“Quem começou a fazer arte a partir de 1964 teve apenas duas opções”, diz Cildo Meireles. “Ou ia fazer um trabalho ligado à realidade com uma visão crítica dela, correndo o risco de ser tachado de subversivo, ou então aceitava as regras impostas.” O depoimento do artista é para um vídeo presente na exposição AI-5 50 Anos – Ainda Não Terminou de Acabar, que está em cartaz no Instituto Tomie Ohtake. A mostra tem como objetivo resgatar obras e apresenta os efeitos, na arte, dos acontecimentos políticos do período de ditadura no Brasil.
O foco principal é a área de visuais, sem deixar outras manifestações culturais de fora. “A censura no teatro, na música e no cinema tiveram uma história mais midiática e com maior alcance popular”, explica o curador do Tomie, Paulo Miyada. “Isso não significa que a censura nas artes visuais não aconteceu ou não foi grave. Invertemos a hierarquia.”
A ideia para a exposição veio de debates realizados pelo instituto no ano passado, quando o tema da ditadura surgiu entre os convidados. “Decidimos que precisávamos falar de AI-5. Quisemos garantir uma lembrança forte”, afirma Paulo. A mostra se junta aos núcleos da exposição Histórias Afro-Atlânticas, em parceria com o Masp, que estão no Tomie, que falam justamente sobre resistência. “O instituto não está muito leve, mas foi uma escolha. Temos de abrir o campo da arte como um lugar de reflexão histórica.”
Inicialmente, a ideia de Miyada era pesquisar obras que não aconteceram, foram destruídas ou que tiveram sua circulação impedida pela censura militar. “A parte histórica se avolumou e exigiu uma abrangência. É quase como uma dívida.” Para dar conta de um tema tão vasto, o curador decidiu dividir a exposição em seis núcleos, que se relacionam com a violência do decreto do Ato Institucional Número 5, em 1968.
O primeiro núcleo trabalha a ideia de opinião no período entre 64 e 68; o segundo traz as consequências imediatas do AI-5 até o anos 1970; o terceiro traz a chamada “geração de guerrilha”, com obras de artistas como Antonio Manuel e Artur Barrio; o quarto traz a produção “marginal” experimental; o quinto tem críticas ao desenvolvimentismo do ideal de país promovido pela ditadura; e o sexto questiona a redemocratização na década de 1980.
Para artistas da época, que são lembrados na mostra, a retrospectiva histórica é fundamental. “Só a arte resiste à morte e à tragédia”, diz Anna Maria Maiolino. “A exposição é importantíssima porque vem recordar aqueles momentos e também, de certa maneira, exorciza, através das metáforas da arte e com documentações, aqueles tempos difíceis.”
O artista Carlos Zílio tem na exposição uma série de desenhos que fez ao ser preso na década de 1960. “Não têm apenas uma dimensão pessoal”, ele afirma. “São desenhos feitos no cotidiano do isolamento. Tem um testemunho do período.” Para Zílio, a mostra consegue expor uma vivência de época. “Muita gente não viveu e não sabe do obscurantismo, da repressão e do aspecto de regressão na construção da democracia.”
Segundo Paulo Miyada, a exposição surgiu de uma preocupação com o que ele define como “nostalgia do autoritarismo”. Por conta do tema sensível, o instituto não teve patrocínio de empresas para a mostra. A produção do catálogo será viabilizada a partir de doações de pessoas físicas.
Mostra no Tomie Ohtake traz casos atuais e produção coletiva inédita
O fato de a exposição AI-5 50 Anos – Ainda Não Terminou de Acabar ser realizada agora não é uma tentativa de traçar um paralelo direto entre 1968 e 2018, segundo o curador do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada. “A história não funciona por reproduções idênticas, mas o que acontece é o custo de tudo o que houve com o AI-5.”
Para contextualizar a mostra, o curador traz um depoimento da dramaturga britânica Jo Clifford sobre o caso de censura da montagem da sua peça O Evangelho de Jesus, Rainha do Céu, que traz o Messias reencarnado como uma transexual, no ano passado, em São Paulo. Em comparação, Miyada cita o caso de uma obra de Décio Bar, de 1965, que foi censurada pela ditadura e que também é resgatada na exposição. “Não havia nenhuma crítica aos militares, mas havia uma sensualidade. Foi uma censura moral.”
Como parte da exposição, foi comissionada uma obra coletiva de um grupo de artistas jovens, com nomes como Ana Prata e Bruno Dunley. “Os artistas não são necessariamente amigos ou compartilham as mesmas premissas estéticas, assim como a geração de 64”, explica Paulo. “Eles não tinham o discurso político como primeira linguagem, mas acharam importante trabalhar juntos e trocar ideias sobre o momento.”
Além de todas as obras, AI-5 50 Anos traz ainda textos e documentos recentes que fazem alusão aos efeitos da ditadura, assinados por nomes como o crítico Mario Pedrosa e a historiadora Aracy Amaral.
A história do presidente do Instituto Tomie Ohtake, Ricardo Ohtake, também é lembrada. “Há pouco tempo ele descobriu que foi impedido de voltar à Universidade de São Paulo como professor porque havia cartas dos reitores, indicados pela ditadura, que proibiam sua contratação, por ele ter sido acusado de ser subversivo”, explica ainda Miyada.
“As pessoas acham que a história não é importante”, diz Ricardo. “Eu vivi esse período e sei que foi difícil. Conheci vários artistas que viveram e foram perseguidos.”