Escravidão brasileira ganha saga de fôlego


Por Antonio Gonçalves Filho

É possível que o romance histórico Um Defeito de Cor (Record, 952 págs., R$ 79,90), segundo livro escrito pela ex-publicitária Ana Maria Gonçalves, venha a representar para o Brasil o que o livro Raízes (Roots), de Alex Haley (1921-1992), representou para os EUA há 30 anos, quando foi lançado, comovendo o mundo com a história de Kunta Kinte, escravo levado da África para os Estados Unidos no século 18. Ainda assustada com a repercussão do livro que, apesar de suas quase mil páginas, é um sucesso de vendas, a autora, que participou da 5ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), concedeu uma entrevista ao Estado em que fala de sua saga, a triste história de uma escrava inspirada na vida de Luísa Mahin, tida como a mãe do abolicionista Luís Gama. Kehinde é uma espécie de Kunta Kinte de saias. Capturada em Daomé (Benin) e trazida para o Brasil no início do século 19, a escrava passa por várias cidades brasileiras testemunhando tragédias e rebeliões em oito décadas de existência, até conseguir a liberdade, sair do País e voltar, cega, em busca do filho desaparecido. Ana Maria Gonçalves, que nasceu em Ibiá, Minas, há 37 anos, abandonou a publicidade para dedicar-se à literatura, estudando História com o objetivo de entender melhor a rebelião malê deflagrada por escravos muçulmanos na Bahia, em 1835, tema de seu livro. O que fez você trocar a publicidade pela pesquisa histórica e mudar de São Paulo para a Bahia? Depois de morar 13 anos em São Paulo e ser vítima de quatro assaltos, decidi escrever um blog. Gostei da experiência e, como sempre li, procurei um caminho fora da publicidade, começando por ajudar uma amiga a escrever o roteiro de um documentário sobre música caribenha. Foi aí que caiu em minhas mãos, por acaso, um livro de Jorge Amado, Guia das Ruas e dos Mistérios da Cidade de Salvador, aberto numa página em que ele diz: ''''Vem moça, vem para a Bahia, a Bahia te espera.'''' Eu não conhecia Salvador e cheguei lá em 1º de fevereiro, um dia antes da festa de Iemanjá. Logo me apaixonei pela cidade e comecei a pesquisar sobre os malês de que falava Amado em seu livro. Você classificaria esse de um chamado místico? Acho que sim. Era bem cética antes de viajar para a Bahia, mas já começo a acreditar nesses mistérios. Voltei a São Paulo, vendi a agência de publicidade, o apartamento e em menos de um mês já estava morando em Itaparica, onde comecei a escrever. Pesquisei por dois anos, período em que também escrevi meu primeiro livro, Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim, lançado em 2002. A personagem principal de Um Defeito de Cor, a africana Kehinde, parece inspirada em figura histórica. Sim, ela é inspirada em Luísa Mahin. Uma das versões mais plausíveis da história dela é que teria sido inventada pelo Luís Gama, porque ele nasceu de uma escrava liberta, filha de um fidalgo português. Aos 7 anos, foi abandonado pela mãe, perdeu o contato com ela e ficou morando com o pai, que o vendeu aos 10 anos para pagar uma dívida de jogo. Provavelmente deve ter inventado essa mulher ou se apropriado dela, a cujo respeito circula uma lenda na Bahia de que teria sido uma das principais articuladoras da rebelião malê de 1835. Ela teria deixado a cidade ou sido deportada para a África, mas sobre isso não se tem registro. Assim, Luís Gama pode ter se apropriado dessa história para dignificar o próprio passado. A tragédia de Kehinde, vítima da violência, parece definir um pouco o caráter brasileiro. Essa violência seria endêmica? Pode ter essa ligação, sim. Temos vários tipos de violência no Brasil, mas, principalmente no caso dos negros, ela está ligada ao período da escravidão. Parece que o brasileiro tem vergonha de discutir esse período, mas quem sofre racismo hoje em dia e quer levantar a voz sente essa violência no ato. A esse respeito, o escritor angolano Agualusa diz que temos um racismo camuflado no Brasil, revelado desde a ausência de negros na esfera do poder até a culpa que faz criar um sistema de cotas nas universidades. Agualusa diz ainda que a educação não é um problema de raça. O problema do racismo, antes de estudos como os de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, era colocado à margem da academia e da sociedade. Esse ''''homem cordial'''' de Buarque de Holanda nunca existiu, é uma desculpa para o racismo velado. Não foi, no entanto, uma definição de má-fé. Ela apenas retrata a sociedade brasileira da época. Por que você escolheu uma personagem cega para contar uma história de racismo? Não tinha pensado nisso. Será que é para não ver o que está acontecendo? (ri) Bem, na verdade, o que eu queria era trabalhar a sensibilidade, a oralidade africana, essa capacidade de contar histórias. Pela idade avançada, Kehinde passa a relembrar histórias e sensações, imprimindo ao livro o próprio ritmo. Sua cegueira - e isso não está no livro - vem provavelmente de uma diabete, mesmo problema que atingiu Luís Gama, órfão negro que conseguiu estudar Direito e tornou-se um jornalista respeitado, poeta e abolicionista. Quais as fontes de pesquisa que você consultou? Antigos jornais e livros baianos. O livro é muito grande. Foi cortado em mais da metade das páginas originais. São muitos os personagens, 416 até o início do nono capítulo, muitos deles inspirados em pessoas reais. Quis contar principalmente a história das mulheres, que tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África. Uma das questões mais intrigantes sobre o tráfico é o colaboracionismo de alguns negros africanos, muitos deles bastante solícitos com os traficantes. Como você analisa esse comportamento? Alguns se aproveitaram economicamente da situação, mas, em muitos reinos e tribos, a escravidão era vista de maneira diferente. Em alguns casos, o escravo era considerado e tratado como membro da família, podendo ocupar um cargo de relevância, ajudar seu dono. Estabeleceu-se um outro tipo de escravidão no Brasil, mais violenta, desde o momento de captura na África até a conversão forçada do negro, obrigado a renegar suas referências culturais e religiosas. Séries americanas, entre elas a mais popular, Raízes, exploram bastante esse tema da aculturação. Você escreveu esse livro pensando numa possível adaptação cinematográfica? Não. Queria escrever um livro que gostaria de ter lido sobre todas aquelas histórias esquecidas e perdidas nos arquivos, às vezes escritas de próprio punho, entre elas cartas de alforria de donos de escravos apaixonados por suas escravas. Há alguns pontos em comum com Raízes, mas só no sentido dos conflitos entre diversas etnias trazidas da África, como os malês, que eram escravos bem mais cultos e não se misturavam com os outros. De todas essas histórias, qual a mais emocionante que você leu? Há histórias comoventes de mães que sacrificam os filhos para que não passem por aquilo que viveram. Uma das personagens do livro, baseada numa história verídica, é uma mulher impedida pelo senhor de alimentar os próprios filhos para amamentar o bebê da patroa. Ela desobedece à ordem, é presa num quartinho junto aos filhos e recebe apenas uma lata de água de arroz por dia. Finalmente, enlouquece e estrangula os dois bebês, tentando cortar o pescoço com a tampa da lata. É uma história que li num jornal, como muitas que estão no livro. De acordo com suas pesquisas, qual a principal característica que herdamos da cultura africana? Acho que a esperança. Por mais que a situação estivesse ruim, o negro sempre pensou que ela poderia melhorar. Sem essa esperança ele não teria sobrevivido, porque, para muitos deles, a questão da temporalidade não existia. Eles não entendiam o que era o amanhã. Viviam para o dia de hoje, a exemplo de alguns índios. Como foi retirado deles o prazer de se viver o presente, acredito que a esperança ficou como seu principal traço. Deixando de lado traços dominantes, vamos falar de miscigenação. Em seu caso, como você incorporou a cultura baiana, particularmente a religiosa? Sou de família católica mineira e, como a maioria das pessoas que não conhecem candomblé, tinha receio. Tive a sorte de conhecer uma senhora na Bahia que me levou a um terreiro que freqüentava em Itaparica, uma mãe-de-santo que me apresentou os orixás, a religião. Ela pediu autorização a eles para que eu pudesse contar essa história. O orixás, felizmente, abençoaram.

É possível que o romance histórico Um Defeito de Cor (Record, 952 págs., R$ 79,90), segundo livro escrito pela ex-publicitária Ana Maria Gonçalves, venha a representar para o Brasil o que o livro Raízes (Roots), de Alex Haley (1921-1992), representou para os EUA há 30 anos, quando foi lançado, comovendo o mundo com a história de Kunta Kinte, escravo levado da África para os Estados Unidos no século 18. Ainda assustada com a repercussão do livro que, apesar de suas quase mil páginas, é um sucesso de vendas, a autora, que participou da 5ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), concedeu uma entrevista ao Estado em que fala de sua saga, a triste história de uma escrava inspirada na vida de Luísa Mahin, tida como a mãe do abolicionista Luís Gama. Kehinde é uma espécie de Kunta Kinte de saias. Capturada em Daomé (Benin) e trazida para o Brasil no início do século 19, a escrava passa por várias cidades brasileiras testemunhando tragédias e rebeliões em oito décadas de existência, até conseguir a liberdade, sair do País e voltar, cega, em busca do filho desaparecido. Ana Maria Gonçalves, que nasceu em Ibiá, Minas, há 37 anos, abandonou a publicidade para dedicar-se à literatura, estudando História com o objetivo de entender melhor a rebelião malê deflagrada por escravos muçulmanos na Bahia, em 1835, tema de seu livro. O que fez você trocar a publicidade pela pesquisa histórica e mudar de São Paulo para a Bahia? Depois de morar 13 anos em São Paulo e ser vítima de quatro assaltos, decidi escrever um blog. Gostei da experiência e, como sempre li, procurei um caminho fora da publicidade, começando por ajudar uma amiga a escrever o roteiro de um documentário sobre música caribenha. Foi aí que caiu em minhas mãos, por acaso, um livro de Jorge Amado, Guia das Ruas e dos Mistérios da Cidade de Salvador, aberto numa página em que ele diz: ''''Vem moça, vem para a Bahia, a Bahia te espera.'''' Eu não conhecia Salvador e cheguei lá em 1º de fevereiro, um dia antes da festa de Iemanjá. Logo me apaixonei pela cidade e comecei a pesquisar sobre os malês de que falava Amado em seu livro. Você classificaria esse de um chamado místico? Acho que sim. Era bem cética antes de viajar para a Bahia, mas já começo a acreditar nesses mistérios. Voltei a São Paulo, vendi a agência de publicidade, o apartamento e em menos de um mês já estava morando em Itaparica, onde comecei a escrever. Pesquisei por dois anos, período em que também escrevi meu primeiro livro, Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim, lançado em 2002. A personagem principal de Um Defeito de Cor, a africana Kehinde, parece inspirada em figura histórica. Sim, ela é inspirada em Luísa Mahin. Uma das versões mais plausíveis da história dela é que teria sido inventada pelo Luís Gama, porque ele nasceu de uma escrava liberta, filha de um fidalgo português. Aos 7 anos, foi abandonado pela mãe, perdeu o contato com ela e ficou morando com o pai, que o vendeu aos 10 anos para pagar uma dívida de jogo. Provavelmente deve ter inventado essa mulher ou se apropriado dela, a cujo respeito circula uma lenda na Bahia de que teria sido uma das principais articuladoras da rebelião malê de 1835. Ela teria deixado a cidade ou sido deportada para a África, mas sobre isso não se tem registro. Assim, Luís Gama pode ter se apropriado dessa história para dignificar o próprio passado. A tragédia de Kehinde, vítima da violência, parece definir um pouco o caráter brasileiro. Essa violência seria endêmica? Pode ter essa ligação, sim. Temos vários tipos de violência no Brasil, mas, principalmente no caso dos negros, ela está ligada ao período da escravidão. Parece que o brasileiro tem vergonha de discutir esse período, mas quem sofre racismo hoje em dia e quer levantar a voz sente essa violência no ato. A esse respeito, o escritor angolano Agualusa diz que temos um racismo camuflado no Brasil, revelado desde a ausência de negros na esfera do poder até a culpa que faz criar um sistema de cotas nas universidades. Agualusa diz ainda que a educação não é um problema de raça. O problema do racismo, antes de estudos como os de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, era colocado à margem da academia e da sociedade. Esse ''''homem cordial'''' de Buarque de Holanda nunca existiu, é uma desculpa para o racismo velado. Não foi, no entanto, uma definição de má-fé. Ela apenas retrata a sociedade brasileira da época. Por que você escolheu uma personagem cega para contar uma história de racismo? Não tinha pensado nisso. Será que é para não ver o que está acontecendo? (ri) Bem, na verdade, o que eu queria era trabalhar a sensibilidade, a oralidade africana, essa capacidade de contar histórias. Pela idade avançada, Kehinde passa a relembrar histórias e sensações, imprimindo ao livro o próprio ritmo. Sua cegueira - e isso não está no livro - vem provavelmente de uma diabete, mesmo problema que atingiu Luís Gama, órfão negro que conseguiu estudar Direito e tornou-se um jornalista respeitado, poeta e abolicionista. Quais as fontes de pesquisa que você consultou? Antigos jornais e livros baianos. O livro é muito grande. Foi cortado em mais da metade das páginas originais. São muitos os personagens, 416 até o início do nono capítulo, muitos deles inspirados em pessoas reais. Quis contar principalmente a história das mulheres, que tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África. Uma das questões mais intrigantes sobre o tráfico é o colaboracionismo de alguns negros africanos, muitos deles bastante solícitos com os traficantes. Como você analisa esse comportamento? Alguns se aproveitaram economicamente da situação, mas, em muitos reinos e tribos, a escravidão era vista de maneira diferente. Em alguns casos, o escravo era considerado e tratado como membro da família, podendo ocupar um cargo de relevância, ajudar seu dono. Estabeleceu-se um outro tipo de escravidão no Brasil, mais violenta, desde o momento de captura na África até a conversão forçada do negro, obrigado a renegar suas referências culturais e religiosas. Séries americanas, entre elas a mais popular, Raízes, exploram bastante esse tema da aculturação. Você escreveu esse livro pensando numa possível adaptação cinematográfica? Não. Queria escrever um livro que gostaria de ter lido sobre todas aquelas histórias esquecidas e perdidas nos arquivos, às vezes escritas de próprio punho, entre elas cartas de alforria de donos de escravos apaixonados por suas escravas. Há alguns pontos em comum com Raízes, mas só no sentido dos conflitos entre diversas etnias trazidas da África, como os malês, que eram escravos bem mais cultos e não se misturavam com os outros. De todas essas histórias, qual a mais emocionante que você leu? Há histórias comoventes de mães que sacrificam os filhos para que não passem por aquilo que viveram. Uma das personagens do livro, baseada numa história verídica, é uma mulher impedida pelo senhor de alimentar os próprios filhos para amamentar o bebê da patroa. Ela desobedece à ordem, é presa num quartinho junto aos filhos e recebe apenas uma lata de água de arroz por dia. Finalmente, enlouquece e estrangula os dois bebês, tentando cortar o pescoço com a tampa da lata. É uma história que li num jornal, como muitas que estão no livro. De acordo com suas pesquisas, qual a principal característica que herdamos da cultura africana? Acho que a esperança. Por mais que a situação estivesse ruim, o negro sempre pensou que ela poderia melhorar. Sem essa esperança ele não teria sobrevivido, porque, para muitos deles, a questão da temporalidade não existia. Eles não entendiam o que era o amanhã. Viviam para o dia de hoje, a exemplo de alguns índios. Como foi retirado deles o prazer de se viver o presente, acredito que a esperança ficou como seu principal traço. Deixando de lado traços dominantes, vamos falar de miscigenação. Em seu caso, como você incorporou a cultura baiana, particularmente a religiosa? Sou de família católica mineira e, como a maioria das pessoas que não conhecem candomblé, tinha receio. Tive a sorte de conhecer uma senhora na Bahia que me levou a um terreiro que freqüentava em Itaparica, uma mãe-de-santo que me apresentou os orixás, a religião. Ela pediu autorização a eles para que eu pudesse contar essa história. O orixás, felizmente, abençoaram.

É possível que o romance histórico Um Defeito de Cor (Record, 952 págs., R$ 79,90), segundo livro escrito pela ex-publicitária Ana Maria Gonçalves, venha a representar para o Brasil o que o livro Raízes (Roots), de Alex Haley (1921-1992), representou para os EUA há 30 anos, quando foi lançado, comovendo o mundo com a história de Kunta Kinte, escravo levado da África para os Estados Unidos no século 18. Ainda assustada com a repercussão do livro que, apesar de suas quase mil páginas, é um sucesso de vendas, a autora, que participou da 5ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip), concedeu uma entrevista ao Estado em que fala de sua saga, a triste história de uma escrava inspirada na vida de Luísa Mahin, tida como a mãe do abolicionista Luís Gama. Kehinde é uma espécie de Kunta Kinte de saias. Capturada em Daomé (Benin) e trazida para o Brasil no início do século 19, a escrava passa por várias cidades brasileiras testemunhando tragédias e rebeliões em oito décadas de existência, até conseguir a liberdade, sair do País e voltar, cega, em busca do filho desaparecido. Ana Maria Gonçalves, que nasceu em Ibiá, Minas, há 37 anos, abandonou a publicidade para dedicar-se à literatura, estudando História com o objetivo de entender melhor a rebelião malê deflagrada por escravos muçulmanos na Bahia, em 1835, tema de seu livro. O que fez você trocar a publicidade pela pesquisa histórica e mudar de São Paulo para a Bahia? Depois de morar 13 anos em São Paulo e ser vítima de quatro assaltos, decidi escrever um blog. Gostei da experiência e, como sempre li, procurei um caminho fora da publicidade, começando por ajudar uma amiga a escrever o roteiro de um documentário sobre música caribenha. Foi aí que caiu em minhas mãos, por acaso, um livro de Jorge Amado, Guia das Ruas e dos Mistérios da Cidade de Salvador, aberto numa página em que ele diz: ''''Vem moça, vem para a Bahia, a Bahia te espera.'''' Eu não conhecia Salvador e cheguei lá em 1º de fevereiro, um dia antes da festa de Iemanjá. Logo me apaixonei pela cidade e comecei a pesquisar sobre os malês de que falava Amado em seu livro. Você classificaria esse de um chamado místico? Acho que sim. Era bem cética antes de viajar para a Bahia, mas já começo a acreditar nesses mistérios. Voltei a São Paulo, vendi a agência de publicidade, o apartamento e em menos de um mês já estava morando em Itaparica, onde comecei a escrever. Pesquisei por dois anos, período em que também escrevi meu primeiro livro, Ao Lado e à Margem do que Sentes por Mim, lançado em 2002. A personagem principal de Um Defeito de Cor, a africana Kehinde, parece inspirada em figura histórica. Sim, ela é inspirada em Luísa Mahin. Uma das versões mais plausíveis da história dela é que teria sido inventada pelo Luís Gama, porque ele nasceu de uma escrava liberta, filha de um fidalgo português. Aos 7 anos, foi abandonado pela mãe, perdeu o contato com ela e ficou morando com o pai, que o vendeu aos 10 anos para pagar uma dívida de jogo. Provavelmente deve ter inventado essa mulher ou se apropriado dela, a cujo respeito circula uma lenda na Bahia de que teria sido uma das principais articuladoras da rebelião malê de 1835. Ela teria deixado a cidade ou sido deportada para a África, mas sobre isso não se tem registro. Assim, Luís Gama pode ter se apropriado dessa história para dignificar o próprio passado. A tragédia de Kehinde, vítima da violência, parece definir um pouco o caráter brasileiro. Essa violência seria endêmica? Pode ter essa ligação, sim. Temos vários tipos de violência no Brasil, mas, principalmente no caso dos negros, ela está ligada ao período da escravidão. Parece que o brasileiro tem vergonha de discutir esse período, mas quem sofre racismo hoje em dia e quer levantar a voz sente essa violência no ato. A esse respeito, o escritor angolano Agualusa diz que temos um racismo camuflado no Brasil, revelado desde a ausência de negros na esfera do poder até a culpa que faz criar um sistema de cotas nas universidades. Agualusa diz ainda que a educação não é um problema de raça. O problema do racismo, antes de estudos como os de Sérgio Buarque de Holanda, por exemplo, era colocado à margem da academia e da sociedade. Esse ''''homem cordial'''' de Buarque de Holanda nunca existiu, é uma desculpa para o racismo velado. Não foi, no entanto, uma definição de má-fé. Ela apenas retrata a sociedade brasileira da época. Por que você escolheu uma personagem cega para contar uma história de racismo? Não tinha pensado nisso. Será que é para não ver o que está acontecendo? (ri) Bem, na verdade, o que eu queria era trabalhar a sensibilidade, a oralidade africana, essa capacidade de contar histórias. Pela idade avançada, Kehinde passa a relembrar histórias e sensações, imprimindo ao livro o próprio ritmo. Sua cegueira - e isso não está no livro - vem provavelmente de uma diabete, mesmo problema que atingiu Luís Gama, órfão negro que conseguiu estudar Direito e tornou-se um jornalista respeitado, poeta e abolicionista. Quais as fontes de pesquisa que você consultou? Antigos jornais e livros baianos. O livro é muito grande. Foi cortado em mais da metade das páginas originais. São muitos os personagens, 416 até o início do nono capítulo, muitos deles inspirados em pessoas reais. Quis contar principalmente a história das mulheres, que tiveram um papel importantíssimo durante a escravidão. Não se tem quase nada de informações sobre elas, nem no Brasil nem na África. Uma das questões mais intrigantes sobre o tráfico é o colaboracionismo de alguns negros africanos, muitos deles bastante solícitos com os traficantes. Como você analisa esse comportamento? Alguns se aproveitaram economicamente da situação, mas, em muitos reinos e tribos, a escravidão era vista de maneira diferente. Em alguns casos, o escravo era considerado e tratado como membro da família, podendo ocupar um cargo de relevância, ajudar seu dono. Estabeleceu-se um outro tipo de escravidão no Brasil, mais violenta, desde o momento de captura na África até a conversão forçada do negro, obrigado a renegar suas referências culturais e religiosas. Séries americanas, entre elas a mais popular, Raízes, exploram bastante esse tema da aculturação. Você escreveu esse livro pensando numa possível adaptação cinematográfica? Não. Queria escrever um livro que gostaria de ter lido sobre todas aquelas histórias esquecidas e perdidas nos arquivos, às vezes escritas de próprio punho, entre elas cartas de alforria de donos de escravos apaixonados por suas escravas. Há alguns pontos em comum com Raízes, mas só no sentido dos conflitos entre diversas etnias trazidas da África, como os malês, que eram escravos bem mais cultos e não se misturavam com os outros. De todas essas histórias, qual a mais emocionante que você leu? Há histórias comoventes de mães que sacrificam os filhos para que não passem por aquilo que viveram. Uma das personagens do livro, baseada numa história verídica, é uma mulher impedida pelo senhor de alimentar os próprios filhos para amamentar o bebê da patroa. Ela desobedece à ordem, é presa num quartinho junto aos filhos e recebe apenas uma lata de água de arroz por dia. Finalmente, enlouquece e estrangula os dois bebês, tentando cortar o pescoço com a tampa da lata. É uma história que li num jornal, como muitas que estão no livro. De acordo com suas pesquisas, qual a principal característica que herdamos da cultura africana? Acho que a esperança. Por mais que a situação estivesse ruim, o negro sempre pensou que ela poderia melhorar. Sem essa esperança ele não teria sobrevivido, porque, para muitos deles, a questão da temporalidade não existia. Eles não entendiam o que era o amanhã. Viviam para o dia de hoje, a exemplo de alguns índios. Como foi retirado deles o prazer de se viver o presente, acredito que a esperança ficou como seu principal traço. Deixando de lado traços dominantes, vamos falar de miscigenação. Em seu caso, como você incorporou a cultura baiana, particularmente a religiosa? Sou de família católica mineira e, como a maioria das pessoas que não conhecem candomblé, tinha receio. Tive a sorte de conhecer uma senhora na Bahia que me levou a um terreiro que freqüentava em Itaparica, uma mãe-de-santo que me apresentou os orixás, a religião. Ela pediu autorização a eles para que eu pudesse contar essa história. O orixás, felizmente, abençoaram.

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