Exposição ‘O Sequestro da Independência’ mostra como o 7 de setembro foi usado pelo poder


Livro e mostra condenam a manipulação da data durante a Primeira República, na ditadura e agora

Por Antonio Gonçalves Filho

O título da exposição, que marca o lançamento do livro homônimo O Sequestro da Independência, já diz a que veio: inaugurada amanhã, 13, na Galeria 132, com curadoria dos três autores da obra, a mostra discute como foi criado o “mito” do 7 de Setembro, tomando como peça central o famoso quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, Independência ou Morte (1888), atração maior do Museu Paulista da USP (Ipiranga), que será reaberto no próximo mês. Os curadores da exposição fizeram um levantamento minucioso não só da origem e desenvolvimento do gigantesco óleo pintado por Pedro Américo (415 x 760 cm) como dos antecedentes dessa obra que já tinha destino certo quando foi concebida: ocupar o Museu do Ipiranga, que estava sendo construído desde 1885 – e foi entregue dez anos depois.

O doutor em história da arte Carlos Lima Júnior, a antropóloga Lilia Schwarcz e a professora de Artes Lúcia Klück Stumpf, curadores. Foto: Taba Benedicto/Estadão

O quadro, finalizado em 1888, um ano antes da Proclamação da República, causou polêmica, segundo os três curadores da exposição e autores do livro, a antropóloga Lilia Schwarcz, a professora de Artes Lúcia Klück Stumpf e o doutor em história da arte Carlos Lima Júnior.  O escritor republicano Raul Pompeia, por exemplo, desdenhou da visão histórica do quadro de Pedro Américo, segundo eles. Os curadores registram que Pompeia acusou d. Pedro I, chamado por ele de “príncipe estrangeiro”, de ter roubado à nação a iniciativa da Independência – daí a palavra “sequestro” acoplada ao título do livro. Como o povo ficou de fora do ‘Grito’ de Pedro Américo – com a exceção do personagem popular do carreiro com o torso desnudo, que passa no primeiro plano, indiferente à cena – Raul Pompeia notou, em 1922, que as figuras à esquerda do quadro só parecem observar o episódio heroico na epopeia de Pedro Américo, sem direito à manifestação.

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Charge de Jaguar publicada no 'Pasquim' alfineta um dos símbolos da Independência da República Foto: Taba Benedicto/Estadão

Certas liberdades tomadas pelo pintor, observam os curadores da mostra, devem ter resultado de alguma imposição da Comissão do Ipiranga que encomendou a pintura. Na exposição se encontra a reprodução de um primeiro estudo para o quadro, hoje pertencente à coleção Fadel, do Rio. Ele mostra que, no lugar do carreiro, existiam dois personagens de pele escura e enxada nas mãos – a tela foi idealizada entre 1886 e 1888, em meio aos debates sobre o fim da escravidão no Brasil, além das pressões da população negra e escravizada. Lilia Schwarcz, biógrafa do escritor negro Lima Barreto, lembra que, nas comemorações do centenário da Independência, o escritor condenou o abuso dos “rituais vistosos” que o presidente Epitácio Pessoa usou para “distrair” a população e escamotear o racismo no Brasil. Barreto, complementa, era contra o espírito ufanista que tomou conta dos brasileiros em 1922. Cinquenta anos depois, em plena ditadura, o regime, segundo os curadores, tentou, no Sesquicentenário da Independência, em 1972, um novo “sequestro” da Independência. A exposição chega até os dias atuais, mostrando como o ufanismo virou motivo de piada para cartunistas e pintores como Daniel Lannes, que assina a capa do livro (nele, o carreiro de Américo, de espada em punho e pintado de vermelho, ganha protagonismo).

Tela de Daniel Lannes que ilustra capa do livro de Lilia Schwarcz, obra está exposta no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, até outubro. Foto: Paço Imperial
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Agora, a disputa entre o governo federal e o estadual paulista – traduzida por uma peça publicitária da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República – alardeia a entrega do novo Museu do Ipiranga em setembro ao custo de R$ 160 milhões de investimento. Os curadores da mostra notam que o quadro reproduzido na peça não é o de Pedro Américo, mas uma tela do francês François-René Moreaux (1807-1860), Proclamação da Independência (1844), estampada no livro. Nela, o imperador, segurando um chapéu bicorne, saúda os populares que não se parecem em nada com brasileiros. “Os garotos do primeiro plano estão mais para napolitanos”, comenta Lilia Schwarcz. Detalhe: como na tela de Pedro Américo, concluída 44 anos depois, d. Pedro I aparece montado num cavalo, o que não corresponde à verdade histórica, diz ela. É mais certo que fosse um burro, mas não pegava bem representar o imperador montado num burrico.  O livro termina com uma menção à motociata de Bolsonaro, em 16 de abril deste ano. Inspirada na tela de Moreaux, ela teve, no lugar de cavalos, motocicletas potentes, e, substituindo os personagens da tela do francês, seguidores do presidente nas mesmíssimas posições (a comparação impressiona).

Uma reprodução do 'Grito'de Pedro Américo, que pertence ao acervo do Museu do Ipiranga Foto: Acervo Estadão

Os festejos do bicentenário da Independência, segundo os curadores da mostra, associam, no manual de identidade visual, o quadro de Pedro Américo à figura popular do imperador d. Pedro II, e não d. Pedro I. “Uma homenagem à monarquia como regime, uma volta ao período de estabilidade do Segundo Reinado”, interpretam os curadores. Pedro I assume, enfim, o protagonismo da independência. “Nela não há lugar para indígenas, negros escravizados e mulheres”, conclui o livro O Sequestro da Independência.

O título da exposição, que marca o lançamento do livro homônimo O Sequestro da Independência, já diz a que veio: inaugurada amanhã, 13, na Galeria 132, com curadoria dos três autores da obra, a mostra discute como foi criado o “mito” do 7 de Setembro, tomando como peça central o famoso quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, Independência ou Morte (1888), atração maior do Museu Paulista da USP (Ipiranga), que será reaberto no próximo mês. Os curadores da exposição fizeram um levantamento minucioso não só da origem e desenvolvimento do gigantesco óleo pintado por Pedro Américo (415 x 760 cm) como dos antecedentes dessa obra que já tinha destino certo quando foi concebida: ocupar o Museu do Ipiranga, que estava sendo construído desde 1885 – e foi entregue dez anos depois.

O doutor em história da arte Carlos Lima Júnior, a antropóloga Lilia Schwarcz e a professora de Artes Lúcia Klück Stumpf, curadores. Foto: Taba Benedicto/Estadão

O quadro, finalizado em 1888, um ano antes da Proclamação da República, causou polêmica, segundo os três curadores da exposição e autores do livro, a antropóloga Lilia Schwarcz, a professora de Artes Lúcia Klück Stumpf e o doutor em história da arte Carlos Lima Júnior.  O escritor republicano Raul Pompeia, por exemplo, desdenhou da visão histórica do quadro de Pedro Américo, segundo eles. Os curadores registram que Pompeia acusou d. Pedro I, chamado por ele de “príncipe estrangeiro”, de ter roubado à nação a iniciativa da Independência – daí a palavra “sequestro” acoplada ao título do livro. Como o povo ficou de fora do ‘Grito’ de Pedro Américo – com a exceção do personagem popular do carreiro com o torso desnudo, que passa no primeiro plano, indiferente à cena – Raul Pompeia notou, em 1922, que as figuras à esquerda do quadro só parecem observar o episódio heroico na epopeia de Pedro Américo, sem direito à manifestação.

Charge de Jaguar publicada no 'Pasquim' alfineta um dos símbolos da Independência da República Foto: Taba Benedicto/Estadão

Certas liberdades tomadas pelo pintor, observam os curadores da mostra, devem ter resultado de alguma imposição da Comissão do Ipiranga que encomendou a pintura. Na exposição se encontra a reprodução de um primeiro estudo para o quadro, hoje pertencente à coleção Fadel, do Rio. Ele mostra que, no lugar do carreiro, existiam dois personagens de pele escura e enxada nas mãos – a tela foi idealizada entre 1886 e 1888, em meio aos debates sobre o fim da escravidão no Brasil, além das pressões da população negra e escravizada. Lilia Schwarcz, biógrafa do escritor negro Lima Barreto, lembra que, nas comemorações do centenário da Independência, o escritor condenou o abuso dos “rituais vistosos” que o presidente Epitácio Pessoa usou para “distrair” a população e escamotear o racismo no Brasil. Barreto, complementa, era contra o espírito ufanista que tomou conta dos brasileiros em 1922. Cinquenta anos depois, em plena ditadura, o regime, segundo os curadores, tentou, no Sesquicentenário da Independência, em 1972, um novo “sequestro” da Independência. A exposição chega até os dias atuais, mostrando como o ufanismo virou motivo de piada para cartunistas e pintores como Daniel Lannes, que assina a capa do livro (nele, o carreiro de Américo, de espada em punho e pintado de vermelho, ganha protagonismo).

Tela de Daniel Lannes que ilustra capa do livro de Lilia Schwarcz, obra está exposta no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, até outubro. Foto: Paço Imperial

Agora, a disputa entre o governo federal e o estadual paulista – traduzida por uma peça publicitária da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República – alardeia a entrega do novo Museu do Ipiranga em setembro ao custo de R$ 160 milhões de investimento. Os curadores da mostra notam que o quadro reproduzido na peça não é o de Pedro Américo, mas uma tela do francês François-René Moreaux (1807-1860), Proclamação da Independência (1844), estampada no livro. Nela, o imperador, segurando um chapéu bicorne, saúda os populares que não se parecem em nada com brasileiros. “Os garotos do primeiro plano estão mais para napolitanos”, comenta Lilia Schwarcz. Detalhe: como na tela de Pedro Américo, concluída 44 anos depois, d. Pedro I aparece montado num cavalo, o que não corresponde à verdade histórica, diz ela. É mais certo que fosse um burro, mas não pegava bem representar o imperador montado num burrico.  O livro termina com uma menção à motociata de Bolsonaro, em 16 de abril deste ano. Inspirada na tela de Moreaux, ela teve, no lugar de cavalos, motocicletas potentes, e, substituindo os personagens da tela do francês, seguidores do presidente nas mesmíssimas posições (a comparação impressiona).

Uma reprodução do 'Grito'de Pedro Américo, que pertence ao acervo do Museu do Ipiranga Foto: Acervo Estadão

Os festejos do bicentenário da Independência, segundo os curadores da mostra, associam, no manual de identidade visual, o quadro de Pedro Américo à figura popular do imperador d. Pedro II, e não d. Pedro I. “Uma homenagem à monarquia como regime, uma volta ao período de estabilidade do Segundo Reinado”, interpretam os curadores. Pedro I assume, enfim, o protagonismo da independência. “Nela não há lugar para indígenas, negros escravizados e mulheres”, conclui o livro O Sequestro da Independência.

O título da exposição, que marca o lançamento do livro homônimo O Sequestro da Independência, já diz a que veio: inaugurada amanhã, 13, na Galeria 132, com curadoria dos três autores da obra, a mostra discute como foi criado o “mito” do 7 de Setembro, tomando como peça central o famoso quadro de Pedro Américo sobre o Grito do Ipiranga, Independência ou Morte (1888), atração maior do Museu Paulista da USP (Ipiranga), que será reaberto no próximo mês. Os curadores da exposição fizeram um levantamento minucioso não só da origem e desenvolvimento do gigantesco óleo pintado por Pedro Américo (415 x 760 cm) como dos antecedentes dessa obra que já tinha destino certo quando foi concebida: ocupar o Museu do Ipiranga, que estava sendo construído desde 1885 – e foi entregue dez anos depois.

O doutor em história da arte Carlos Lima Júnior, a antropóloga Lilia Schwarcz e a professora de Artes Lúcia Klück Stumpf, curadores. Foto: Taba Benedicto/Estadão

O quadro, finalizado em 1888, um ano antes da Proclamação da República, causou polêmica, segundo os três curadores da exposição e autores do livro, a antropóloga Lilia Schwarcz, a professora de Artes Lúcia Klück Stumpf e o doutor em história da arte Carlos Lima Júnior.  O escritor republicano Raul Pompeia, por exemplo, desdenhou da visão histórica do quadro de Pedro Américo, segundo eles. Os curadores registram que Pompeia acusou d. Pedro I, chamado por ele de “príncipe estrangeiro”, de ter roubado à nação a iniciativa da Independência – daí a palavra “sequestro” acoplada ao título do livro. Como o povo ficou de fora do ‘Grito’ de Pedro Américo – com a exceção do personagem popular do carreiro com o torso desnudo, que passa no primeiro plano, indiferente à cena – Raul Pompeia notou, em 1922, que as figuras à esquerda do quadro só parecem observar o episódio heroico na epopeia de Pedro Américo, sem direito à manifestação.

Charge de Jaguar publicada no 'Pasquim' alfineta um dos símbolos da Independência da República Foto: Taba Benedicto/Estadão

Certas liberdades tomadas pelo pintor, observam os curadores da mostra, devem ter resultado de alguma imposição da Comissão do Ipiranga que encomendou a pintura. Na exposição se encontra a reprodução de um primeiro estudo para o quadro, hoje pertencente à coleção Fadel, do Rio. Ele mostra que, no lugar do carreiro, existiam dois personagens de pele escura e enxada nas mãos – a tela foi idealizada entre 1886 e 1888, em meio aos debates sobre o fim da escravidão no Brasil, além das pressões da população negra e escravizada. Lilia Schwarcz, biógrafa do escritor negro Lima Barreto, lembra que, nas comemorações do centenário da Independência, o escritor condenou o abuso dos “rituais vistosos” que o presidente Epitácio Pessoa usou para “distrair” a população e escamotear o racismo no Brasil. Barreto, complementa, era contra o espírito ufanista que tomou conta dos brasileiros em 1922. Cinquenta anos depois, em plena ditadura, o regime, segundo os curadores, tentou, no Sesquicentenário da Independência, em 1972, um novo “sequestro” da Independência. A exposição chega até os dias atuais, mostrando como o ufanismo virou motivo de piada para cartunistas e pintores como Daniel Lannes, que assina a capa do livro (nele, o carreiro de Américo, de espada em punho e pintado de vermelho, ganha protagonismo).

Tela de Daniel Lannes que ilustra capa do livro de Lilia Schwarcz, obra está exposta no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, até outubro. Foto: Paço Imperial

Agora, a disputa entre o governo federal e o estadual paulista – traduzida por uma peça publicitária da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República – alardeia a entrega do novo Museu do Ipiranga em setembro ao custo de R$ 160 milhões de investimento. Os curadores da mostra notam que o quadro reproduzido na peça não é o de Pedro Américo, mas uma tela do francês François-René Moreaux (1807-1860), Proclamação da Independência (1844), estampada no livro. Nela, o imperador, segurando um chapéu bicorne, saúda os populares que não se parecem em nada com brasileiros. “Os garotos do primeiro plano estão mais para napolitanos”, comenta Lilia Schwarcz. Detalhe: como na tela de Pedro Américo, concluída 44 anos depois, d. Pedro I aparece montado num cavalo, o que não corresponde à verdade histórica, diz ela. É mais certo que fosse um burro, mas não pegava bem representar o imperador montado num burrico.  O livro termina com uma menção à motociata de Bolsonaro, em 16 de abril deste ano. Inspirada na tela de Moreaux, ela teve, no lugar de cavalos, motocicletas potentes, e, substituindo os personagens da tela do francês, seguidores do presidente nas mesmíssimas posições (a comparação impressiona).

Uma reprodução do 'Grito'de Pedro Américo, que pertence ao acervo do Museu do Ipiranga Foto: Acervo Estadão

Os festejos do bicentenário da Independência, segundo os curadores da mostra, associam, no manual de identidade visual, o quadro de Pedro Américo à figura popular do imperador d. Pedro II, e não d. Pedro I. “Uma homenagem à monarquia como regime, uma volta ao período de estabilidade do Segundo Reinado”, interpretam os curadores. Pedro I assume, enfim, o protagonismo da independência. “Nela não há lugar para indígenas, negros escravizados e mulheres”, conclui o livro O Sequestro da Independência.

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