Foi em 1977, quando viajou pela Índia e o Nepal para estudar técnicas de produção de papel artesanal, que o pintor paraibano Antonio Dias (1944-2018) conheceu a marchande Raquel Arnaud. Surgiu deste encontro uma bela amizade e também a primeira exposição (1978) que Dias fez das obras que têm como suporte este papel, integrado às peças pela textura e mistura de pigmentos. Naquela época, Raquel estava à frente da galeria Arte Global, antes de criar seu Gabinete de Arte e, por fim, a galeria que leva seu nome. Idealizadora do Instituto de Arte Contemporânea (IAC), fundado em 1997 para preservar documentos e difundir a obra de artistas construtivistas, ela recebeu esta semana uma doação que veio enriquecer ainda mais o acervo da entidade, responsável pela preservação da obra de artistas como Amilcar de Castro, Iole de Freitas, Sérgio Camargo e Willys de Castro.
Os 5 mil documentos recebidos pelo IAC da família de Antonio Dias ainda devem revelar muitas surpresas a respeito da trajetória e do processo de trabalho do pintor – a equipe do IAC está apenas começando o projeto de higienização e catalogação. Mas, de imediato, chama a atenção o registro fotográfico da passagem de Dias pelo Nepal feito por ele. Entre os documentos estão diapositivos que atestam como surgiram os papéis nepaleses, até hoje considerados um dos momentos culminantes da carreira do artista. Ele desenvolveu esses trabalhos com a ajuda de tapeceiros tibetanos, misturando o conhecimento destes artesãos com sua ousadia moderna, ao recortar uma bandeira hasteada no campo onde o papel era fabricado e transformando-a num de seus signos imediatamente reconhecíveis. Naturalmente, essa marca registrada sofreu transformações, mas permaneceu como matriz a bandeira do campo nepalês.
Por coincidência, a bandeira recortada foi associada a uma histórica série de Dias, The Illustration of Art , cujo projeto deve estar entre os documentos, considerando alguns rabiscos encontrados na coleção agora entregue ao IAC. Outro fragmento que chama a atenção entre os papéis são fitas de Moebius que Dias usou na série Oriente/Ocidente, exatamente no sentido do modelo do matemático e astrônomo alemão, um objeto não orientável, ou seja, impossível de ser desconstruído para saber o que está dentro e o que está fora, qual o ponto de partida e o de chegada. Dias era fascinado pelo enigma de Moebius, pelo binômio exclusão/inclusão. Outro documento importante é um exemplar do livro-instalação Galáxias, que Dias desenvolveu nos anos 1970 inspirado no poema homônimo do poeta concreto Haroldo de Campos (1929-2003).
Para comemorar a chegada da coleção ao IAC, a marchande Raquel Arnaud prepara uma exposição do material que será aberta em setembro, com curadoria de Gustavo Motta como parte da programação da Bienal de São Paulo. Nela, estará o protótipo do objeto usado em Satélites (2002), forma circular que lembra uma noz fechada e, com certeza, um outro trabalho mais antigo, o rosto com os olhos vazados de um político recortado da capa da revista Newsweek de maio de 1973 e que integra a série The Illustration of Art.
Por certo, são trabalhos políticos – Dias pertence à geração 1960, que se manifestou contra a ditadura por meio da arte, fato que levou o crítico italiano Achille Bonito Oliva, criador do termo transvanguarda, a definir as obras do pintor como “lugares de confluência, onde pensar e agir, projeto e realização, se entrelaçam concretamente para fundar um sistema, não apenas de formas, mas também de comportamentos sociais”. E provocação não faltou à obra de Dias, desde as fálicas formas da assemblage Dans Mon Jardin (1967) ao pênis em forma de tubo de ensaio e cheio de líquido vermelho (Todas as Cores dos Homens, 1995), passando por um bumbum de néon intitulado O Poeta Pornógrafo (1973). Como disse o crítico Paulo Herkenhoff, “a obra de Dias é um diário político, no qual o artista reage a fatos concretos, distante de qualquer vassalagem ideológica”. Sua meta sempre foi a de forçar os limites da arte.
Com o acervo de documentos de Antonio Dias, sobe para 13 o número de artistas que estão na coleção do IAC, cuja equipe se resume a um time de nove pessoas. Entre os três que têm mais peças lá guardadas, estão Jorge Wilheim, com 14 mil documentos, Iole de Freitas (12 mil) e Sérgio Camargo (9 mil). O IAC, segundo Raquel Arnaud, deve fechar o ano com 100 mil documentos sob sua guarda no prédio projetado pelo arquiteto e cenógrafo Felipe Crescenti.
Apesar de emprestar obras para exposições em instituições como o MoMA de Nova York e o Museu de Arte Contemporânea de Serralves, no Porto, em Portugal, o instituto, segundo Raquel Arnaud sofreu muito na pandemia. Com o instituto fechado durante todo o ano de 2020, os patrocinadores e doadores “recuaram”. Mas ela, que construiu o IAC na Avenida Doutor Arnaldo com os próprios recursos, sabe que eles voltarão.