Cabral acabara de colocar os pés no Brasil quando o pintor holandês Hieronymus Bosch (c. 1450/1516) começou a pintar A Nau dos Insensatos, óleo sobre painel de carvalho que há cinco séculos intriga os historiadores. Na obra, um bando de tolos navega, rindo, em direção ao inferno, seduzido pelos prazeres mundanos. Durante muito tempo, antes que se descobrisse ser a pintura parte de um tríptico, imaginou-se Bosch como tripulante dessa nau de outsiders, avessos à moral e aos bons costumes, mas bastou fazer a ligação entre o primeiro painel do tríptico (O Caminhante, que mostra um viajante solitário numa paisagem desolada), o segundo (A Nau dos Insensatos) e o terceiro (A Gula e a Luxúria) para que os especialistas mudassem de opinião. Bosch foi, antes, um católico fervoroso, que usou a arte para alertar sobre o poder sedutor do mal.
Há nove anos, esses especialistas se reuniram em torno de um programa de pesquisas preparatório das comemorações dos 500 anos de morte do pintor, que resultou na maior retrospectiva já realizada do artista, Hieronymus Bosch – Visões de um Gênio (em cartaz até 8 de maio no Museu Het Noordbrabants de Hertogenbosch, ou Den Bosch, na Holanda). A mostra segue dia 31 de maio para o Museu do Prado, que abriga em seu acervo uma obra-prima de Bosch, O Jardim das Delícias, espécie de resumo do imaginário do pintor, visto como um antecessor dos surrealistas na alvorada da Idade Moderna. Na exposição, estão reunidas 17 das 24 pinturas atribuídas a Bosch existentes no mundo – a do acervo do Masp, As Tentações de Santo Antão, não figura entre elas. Em todo caso, outra pintura com o mesmo título e tema, adquirida em 1930 pelo museu Nelson-Atkins de Kansas City (EUA) – e guardada na reserva técnica da instituição durante décadas por ser classificada obra de um discípulo ou seguidor de Bosch – está em exibição na Holanda com nova atribuição. Os especialistas reconheceram Bosch como o seu verdadeiro autor. No futuro, pode acontecer o mesmo com a obra do Masp. O diretor do museu Het Noordbrabants, Charles de Mooji, acena com a possibilidade de examinar um dia a pintura com a ajuda do programa de pesquisa criado para os festejos do quinto centenário de Bosch. O programa não só reviu a atribuição de pinturas como a de Kansas City e desenhos como Paisagem Infernal (de um colecionador particular) como restaurou obras excepcionais, uma delas reproduzida nesta página, A Nau dos Insensatos (1500-1510), do acervo do Louvre, antes prejudicada pela oxidação do verniz. Entre as obras-primas restauradas estão o tríptico que mostra a crucificação de Santa Wilgefortis (c. 1495-1505) e pertence à Galleria dell’Academia de Veneza, além do óleo que representa São Cristóvão (c. 1490-1500), do Museu Boijmans, Roterdã. Os 19 desenhos na exposição (dos 20 reconhecidos como de Bosch no mundo) ajudam a sedimentar a imagem do artista não como a figura marginal que deixou registrada uma legião de demônios e criaturas monstruosas, mas como um cristão devoto, membro de uma confraria mariana em Den Bosch, a simpática cidade medieval holandesa onde nasceu. O grotesco, nas obras de Bosch, tem mais a função de condenar do que exaltar o misticismo sensual herético dos adamitas – seita à qual pertenceria, segundo imaginavam no passado. Prova maior de sua vocação devocional é a pintura Ecce Homo, realizada entre 1475 e 1485. No canto inferior à esquerda, o que parece ser uma fantasmagoria, é, na verdade, um grupo familiar revelado pela restauração em 1983. Não é um pentimento, mas uma declaração de fé posteriormente apagada: trata-se da única pintura com uma inscrição do autor dando fala a um dos seus personagens. Nela sobrou o monge ao lado da família apagada, que, ao contrário da multidão enfurecida que pede a crucificação de Jesus, faz uma prece, pintada em folha de ouro, signo do incorruptível na pintura: “Salva nos christe redemptor” (Salvai-nos, Cristo Redentor). Bosch não só foi um protossurrealista como antecipou a técnica dos quadrinhos, ele que raramente usava folhas de ouro (reservadas a santos) ou palavras em sua pintura. Na esteira revisionista, o acadêmico Stefan Fischer, autor de um livro recentemente lançado sobre a obra completa de Bosch (Hieronymus Bosch: Complete Works, Taschen) nota que algumas representações do Messias, como a do óleo Cristo Zombado (ou A Coroação com Espinhos, c. 1510), foram mais de uma vez expurgadas do cânone boschiano por não serem “grotescas” o suficiente. É como se seus seguidores, tentando reforçar o lado visionário de um artista marcado pela necessidade de escancarar o lado negro da natureza humana, utilizassem a expressão monstruosa como contraponto do sublime, traduzido na placidez das figuras santas. Capaz de desenvolver uma linguagem singular, ainda que devedora da tradição de Van Eyck e outros gênios que o precederam, Bosch pode ser visto como um moralista cristão, ciente das tentações diabólicas que surgem nos sonhos, mas o certo seria defini-lo como um peregrino moderno, pré-existencialista. Para Bosch, o homem tem a obrigação de refletir sobre seus atos e assumir ser o único responsável por seu destino. Os monstros criados por ele, que se materializam na forma de pequenos demônios a atormentar semelhantes, nada mais são que projeções, exemplos negativos do longo e tortuoso caminho que leva ao inferno existencial.