Muitos anos antes que a palavra reciclagem fosse incorporada ao vocabulário cotidiano das grandes cidades, o arquiteto catalão Antoni Gaudí (1852-1926) já pedia aos operários construtores do Parque Güell, em Barcelona, que recolhessem pelo caminho cacos de cerâmica e fragmentos de objetos descartados pela população da cidade para montar esse seu grande mosaico público. Foi com os restos da sociedade catalã que Gaudí inventou uma técnica decorativa conhecida como trencadís (do catalão trencat, quebrado, por usar cacos). Ela marcou definitivamente o modernismo catalão, movimento que, entre 1880 e 1930, renovou a arquitetura, o design, a pintura e a escultura.
Gaudí: Barcelona 1900, a exposição que o Instituto Tomie Ohtake abre amanhã, 19, comemorando seus 15 anos de existência, é um pouco seu trencadís estilístico, testamento estético que sintetiza a obra desse sonhador, empenhado em trazer para a terra a luz celestial filtrada por seu monumental – e inacabado – templo da Sagrada Família, cuja conclusão está prevista para 2026. Não se pode, a rigor, dizer que seja um templo representativo do modernismo catalão, até mesmo porque há nele reminiscências de estilos do passado, como aponta o curador Raimon Ramis, historiador da Universidade Autônoma de Barcelona que, desde 2013, mora no Chile, onde orienta a construção da capela de Santa Maria de los Ángeles de Rancagua, idealizada por Gaudí em 1922 e única obra do arquiteto fora da Espanha.
“Gaudí esteve, claro, ligado ao modernismo catalão, mas algo mudou radicalmente em sua concepção arquitetônica para dialogar menos com estilos e mais com as formas orgânicas”, diz Ramis, mostrando como as colunas arborescentes inclinadas e as abóbadas baseadas em paraboloides da Sagrada Família buscam imitar formas que estão na natureza – e trazem em sua matemática rigorosa as marcas da geometria sagrada, uma vez que Gaudí, católico fervoroso, rejeitou as formas do gótico (por não refletir a natureza), projetando 18 torres –12 para os apóstolos, uma para Jesus, outra para a Virgem e mais quatro para os evangelistas. Por ser considerada sua obra-prima, é a mais representada na mostra (por meio de maquetes).
A mostra é dividida em dois núcleos: no primeiro estão os artistas contemporâneos de Gaudí que ajudaram a construir o modernismo catalão, pintores como Isidre Nonell, Ramón Casas e Santiago Rusiñol, influenciados pelos impressionistas franceses, além de escultores como Josep Llimona i Bruguera, que também passou por Paris e foi marcado pela visão de Rodin. No segundo núcleo estão as obras de Gaudí, representadas por reproduções fotográficas, maquetes e estudos de época para o desenvolvimento de seus arcos parabólicos catenários aplicados à arquitetura.
O mundo natural foi, enfim, não só modelo para Gaudí, como se vê na mostra. O curador aponta uma paisagem crepuscular assinada pelo pintor Modest Urgell i Inglada, claramente derivada da pintura romântica, para provar como todo o modernismo catalão foi marcado pela tentativa de reproduzir a natureza, seja na tela, nos desenhos de móveis ou nos ladrilhos usados por Gaudí para decorar a parte externa de seus projetos (há um exemplo na mostra, que reúne 71 objetos).
Mecenas. Os curadores da exposição de Gaudí, Raimon Ramis e Pepe Serra Villalba, consideraram oportuna a inclusão, na mostra, de alguns obras produzidas durante a eclosão do movimento modernista catalão para situar o contexto em que viveu o arquiteto, autor de obras que levam milhares de turistas a Barcelona todos os anos, como o palácio, os pavilhões e o Parque Güell, a Casa Calvet, a Casa Batlló e a Casa Milà, entre outras.
Assim, o visitante é recebido na primeira sala por uma pintura de matriz impressionista, de Modest Urgell, passa por um busto em mármore de Josep Llimona, considerado o principal escultor do modernismo catalão e chega aos móveis artesanais que decoravam as casas dos mecenas do movimento, como Eusebi Güell (1846-1918), amigo íntimo de Gaudí, um conde culto e refinado que encomendou algumas das principais obras ao arquiteto. Com o avanço da indústria espanhola na virada do século, outros mecenas do modernismo catalão seguiram o exemplo de Güell. A Casa Calvet, construída entre 1898 e 1900, por exemplo, foi concebida tanto como residência (os andares superiores) como sede do negócio do industrial têxtil Pedro Mártis Calvet. Outro mecenas foi Josep Batlló Casanovas, também do ramo têxtil, que bancou a Casa Batlló, prova do crescimento de Barcelona como polo industrial maior na passagem do século 19 para o 20.
Nesse primeiro núcleo, destacam-se, além das pinturas, peças artesanais de ferro encomendadas por Gaudí para os portões de alguns edifícios projetados por ele, mas chama a atenção a riqueza de detalhes dos móveis desenhados pelo arquiteto, que rompeu com o estilo Pompadour para projetar as primeiras cadeiras ergonômicas, que mais tarde tornariam Mackintosh famoso. Invariavelmente, tanto os móveis projetados para a Casa Calvet como para a Casa Batlló seguem a premissa orgânica: o que é bom para a coluna dos animais é também para o homem. Uma cadeira com o assento curvo e madeira clara é um convite irresistível não só para os olhos como para a parte sul do corpo.
“Ele elimina o supérfluo e carrega tanto o prédio como a decoração da mobília com um simbolismo de caráter místico, religioso”, observa o curador Raimon Ramis. Para construir colunas ou escadas, Gaudí não hesita em adotar como referência a estrutura óssea de animais, como na casa Batlló, cuja escadaria principal replica a coluna vertebral de um dinossauro.
“O que importava, na época do modernismo catalão, era a ostentação”, observa o curador Raimon Ramis. “Daí que os burgueses não se importavam com as extravagâncias do arquiteto”, conclui.
Exposição resume carreira do arquiteto Gaudí
GAUDÍ:BARCELONA 1900 Instituto Tomie Ohtake. Avenida Brig. Faria Lima, 201, tel. 2245-1900. 3ª a dom., 11h/20h. R$ 6 a R$ 12. Até 5/2/2017.