesquisas, incluindo análises sofisticadas de imagens, provaram definitivamente que o trabalho é produto de alguém provavelmente próximo a Vermeer, mas não do próprio pintor, pode finalmente retirar a obra da disputa por autenticidade. Ou talvez não. Está dentro e fora do cânone há tanto tempo que não está claro se alguma pesquisa convenceria todos os céticos.

Desde a redescoberta, no século 19, do trabalho do pintor holandês do século 17, o catálogo autêntico de Vermeer encolheu e ocasionalmente cresceu, embora a tendência maior tenha sido diminuir. Em 1866, o grande defensor do pintor, Théophile Thoré-Bürger, publicou uma lista de Vermeers que considerou mais de 70 obras pintadas como possivelmente do artista, embora o autor se sentisse confiante em apenas 49 delas. Hoje, esse número está em torno de 34 ou 35. Assim como a Moça com Flauta da National Gallery é suspeita há muito tempo, outra pintura, Dama Sentada ao Virginal, também tem uma longa história de dúvida e defesa.

Cada vez mais, a autenticação de pinturas é um processo científico, com o julgamento de acadêmicos dando a decisão final. Mas, durante séculos, a autenticidade também tem sido uma questão de desejo e suspeita, avareza e fraude, e uma vasta quantidade de honesta confusão e incerteza. No século 20, o pintor holandês Han van Meegeren criou falsificações que passaram como obras de Pieter de Hooch, Gerard ter Borch e Vermeer. Ele conseguiu convencer até os maiores especialistas em Vermeer de que uma pintura de 1937 chamada A Ceia em Emaús não apenas era de Vermeer, mas também era uma das maiores obras que o artista já produziu. Assim, o cânone de Vermeer cresceu, por um tempo, antes que a fraude fosse detectada e definitivamente desmascarada.

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Golpe ou treino

Fazer passar uma falsificação como obra autêntica pode trazer enormes recompensas financeiras para o vigarista. Mas há outras motivações também. Os artistas aprendem copiando, e copiar é uma forma de olhar profundo. Falsificar a obra de um artista é uma forma de entendê-la, até amá-la, homenageá-la com a bajulação da imitação. Também pode ser uma forma de agressão, pois o artista enganador se mostra igual ao mestre, ou mesmo superior (ao menos aos seus olhos). A venda da obra, ou sua adesão a uma respeitada coleção pública ou privada, apenas afirma o triunfo da superação do gênio de outro artista.

Mas as obras também são copiadas por razões perfeitamente legítimas. O próprio artista pode fazer as cópias ou supervisionar o trabalho dos discípulos e assistentes no ateliê. Eles também podem fazer várias versões, com pequenas alterações, do mesmo trabalho. No Metropolitan Museum of Art, Vênus e o Tocador de Alaúde de Ticiano é uma das várias pinturas que retratam a mesma cena básica: um jovem fazendo música para a deusa voluptuosa. Mas os detalhes e às vezes o instrumento (o jovem também toca órgão) mudam de obra para obra, junto com detalhes psicológicos sutis.

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No Prado, uma versão da Mona Lisa de Leonardo da Vinci é muitas vezes esquecida ou ignorada pelos visitantes. Não é a verdadeira Mona Lisa, que está no Louvre, mas uma versão muito boa que, de acordo com estudos recentes, provavelmente foi feita no ateliê de da Vinci na época da pintura original. Ao contrário das hordas de peregrinos adoradores que se apinham para ver a original, você pode ter a versão do Prado para si mesmo na maioria dos dias.

Cópia de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, que pertence ao Museu do Prado Foto: Sergio Perez/Reuters

As notícias de pinturas “recém-descobertas” - em um sótão, nos fundos empoeirados de uma loja de antiguidades ou em um bazar - nos encantam por causa do elemento básico do desejo que colore tanto a forma como respondemos à arte. Queremos que haja mais Vermeers, não só porque isso aumenta o tesouro da arte, mas porque promete a possibilidade de compreender o que permanece enigmático no artista. A arte pode ser descrita, analisada e submetida a imagens de fluorescência de raios-X. Mas nada disso satisfaz plenamente o desejo de compreensão. Nem qualquer novo Vermeer irá satisfazer, se é que algum dia aparecerá. Mas a possibilidade existe, e isso inspira esperança, e é impossível resistir à esperança.

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Autenticidade, controle e o cânone

O desejo de diminuir o cânone também está ligado à autenticidade. Quanto menos obras atribuídas a um artista, mais aparentemente sagrado (e financeiramente valioso) qualquer uma em particular se torna. Mas não se trata apenas do valor da obra ou de seu poder de atrair visitantes para um museu que a possui. Quanto mais rigorosamente a autenticidade for controlada, mais intensamente poderemos nos envolver com o trabalho. Quando aquilo definido pelo crítico alemão Walter Benjamin como a “aura” de uma obra de arte parece aumentar de intensidade, a intensidade de nosso próprio engajamento pode aumentar também.

É curioso que o processo de autenticação tenha se tornado mais rigorosamente científico mesmo que a autenticidade seja uma categoria cada vez mais suspeita ou desdenhada. A autenticação da obra dá poder aos acadêmicos, e agora aos cientistas, e parece ser parte do aparato de controle que faz os museus parecerem zonas de exclusão ou patriarcais. Também pode sustentar categorias dúbias ou problemáticas, como a do gênio, que muitas vezes são usadas para limitar o cânone a grandes homens (quase sempre homens) canonizados por séculos de admiração reflexiva.

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Mas, assim como forjar ou falsificar uma obra é uma forma de olhar profundo, autenticá-lo também é. Desde a redescoberta de Vermeer, tem sido tentador atribuir a ele o trabalho de outros artistas, incluindo as magníficas e íntimas cenas de Ter Borch. Mas o processo de autenticação de uma obra de um artista pode nos levar a olhar mais profundamente para a obra de outros artistas. As pinturas de Jacobus Vrel, contemporâneo de Vermeer (que usava as iniciais J.V.), às vezes são atribuídas ao artista mais famoso. Mas elas são surpreendentemente belas e espantosas por si só, e qualquer trabalho de J.V. que seja Vrel, mas não Vermeer, não é uma perda para o mundo.

A autenticidade permanece fortemente controversa no mundo da arte contemporânea. Artistas têm questionado por que o original deve ser mais valorizado do que uma cópia, por que uma obra deve ser limitada à presença física de um objeto em vez de livremente presente e transmissível como uma ideia ou um conceito, e por que a arte deve funcionar como moeda ou objeto de luxo, com seu valor determinado tanto pela escassez quanto pela qualidade.

'Moça com Flauta', que era atribuída a Vermeer Foto: National Gallery of Art/EFE
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A arte conceitual muitas vezes elimina qualquer ideia de uma obra original. Na década de 1960, Elaine Sturtevant começou a reproduzir as obras de outros artistas pop, incluindo Roy Lichtenstein, Jasper Johns e Andy Warhol. A originalidade de seu trabalho estava na audácia de suas ideias, mesmo que as cópias fossem boas o suficiente para serem apreciadas por si mesmas, como objetos com sua própria definição de originalidade.

Moça com Flauta, anteriormente atribuída a Vermeer, está passando por um momento perigoso. Agora é oficialmente (pelo menos na National Gallery) “não de Vermeer”, o que é um buraco negro no campo da atribuição. Ainda não é uma obra de alguém conhecido, nem mesmo de alguém com uma relação conhecida com Vermeer - pode ser um aluno, imitador, copista, colega ou concorrente. E parte da determinação de que não é de Vermeer foi crítica, o que significa que parece ser um trabalho que não está à altura do padrão de Vermeer. Ela está órfã.

O que a coloca em uma companhia vasta e muitas vezes estelar. Os museus do mundo estão repletos de obras do “ateliê de” ou atribuídas apenas a um “mestre” que trabalhou anonimamente em alguma cidade ou igreja isolada. Pode haver entre essas obras tantas grandes pinturas e esculturas sem atribuição quanto há grandes obras firmemente atribuídas a artistas conhecidos. No entanto, resistimos a elas. Elas são relegadas ao depósito ou deixadas de lado na galeria por visitantes que buscam a terra firme dos artistas cujos nomes eles reconhecem.

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Mas isso diz mais sobre como pensamos e processamos a arte do que sobre como a experimentamos. Amamos a arte adotando-a, não procurando sua certidão de nascimento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

THE WASHINGTON POST - A pintura Moça com Flauta da National Gallery of Art gera dúvidas sobre seu pertencimento ao autêntico cânone de Vermeer há décadas. O anúncio de sexta-feira, 7, de que novas pesquisas, incluindo análises sofisticadas de imagens, provaram definitivamente que o trabalho é produto de alguém provavelmente próximo a Vermeer, mas não do próprio pintor, pode finalmente retirar a obra da disputa por autenticidade. Ou talvez não. Está dentro e fora do cânone há tanto tempo que não está claro se alguma pesquisa convenceria todos os céticos.

Desde a redescoberta, no século 19, do trabalho do pintor holandês do século 17, o catálogo autêntico de Vermeer encolheu e ocasionalmente cresceu, embora a tendência maior tenha sido diminuir. Em 1866, o grande defensor do pintor, Théophile Thoré-Bürger, publicou uma lista de Vermeers que considerou mais de 70 obras pintadas como possivelmente do artista, embora o autor se sentisse confiante em apenas 49 delas. Hoje, esse número está em torno de 34 ou 35. Assim como a Moça com Flauta da National Gallery é suspeita há muito tempo, outra pintura, Dama Sentada ao Virginal, também tem uma longa história de dúvida e defesa.

Cada vez mais, a autenticação de pinturas é um processo científico, com o julgamento de acadêmicos dando a decisão final. Mas, durante séculos, a autenticidade também tem sido uma questão de desejo e suspeita, avareza e fraude, e uma vasta quantidade de honesta confusão e incerteza. No século 20, o pintor holandês Han van Meegeren criou falsificações que passaram como obras de Pieter de Hooch, Gerard ter Borch e Vermeer. Ele conseguiu convencer até os maiores especialistas em Vermeer de que uma pintura de 1937 chamada A Ceia em Emaús não apenas era de Vermeer, mas também era uma das maiores obras que o artista já produziu. Assim, o cânone de Vermeer cresceu, por um tempo, antes que a fraude fosse detectada e definitivamente desmascarada.

Golpe ou treino

Fazer passar uma falsificação como obra autêntica pode trazer enormes recompensas financeiras para o vigarista. Mas há outras motivações também. Os artistas aprendem copiando, e copiar é uma forma de olhar profundo. Falsificar a obra de um artista é uma forma de entendê-la, até amá-la, homenageá-la com a bajulação da imitação. Também pode ser uma forma de agressão, pois o artista enganador se mostra igual ao mestre, ou mesmo superior (ao menos aos seus olhos). A venda da obra, ou sua adesão a uma respeitada coleção pública ou privada, apenas afirma o triunfo da superação do gênio de outro artista.

Mas as obras também são copiadas por razões perfeitamente legítimas. O próprio artista pode fazer as cópias ou supervisionar o trabalho dos discípulos e assistentes no ateliê. Eles também podem fazer várias versões, com pequenas alterações, do mesmo trabalho. No Metropolitan Museum of Art, Vênus e o Tocador de Alaúde de Ticiano é uma das várias pinturas que retratam a mesma cena básica: um jovem fazendo música para a deusa voluptuosa. Mas os detalhes e às vezes o instrumento (o jovem também toca órgão) mudam de obra para obra, junto com detalhes psicológicos sutis.

No Prado, uma versão da Mona Lisa de Leonardo da Vinci é muitas vezes esquecida ou ignorada pelos visitantes. Não é a verdadeira Mona Lisa, que está no Louvre, mas uma versão muito boa que, de acordo com estudos recentes, provavelmente foi feita no ateliê de da Vinci na época da pintura original. Ao contrário das hordas de peregrinos adoradores que se apinham para ver a original, você pode ter a versão do Prado para si mesmo na maioria dos dias.

Cópia de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, que pertence ao Museu do Prado Foto: Sergio Perez/Reuters

As notícias de pinturas “recém-descobertas” - em um sótão, nos fundos empoeirados de uma loja de antiguidades ou em um bazar - nos encantam por causa do elemento básico do desejo que colore tanto a forma como respondemos à arte. Queremos que haja mais Vermeers, não só porque isso aumenta o tesouro da arte, mas porque promete a possibilidade de compreender o que permanece enigmático no artista. A arte pode ser descrita, analisada e submetida a imagens de fluorescência de raios-X. Mas nada disso satisfaz plenamente o desejo de compreensão. Nem qualquer novo Vermeer irá satisfazer, se é que algum dia aparecerá. Mas a possibilidade existe, e isso inspira esperança, e é impossível resistir à esperança.

Autenticidade, controle e o cânone

O desejo de diminuir o cânone também está ligado à autenticidade. Quanto menos obras atribuídas a um artista, mais aparentemente sagrado (e financeiramente valioso) qualquer uma em particular se torna. Mas não se trata apenas do valor da obra ou de seu poder de atrair visitantes para um museu que a possui. Quanto mais rigorosamente a autenticidade for controlada, mais intensamente poderemos nos envolver com o trabalho. Quando aquilo definido pelo crítico alemão Walter Benjamin como a “aura” de uma obra de arte parece aumentar de intensidade, a intensidade de nosso próprio engajamento pode aumentar também.

É curioso que o processo de autenticação tenha se tornado mais rigorosamente científico mesmo que a autenticidade seja uma categoria cada vez mais suspeita ou desdenhada. A autenticação da obra dá poder aos acadêmicos, e agora aos cientistas, e parece ser parte do aparato de controle que faz os museus parecerem zonas de exclusão ou patriarcais. Também pode sustentar categorias dúbias ou problemáticas, como a do gênio, que muitas vezes são usadas para limitar o cânone a grandes homens (quase sempre homens) canonizados por séculos de admiração reflexiva.

Mas, assim como forjar ou falsificar uma obra é uma forma de olhar profundo, autenticá-lo também é. Desde a redescoberta de Vermeer, tem sido tentador atribuir a ele o trabalho de outros artistas, incluindo as magníficas e íntimas cenas de Ter Borch. Mas o processo de autenticação de uma obra de um artista pode nos levar a olhar mais profundamente para a obra de outros artistas. As pinturas de Jacobus Vrel, contemporâneo de Vermeer (que usava as iniciais J.V.), às vezes são atribuídas ao artista mais famoso. Mas elas são surpreendentemente belas e espantosas por si só, e qualquer trabalho de J.V. que seja Vrel, mas não Vermeer, não é uma perda para o mundo.

A autenticidade permanece fortemente controversa no mundo da arte contemporânea. Artistas têm questionado por que o original deve ser mais valorizado do que uma cópia, por que uma obra deve ser limitada à presença física de um objeto em vez de livremente presente e transmissível como uma ideia ou um conceito, e por que a arte deve funcionar como moeda ou objeto de luxo, com seu valor determinado tanto pela escassez quanto pela qualidade.

'Moça com Flauta', que era atribuída a Vermeer Foto: National Gallery of Art/EFE

A arte conceitual muitas vezes elimina qualquer ideia de uma obra original. Na década de 1960, Elaine Sturtevant começou a reproduzir as obras de outros artistas pop, incluindo Roy Lichtenstein, Jasper Johns e Andy Warhol. A originalidade de seu trabalho estava na audácia de suas ideias, mesmo que as cópias fossem boas o suficiente para serem apreciadas por si mesmas, como objetos com sua própria definição de originalidade.

Moça com Flauta, anteriormente atribuída a Vermeer, está passando por um momento perigoso. Agora é oficialmente (pelo menos na National Gallery) “não de Vermeer”, o que é um buraco negro no campo da atribuição. Ainda não é uma obra de alguém conhecido, nem mesmo de alguém com uma relação conhecida com Vermeer - pode ser um aluno, imitador, copista, colega ou concorrente. E parte da determinação de que não é de Vermeer foi crítica, o que significa que parece ser um trabalho que não está à altura do padrão de Vermeer. Ela está órfã.

O que a coloca em uma companhia vasta e muitas vezes estelar. Os museus do mundo estão repletos de obras do “ateliê de” ou atribuídas apenas a um “mestre” que trabalhou anonimamente em alguma cidade ou igreja isolada. Pode haver entre essas obras tantas grandes pinturas e esculturas sem atribuição quanto há grandes obras firmemente atribuídas a artistas conhecidos. No entanto, resistimos a elas. Elas são relegadas ao depósito ou deixadas de lado na galeria por visitantes que buscam a terra firme dos artistas cujos nomes eles reconhecem.

Mas isso diz mais sobre como pensamos e processamos a arte do que sobre como a experimentamos. Amamos a arte adotando-a, não procurando sua certidão de nascimento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

THE WASHINGTON POST - A pintura Moça com Flauta da National Gallery of Art gera dúvidas sobre seu pertencimento ao autêntico cânone de Vermeer há décadas. O anúncio de sexta-feira, 7, de que novas pesquisas, incluindo análises sofisticadas de imagens, provaram definitivamente que o trabalho é produto de alguém provavelmente próximo a Vermeer, mas não do próprio pintor, pode finalmente retirar a obra da disputa por autenticidade. Ou talvez não. Está dentro e fora do cânone há tanto tempo que não está claro se alguma pesquisa convenceria todos os céticos.

Desde a redescoberta, no século 19, do trabalho do pintor holandês do século 17, o catálogo autêntico de Vermeer encolheu e ocasionalmente cresceu, embora a tendência maior tenha sido diminuir. Em 1866, o grande defensor do pintor, Théophile Thoré-Bürger, publicou uma lista de Vermeers que considerou mais de 70 obras pintadas como possivelmente do artista, embora o autor se sentisse confiante em apenas 49 delas. Hoje, esse número está em torno de 34 ou 35. Assim como a Moça com Flauta da National Gallery é suspeita há muito tempo, outra pintura, Dama Sentada ao Virginal, também tem uma longa história de dúvida e defesa.

Cada vez mais, a autenticação de pinturas é um processo científico, com o julgamento de acadêmicos dando a decisão final. Mas, durante séculos, a autenticidade também tem sido uma questão de desejo e suspeita, avareza e fraude, e uma vasta quantidade de honesta confusão e incerteza. No século 20, o pintor holandês Han van Meegeren criou falsificações que passaram como obras de Pieter de Hooch, Gerard ter Borch e Vermeer. Ele conseguiu convencer até os maiores especialistas em Vermeer de que uma pintura de 1937 chamada A Ceia em Emaús não apenas era de Vermeer, mas também era uma das maiores obras que o artista já produziu. Assim, o cânone de Vermeer cresceu, por um tempo, antes que a fraude fosse detectada e definitivamente desmascarada.

Golpe ou treino

Fazer passar uma falsificação como obra autêntica pode trazer enormes recompensas financeiras para o vigarista. Mas há outras motivações também. Os artistas aprendem copiando, e copiar é uma forma de olhar profundo. Falsificar a obra de um artista é uma forma de entendê-la, até amá-la, homenageá-la com a bajulação da imitação. Também pode ser uma forma de agressão, pois o artista enganador se mostra igual ao mestre, ou mesmo superior (ao menos aos seus olhos). A venda da obra, ou sua adesão a uma respeitada coleção pública ou privada, apenas afirma o triunfo da superação do gênio de outro artista.

Mas as obras também são copiadas por razões perfeitamente legítimas. O próprio artista pode fazer as cópias ou supervisionar o trabalho dos discípulos e assistentes no ateliê. Eles também podem fazer várias versões, com pequenas alterações, do mesmo trabalho. No Metropolitan Museum of Art, Vênus e o Tocador de Alaúde de Ticiano é uma das várias pinturas que retratam a mesma cena básica: um jovem fazendo música para a deusa voluptuosa. Mas os detalhes e às vezes o instrumento (o jovem também toca órgão) mudam de obra para obra, junto com detalhes psicológicos sutis.

No Prado, uma versão da Mona Lisa de Leonardo da Vinci é muitas vezes esquecida ou ignorada pelos visitantes. Não é a verdadeira Mona Lisa, que está no Louvre, mas uma versão muito boa que, de acordo com estudos recentes, provavelmente foi feita no ateliê de da Vinci na época da pintura original. Ao contrário das hordas de peregrinos adoradores que se apinham para ver a original, você pode ter a versão do Prado para si mesmo na maioria dos dias.

Cópia de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, que pertence ao Museu do Prado Foto: Sergio Perez/Reuters

As notícias de pinturas “recém-descobertas” - em um sótão, nos fundos empoeirados de uma loja de antiguidades ou em um bazar - nos encantam por causa do elemento básico do desejo que colore tanto a forma como respondemos à arte. Queremos que haja mais Vermeers, não só porque isso aumenta o tesouro da arte, mas porque promete a possibilidade de compreender o que permanece enigmático no artista. A arte pode ser descrita, analisada e submetida a imagens de fluorescência de raios-X. Mas nada disso satisfaz plenamente o desejo de compreensão. Nem qualquer novo Vermeer irá satisfazer, se é que algum dia aparecerá. Mas a possibilidade existe, e isso inspira esperança, e é impossível resistir à esperança.

Autenticidade, controle e o cânone

O desejo de diminuir o cânone também está ligado à autenticidade. Quanto menos obras atribuídas a um artista, mais aparentemente sagrado (e financeiramente valioso) qualquer uma em particular se torna. Mas não se trata apenas do valor da obra ou de seu poder de atrair visitantes para um museu que a possui. Quanto mais rigorosamente a autenticidade for controlada, mais intensamente poderemos nos envolver com o trabalho. Quando aquilo definido pelo crítico alemão Walter Benjamin como a “aura” de uma obra de arte parece aumentar de intensidade, a intensidade de nosso próprio engajamento pode aumentar também.

É curioso que o processo de autenticação tenha se tornado mais rigorosamente científico mesmo que a autenticidade seja uma categoria cada vez mais suspeita ou desdenhada. A autenticação da obra dá poder aos acadêmicos, e agora aos cientistas, e parece ser parte do aparato de controle que faz os museus parecerem zonas de exclusão ou patriarcais. Também pode sustentar categorias dúbias ou problemáticas, como a do gênio, que muitas vezes são usadas para limitar o cânone a grandes homens (quase sempre homens) canonizados por séculos de admiração reflexiva.

Mas, assim como forjar ou falsificar uma obra é uma forma de olhar profundo, autenticá-lo também é. Desde a redescoberta de Vermeer, tem sido tentador atribuir a ele o trabalho de outros artistas, incluindo as magníficas e íntimas cenas de Ter Borch. Mas o processo de autenticação de uma obra de um artista pode nos levar a olhar mais profundamente para a obra de outros artistas. As pinturas de Jacobus Vrel, contemporâneo de Vermeer (que usava as iniciais J.V.), às vezes são atribuídas ao artista mais famoso. Mas elas são surpreendentemente belas e espantosas por si só, e qualquer trabalho de J.V. que seja Vrel, mas não Vermeer, não é uma perda para o mundo.

A autenticidade permanece fortemente controversa no mundo da arte contemporânea. Artistas têm questionado por que o original deve ser mais valorizado do que uma cópia, por que uma obra deve ser limitada à presença física de um objeto em vez de livremente presente e transmissível como uma ideia ou um conceito, e por que a arte deve funcionar como moeda ou objeto de luxo, com seu valor determinado tanto pela escassez quanto pela qualidade.

'Moça com Flauta', que era atribuída a Vermeer Foto: National Gallery of Art/EFE

A arte conceitual muitas vezes elimina qualquer ideia de uma obra original. Na década de 1960, Elaine Sturtevant começou a reproduzir as obras de outros artistas pop, incluindo Roy Lichtenstein, Jasper Johns e Andy Warhol. A originalidade de seu trabalho estava na audácia de suas ideias, mesmo que as cópias fossem boas o suficiente para serem apreciadas por si mesmas, como objetos com sua própria definição de originalidade.

Moça com Flauta, anteriormente atribuída a Vermeer, está passando por um momento perigoso. Agora é oficialmente (pelo menos na National Gallery) “não de Vermeer”, o que é um buraco negro no campo da atribuição. Ainda não é uma obra de alguém conhecido, nem mesmo de alguém com uma relação conhecida com Vermeer - pode ser um aluno, imitador, copista, colega ou concorrente. E parte da determinação de que não é de Vermeer foi crítica, o que significa que parece ser um trabalho que não está à altura do padrão de Vermeer. Ela está órfã.

O que a coloca em uma companhia vasta e muitas vezes estelar. Os museus do mundo estão repletos de obras do “ateliê de” ou atribuídas apenas a um “mestre” que trabalhou anonimamente em alguma cidade ou igreja isolada. Pode haver entre essas obras tantas grandes pinturas e esculturas sem atribuição quanto há grandes obras firmemente atribuídas a artistas conhecidos. No entanto, resistimos a elas. Elas são relegadas ao depósito ou deixadas de lado na galeria por visitantes que buscam a terra firme dos artistas cujos nomes eles reconhecem.

Mas isso diz mais sobre como pensamos e processamos a arte do que sobre como a experimentamos. Amamos a arte adotando-a, não procurando sua certidão de nascimento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

THE WASHINGTON POST - A pintura Moça com Flauta da National Gallery of Art gera dúvidas sobre seu pertencimento ao autêntico cânone de Vermeer há décadas. O anúncio de sexta-feira, 7, de que novas pesquisas, incluindo análises sofisticadas de imagens, provaram definitivamente que o trabalho é produto de alguém provavelmente próximo a Vermeer, mas não do próprio pintor, pode finalmente retirar a obra da disputa por autenticidade. Ou talvez não. Está dentro e fora do cânone há tanto tempo que não está claro se alguma pesquisa convenceria todos os céticos.

Desde a redescoberta, no século 19, do trabalho do pintor holandês do século 17, o catálogo autêntico de Vermeer encolheu e ocasionalmente cresceu, embora a tendência maior tenha sido diminuir. Em 1866, o grande defensor do pintor, Théophile Thoré-Bürger, publicou uma lista de Vermeers que considerou mais de 70 obras pintadas como possivelmente do artista, embora o autor se sentisse confiante em apenas 49 delas. Hoje, esse número está em torno de 34 ou 35. Assim como a Moça com Flauta da National Gallery é suspeita há muito tempo, outra pintura, Dama Sentada ao Virginal, também tem uma longa história de dúvida e defesa.

Cada vez mais, a autenticação de pinturas é um processo científico, com o julgamento de acadêmicos dando a decisão final. Mas, durante séculos, a autenticidade também tem sido uma questão de desejo e suspeita, avareza e fraude, e uma vasta quantidade de honesta confusão e incerteza. No século 20, o pintor holandês Han van Meegeren criou falsificações que passaram como obras de Pieter de Hooch, Gerard ter Borch e Vermeer. Ele conseguiu convencer até os maiores especialistas em Vermeer de que uma pintura de 1937 chamada A Ceia em Emaús não apenas era de Vermeer, mas também era uma das maiores obras que o artista já produziu. Assim, o cânone de Vermeer cresceu, por um tempo, antes que a fraude fosse detectada e definitivamente desmascarada.

Golpe ou treino

Fazer passar uma falsificação como obra autêntica pode trazer enormes recompensas financeiras para o vigarista. Mas há outras motivações também. Os artistas aprendem copiando, e copiar é uma forma de olhar profundo. Falsificar a obra de um artista é uma forma de entendê-la, até amá-la, homenageá-la com a bajulação da imitação. Também pode ser uma forma de agressão, pois o artista enganador se mostra igual ao mestre, ou mesmo superior (ao menos aos seus olhos). A venda da obra, ou sua adesão a uma respeitada coleção pública ou privada, apenas afirma o triunfo da superação do gênio de outro artista.

Mas as obras também são copiadas por razões perfeitamente legítimas. O próprio artista pode fazer as cópias ou supervisionar o trabalho dos discípulos e assistentes no ateliê. Eles também podem fazer várias versões, com pequenas alterações, do mesmo trabalho. No Metropolitan Museum of Art, Vênus e o Tocador de Alaúde de Ticiano é uma das várias pinturas que retratam a mesma cena básica: um jovem fazendo música para a deusa voluptuosa. Mas os detalhes e às vezes o instrumento (o jovem também toca órgão) mudam de obra para obra, junto com detalhes psicológicos sutis.

No Prado, uma versão da Mona Lisa de Leonardo da Vinci é muitas vezes esquecida ou ignorada pelos visitantes. Não é a verdadeira Mona Lisa, que está no Louvre, mas uma versão muito boa que, de acordo com estudos recentes, provavelmente foi feita no ateliê de da Vinci na época da pintura original. Ao contrário das hordas de peregrinos adoradores que se apinham para ver a original, você pode ter a versão do Prado para si mesmo na maioria dos dias.

Cópia de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, que pertence ao Museu do Prado Foto: Sergio Perez/Reuters

As notícias de pinturas “recém-descobertas” - em um sótão, nos fundos empoeirados de uma loja de antiguidades ou em um bazar - nos encantam por causa do elemento básico do desejo que colore tanto a forma como respondemos à arte. Queremos que haja mais Vermeers, não só porque isso aumenta o tesouro da arte, mas porque promete a possibilidade de compreender o que permanece enigmático no artista. A arte pode ser descrita, analisada e submetida a imagens de fluorescência de raios-X. Mas nada disso satisfaz plenamente o desejo de compreensão. Nem qualquer novo Vermeer irá satisfazer, se é que algum dia aparecerá. Mas a possibilidade existe, e isso inspira esperança, e é impossível resistir à esperança.

Autenticidade, controle e o cânone

O desejo de diminuir o cânone também está ligado à autenticidade. Quanto menos obras atribuídas a um artista, mais aparentemente sagrado (e financeiramente valioso) qualquer uma em particular se torna. Mas não se trata apenas do valor da obra ou de seu poder de atrair visitantes para um museu que a possui. Quanto mais rigorosamente a autenticidade for controlada, mais intensamente poderemos nos envolver com o trabalho. Quando aquilo definido pelo crítico alemão Walter Benjamin como a “aura” de uma obra de arte parece aumentar de intensidade, a intensidade de nosso próprio engajamento pode aumentar também.

É curioso que o processo de autenticação tenha se tornado mais rigorosamente científico mesmo que a autenticidade seja uma categoria cada vez mais suspeita ou desdenhada. A autenticação da obra dá poder aos acadêmicos, e agora aos cientistas, e parece ser parte do aparato de controle que faz os museus parecerem zonas de exclusão ou patriarcais. Também pode sustentar categorias dúbias ou problemáticas, como a do gênio, que muitas vezes são usadas para limitar o cânone a grandes homens (quase sempre homens) canonizados por séculos de admiração reflexiva.

Mas, assim como forjar ou falsificar uma obra é uma forma de olhar profundo, autenticá-lo também é. Desde a redescoberta de Vermeer, tem sido tentador atribuir a ele o trabalho de outros artistas, incluindo as magníficas e íntimas cenas de Ter Borch. Mas o processo de autenticação de uma obra de um artista pode nos levar a olhar mais profundamente para a obra de outros artistas. As pinturas de Jacobus Vrel, contemporâneo de Vermeer (que usava as iniciais J.V.), às vezes são atribuídas ao artista mais famoso. Mas elas são surpreendentemente belas e espantosas por si só, e qualquer trabalho de J.V. que seja Vrel, mas não Vermeer, não é uma perda para o mundo.

A autenticidade permanece fortemente controversa no mundo da arte contemporânea. Artistas têm questionado por que o original deve ser mais valorizado do que uma cópia, por que uma obra deve ser limitada à presença física de um objeto em vez de livremente presente e transmissível como uma ideia ou um conceito, e por que a arte deve funcionar como moeda ou objeto de luxo, com seu valor determinado tanto pela escassez quanto pela qualidade.

'Moça com Flauta', que era atribuída a Vermeer Foto: National Gallery of Art/EFE

A arte conceitual muitas vezes elimina qualquer ideia de uma obra original. Na década de 1960, Elaine Sturtevant começou a reproduzir as obras de outros artistas pop, incluindo Roy Lichtenstein, Jasper Johns e Andy Warhol. A originalidade de seu trabalho estava na audácia de suas ideias, mesmo que as cópias fossem boas o suficiente para serem apreciadas por si mesmas, como objetos com sua própria definição de originalidade.

Moça com Flauta, anteriormente atribuída a Vermeer, está passando por um momento perigoso. Agora é oficialmente (pelo menos na National Gallery) “não de Vermeer”, o que é um buraco negro no campo da atribuição. Ainda não é uma obra de alguém conhecido, nem mesmo de alguém com uma relação conhecida com Vermeer - pode ser um aluno, imitador, copista, colega ou concorrente. E parte da determinação de que não é de Vermeer foi crítica, o que significa que parece ser um trabalho que não está à altura do padrão de Vermeer. Ela está órfã.

O que a coloca em uma companhia vasta e muitas vezes estelar. Os museus do mundo estão repletos de obras do “ateliê de” ou atribuídas apenas a um “mestre” que trabalhou anonimamente em alguma cidade ou igreja isolada. Pode haver entre essas obras tantas grandes pinturas e esculturas sem atribuição quanto há grandes obras firmemente atribuídas a artistas conhecidos. No entanto, resistimos a elas. Elas são relegadas ao depósito ou deixadas de lado na galeria por visitantes que buscam a terra firme dos artistas cujos nomes eles reconhecem.

Mas isso diz mais sobre como pensamos e processamos a arte do que sobre como a experimentamos. Amamos a arte adotando-a, não procurando sua certidão de nascimento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

THE WASHINGTON POST - A pintura Moça com Flauta da National Gallery of Art gera dúvidas sobre seu pertencimento ao autêntico cânone de Vermeer há décadas. O anúncio de sexta-feira, 7, de que novas pesquisas, incluindo análises sofisticadas de imagens, provaram definitivamente que o trabalho é produto de alguém provavelmente próximo a Vermeer, mas não do próprio pintor, pode finalmente retirar a obra da disputa por autenticidade. Ou talvez não. Está dentro e fora do cânone há tanto tempo que não está claro se alguma pesquisa convenceria todos os céticos.

Desde a redescoberta, no século 19, do trabalho do pintor holandês do século 17, o catálogo autêntico de Vermeer encolheu e ocasionalmente cresceu, embora a tendência maior tenha sido diminuir. Em 1866, o grande defensor do pintor, Théophile Thoré-Bürger, publicou uma lista de Vermeers que considerou mais de 70 obras pintadas como possivelmente do artista, embora o autor se sentisse confiante em apenas 49 delas. Hoje, esse número está em torno de 34 ou 35. Assim como a Moça com Flauta da National Gallery é suspeita há muito tempo, outra pintura, Dama Sentada ao Virginal, também tem uma longa história de dúvida e defesa.

Cada vez mais, a autenticação de pinturas é um processo científico, com o julgamento de acadêmicos dando a decisão final. Mas, durante séculos, a autenticidade também tem sido uma questão de desejo e suspeita, avareza e fraude, e uma vasta quantidade de honesta confusão e incerteza. No século 20, o pintor holandês Han van Meegeren criou falsificações que passaram como obras de Pieter de Hooch, Gerard ter Borch e Vermeer. Ele conseguiu convencer até os maiores especialistas em Vermeer de que uma pintura de 1937 chamada A Ceia em Emaús não apenas era de Vermeer, mas também era uma das maiores obras que o artista já produziu. Assim, o cânone de Vermeer cresceu, por um tempo, antes que a fraude fosse detectada e definitivamente desmascarada.

Golpe ou treino

Fazer passar uma falsificação como obra autêntica pode trazer enormes recompensas financeiras para o vigarista. Mas há outras motivações também. Os artistas aprendem copiando, e copiar é uma forma de olhar profundo. Falsificar a obra de um artista é uma forma de entendê-la, até amá-la, homenageá-la com a bajulação da imitação. Também pode ser uma forma de agressão, pois o artista enganador se mostra igual ao mestre, ou mesmo superior (ao menos aos seus olhos). A venda da obra, ou sua adesão a uma respeitada coleção pública ou privada, apenas afirma o triunfo da superação do gênio de outro artista.

Mas as obras também são copiadas por razões perfeitamente legítimas. O próprio artista pode fazer as cópias ou supervisionar o trabalho dos discípulos e assistentes no ateliê. Eles também podem fazer várias versões, com pequenas alterações, do mesmo trabalho. No Metropolitan Museum of Art, Vênus e o Tocador de Alaúde de Ticiano é uma das várias pinturas que retratam a mesma cena básica: um jovem fazendo música para a deusa voluptuosa. Mas os detalhes e às vezes o instrumento (o jovem também toca órgão) mudam de obra para obra, junto com detalhes psicológicos sutis.

No Prado, uma versão da Mona Lisa de Leonardo da Vinci é muitas vezes esquecida ou ignorada pelos visitantes. Não é a verdadeira Mona Lisa, que está no Louvre, mas uma versão muito boa que, de acordo com estudos recentes, provavelmente foi feita no ateliê de da Vinci na época da pintura original. Ao contrário das hordas de peregrinos adoradores que se apinham para ver a original, você pode ter a versão do Prado para si mesmo na maioria dos dias.

Cópia de Mona Lisa, de Leonardo Da Vinci, que pertence ao Museu do Prado Foto: Sergio Perez/Reuters

As notícias de pinturas “recém-descobertas” - em um sótão, nos fundos empoeirados de uma loja de antiguidades ou em um bazar - nos encantam por causa do elemento básico do desejo que colore tanto a forma como respondemos à arte. Queremos que haja mais Vermeers, não só porque isso aumenta o tesouro da arte, mas porque promete a possibilidade de compreender o que permanece enigmático no artista. A arte pode ser descrita, analisada e submetida a imagens de fluorescência de raios-X. Mas nada disso satisfaz plenamente o desejo de compreensão. Nem qualquer novo Vermeer irá satisfazer, se é que algum dia aparecerá. Mas a possibilidade existe, e isso inspira esperança, e é impossível resistir à esperança.

Autenticidade, controle e o cânone

O desejo de diminuir o cânone também está ligado à autenticidade. Quanto menos obras atribuídas a um artista, mais aparentemente sagrado (e financeiramente valioso) qualquer uma em particular se torna. Mas não se trata apenas do valor da obra ou de seu poder de atrair visitantes para um museu que a possui. Quanto mais rigorosamente a autenticidade for controlada, mais intensamente poderemos nos envolver com o trabalho. Quando aquilo definido pelo crítico alemão Walter Benjamin como a “aura” de uma obra de arte parece aumentar de intensidade, a intensidade de nosso próprio engajamento pode aumentar também.

É curioso que o processo de autenticação tenha se tornado mais rigorosamente científico mesmo que a autenticidade seja uma categoria cada vez mais suspeita ou desdenhada. A autenticação da obra dá poder aos acadêmicos, e agora aos cientistas, e parece ser parte do aparato de controle que faz os museus parecerem zonas de exclusão ou patriarcais. Também pode sustentar categorias dúbias ou problemáticas, como a do gênio, que muitas vezes são usadas para limitar o cânone a grandes homens (quase sempre homens) canonizados por séculos de admiração reflexiva.

Mas, assim como forjar ou falsificar uma obra é uma forma de olhar profundo, autenticá-lo também é. Desde a redescoberta de Vermeer, tem sido tentador atribuir a ele o trabalho de outros artistas, incluindo as magníficas e íntimas cenas de Ter Borch. Mas o processo de autenticação de uma obra de um artista pode nos levar a olhar mais profundamente para a obra de outros artistas. As pinturas de Jacobus Vrel, contemporâneo de Vermeer (que usava as iniciais J.V.), às vezes são atribuídas ao artista mais famoso. Mas elas são surpreendentemente belas e espantosas por si só, e qualquer trabalho de J.V. que seja Vrel, mas não Vermeer, não é uma perda para o mundo.

A autenticidade permanece fortemente controversa no mundo da arte contemporânea. Artistas têm questionado por que o original deve ser mais valorizado do que uma cópia, por que uma obra deve ser limitada à presença física de um objeto em vez de livremente presente e transmissível como uma ideia ou um conceito, e por que a arte deve funcionar como moeda ou objeto de luxo, com seu valor determinado tanto pela escassez quanto pela qualidade.

'Moça com Flauta', que era atribuída a Vermeer Foto: National Gallery of Art/EFE

A arte conceitual muitas vezes elimina qualquer ideia de uma obra original. Na década de 1960, Elaine Sturtevant começou a reproduzir as obras de outros artistas pop, incluindo Roy Lichtenstein, Jasper Johns e Andy Warhol. A originalidade de seu trabalho estava na audácia de suas ideias, mesmo que as cópias fossem boas o suficiente para serem apreciadas por si mesmas, como objetos com sua própria definição de originalidade.

Moça com Flauta, anteriormente atribuída a Vermeer, está passando por um momento perigoso. Agora é oficialmente (pelo menos na National Gallery) “não de Vermeer”, o que é um buraco negro no campo da atribuição. Ainda não é uma obra de alguém conhecido, nem mesmo de alguém com uma relação conhecida com Vermeer - pode ser um aluno, imitador, copista, colega ou concorrente. E parte da determinação de que não é de Vermeer foi crítica, o que significa que parece ser um trabalho que não está à altura do padrão de Vermeer. Ela está órfã.

O que a coloca em uma companhia vasta e muitas vezes estelar. Os museus do mundo estão repletos de obras do “ateliê de” ou atribuídas apenas a um “mestre” que trabalhou anonimamente em alguma cidade ou igreja isolada. Pode haver entre essas obras tantas grandes pinturas e esculturas sem atribuição quanto há grandes obras firmemente atribuídas a artistas conhecidos. No entanto, resistimos a elas. Elas são relegadas ao depósito ou deixadas de lado na galeria por visitantes que buscam a terra firme dos artistas cujos nomes eles reconhecem.

Mas isso diz mais sobre como pensamos e processamos a arte do que sobre como a experimentamos. Amamos a arte adotando-a, não procurando sua certidão de nascimento. /TRADUÇÃO LÍVIA BUELONI GONÇALVES

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