Invenção do terror que emancipa


Slavoj Zizek usa textos de Mao Tsé-tung e Robespierre para discutir a potência política do inumano

Por Vladimir Safatle

Há algum tempo, vemos as livrarias serem palcos de um assalto conservador à cultura. Um desavisado poderia imaginar estar em plena época da Guerra Fria, haja vista a quantidade de livros de propaganda anticomunista, de revisionismo histórico e de divulgação de ideologia conservadora que assolam as prateleiras de filosofia e ciências humanas. Estudos sobre o "sanguinário" Lenin convivem harmoniosamente com elogios ao grande passado imperial da nação brasileira, análises sobre a luta milenar entre os "terroristas" e os defensores da modernidade esclarecida e críticas conservadoras à solidão ontológica do homem contemporâneo com direito a citações de Ratzinger. O conjunto pode parecer heteróclito mas, infelizmente, não é. Eles são peças de um jogo de xadrez cujo objetivo consiste em impor uma extensa agenda conservadora no campo da reflexão e tirar de cena discussões fundamentais para a crítica cultural e sociopolítica produzidas no calor das lutas e revoluções que fizeram a história do século 20. Nesse sentido, a tradução, pela Jorge Zahar, de duas coletâneas organizadas por Slavoj Zizek com textos de Mao Tsé-tung (Sobre a Prática e a Contradição) e de Robespierre (Virtude e Terror, tradução de José Maurício Gradel, 236 págs., R$ 39,90) é extremamente bem-vinda. Figura maior da renovação do pensamento de esquerda, com Alain Badiou, Giorgio Agamben, Ernesto Laclau e Judith Butler, Zizek conseguiu renovar as articulações entre psicanálise e marxismo através de recursos sistemáticos à Jacques Lacan e às figuras maiores do idealismo alemão (Hegel, Schelling, além de uma versão peculiar do sujeito transcendental kantiano). Esse projeto, traçado desde seu O Mais Sublime dos Histéricos: Hegel com Lacan (Zahar), publicado entre nós no início dos anos 90, foi sendo paulatinamente aprofundado até chegar à maturidade com seus dois livros principais: The Ticklish Subject e Visão em Paralaxe (Boitempo). Nesse trajeto, Zizek procurou tirar as consequências de seu projeto filosófico-psicanalítico no campo político. Operação feita por meio da reflexão sobre os problemas legados pela noção de "política revolucionária" em textos de Lenin, Trotsky, Lukács e, agora, Mao e Robespierre lidos à luz da noção de "ato analítico", de Lacan. Assim, longe de ser uma simples retomada de tais textos e de conceitos como: crítica da democracia formal, ditadura do proletariado, luta de classes, antagonismo social, violência legítima, Zizek procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito. Podemos dizer isso porque se trata de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo. Ou seja, Zizek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do "humano" e cujos interesses não permitiam ser compreendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena do político uma subjetividade "inumana" por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira "terrorista" os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma. Assim, se Zizek pode olhar para Robespierre e dizer que "o passado terrorista deve ser aceito como nosso", não se trata de fazer apologia voluntarista da violência política, mas de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa? Diga-se de passagem, um problema apontado de maneira clara pela primeira vez por Hegel já em suas leituras sobre (e a coincidência não é aqui casual) o terror jacobino. A sagacidade de Zizek, apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistribuição de riquezas e de generalização de direitos. Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se este impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com consequências políticas nefastas é, no fundo, dirá Zizek, maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia. Princípios que não têm força para impedir, por exemplo, processos como a generalização do estado de exceção como prática "normal" de governo. Maneira de, no limite, reduzir a política a uma "assustadora reunião de homens assustados" unidos não mais pela possibilidade de "reinventar a ordem da vida cotidiana", mas apenas pelo medo. Medo em relação ao crime, ao terrorismo, aos imigrantes, ao Estado excessivo com seus impostos, às catástrofes ecológicas. É claro que há uma série de questões em aberto no interior do projeto de Zizek. Por exemplo, há momentos dos textos onde ocorre certa sobreposição problemática entre violência popular contra o Estado com seu aparato legal e violência estatal, mesmo que esse Estado seja fruto de processos revolucionários. No entanto, há articulações extremamente bem-sucedidas, como a crítica à peculiar ruptura permanente da Revolução Cultural de Mao por ela ter, no fundo, preparado o caminho para a transformação da China em plataforma principal do capitalismo contemporâneo, desterritorializado e autotransgressor. Nesses e em vários outros momentos, Zizek demonstra até onde vai sua capacidade de apreender a complexidade da aposta política na "reinvenção de um terror que emancipa". Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, é autor de Cinismo e Falência da Crítica (Boitempo) e A Paixão do Negativo: Lacan e A Dialética (Unesp)

Há algum tempo, vemos as livrarias serem palcos de um assalto conservador à cultura. Um desavisado poderia imaginar estar em plena época da Guerra Fria, haja vista a quantidade de livros de propaganda anticomunista, de revisionismo histórico e de divulgação de ideologia conservadora que assolam as prateleiras de filosofia e ciências humanas. Estudos sobre o "sanguinário" Lenin convivem harmoniosamente com elogios ao grande passado imperial da nação brasileira, análises sobre a luta milenar entre os "terroristas" e os defensores da modernidade esclarecida e críticas conservadoras à solidão ontológica do homem contemporâneo com direito a citações de Ratzinger. O conjunto pode parecer heteróclito mas, infelizmente, não é. Eles são peças de um jogo de xadrez cujo objetivo consiste em impor uma extensa agenda conservadora no campo da reflexão e tirar de cena discussões fundamentais para a crítica cultural e sociopolítica produzidas no calor das lutas e revoluções que fizeram a história do século 20. Nesse sentido, a tradução, pela Jorge Zahar, de duas coletâneas organizadas por Slavoj Zizek com textos de Mao Tsé-tung (Sobre a Prática e a Contradição) e de Robespierre (Virtude e Terror, tradução de José Maurício Gradel, 236 págs., R$ 39,90) é extremamente bem-vinda. Figura maior da renovação do pensamento de esquerda, com Alain Badiou, Giorgio Agamben, Ernesto Laclau e Judith Butler, Zizek conseguiu renovar as articulações entre psicanálise e marxismo através de recursos sistemáticos à Jacques Lacan e às figuras maiores do idealismo alemão (Hegel, Schelling, além de uma versão peculiar do sujeito transcendental kantiano). Esse projeto, traçado desde seu O Mais Sublime dos Histéricos: Hegel com Lacan (Zahar), publicado entre nós no início dos anos 90, foi sendo paulatinamente aprofundado até chegar à maturidade com seus dois livros principais: The Ticklish Subject e Visão em Paralaxe (Boitempo). Nesse trajeto, Zizek procurou tirar as consequências de seu projeto filosófico-psicanalítico no campo político. Operação feita por meio da reflexão sobre os problemas legados pela noção de "política revolucionária" em textos de Lenin, Trotsky, Lukács e, agora, Mao e Robespierre lidos à luz da noção de "ato analítico", de Lacan. Assim, longe de ser uma simples retomada de tais textos e de conceitos como: crítica da democracia formal, ditadura do proletariado, luta de classes, antagonismo social, violência legítima, Zizek procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito. Podemos dizer isso porque se trata de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo. Ou seja, Zizek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do "humano" e cujos interesses não permitiam ser compreendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena do político uma subjetividade "inumana" por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira "terrorista" os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma. Assim, se Zizek pode olhar para Robespierre e dizer que "o passado terrorista deve ser aceito como nosso", não se trata de fazer apologia voluntarista da violência política, mas de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa? Diga-se de passagem, um problema apontado de maneira clara pela primeira vez por Hegel já em suas leituras sobre (e a coincidência não é aqui casual) o terror jacobino. A sagacidade de Zizek, apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistribuição de riquezas e de generalização de direitos. Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se este impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com consequências políticas nefastas é, no fundo, dirá Zizek, maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia. Princípios que não têm força para impedir, por exemplo, processos como a generalização do estado de exceção como prática "normal" de governo. Maneira de, no limite, reduzir a política a uma "assustadora reunião de homens assustados" unidos não mais pela possibilidade de "reinventar a ordem da vida cotidiana", mas apenas pelo medo. Medo em relação ao crime, ao terrorismo, aos imigrantes, ao Estado excessivo com seus impostos, às catástrofes ecológicas. É claro que há uma série de questões em aberto no interior do projeto de Zizek. Por exemplo, há momentos dos textos onde ocorre certa sobreposição problemática entre violência popular contra o Estado com seu aparato legal e violência estatal, mesmo que esse Estado seja fruto de processos revolucionários. No entanto, há articulações extremamente bem-sucedidas, como a crítica à peculiar ruptura permanente da Revolução Cultural de Mao por ela ter, no fundo, preparado o caminho para a transformação da China em plataforma principal do capitalismo contemporâneo, desterritorializado e autotransgressor. Nesses e em vários outros momentos, Zizek demonstra até onde vai sua capacidade de apreender a complexidade da aposta política na "reinvenção de um terror que emancipa". Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, é autor de Cinismo e Falência da Crítica (Boitempo) e A Paixão do Negativo: Lacan e A Dialética (Unesp)

Há algum tempo, vemos as livrarias serem palcos de um assalto conservador à cultura. Um desavisado poderia imaginar estar em plena época da Guerra Fria, haja vista a quantidade de livros de propaganda anticomunista, de revisionismo histórico e de divulgação de ideologia conservadora que assolam as prateleiras de filosofia e ciências humanas. Estudos sobre o "sanguinário" Lenin convivem harmoniosamente com elogios ao grande passado imperial da nação brasileira, análises sobre a luta milenar entre os "terroristas" e os defensores da modernidade esclarecida e críticas conservadoras à solidão ontológica do homem contemporâneo com direito a citações de Ratzinger. O conjunto pode parecer heteróclito mas, infelizmente, não é. Eles são peças de um jogo de xadrez cujo objetivo consiste em impor uma extensa agenda conservadora no campo da reflexão e tirar de cena discussões fundamentais para a crítica cultural e sociopolítica produzidas no calor das lutas e revoluções que fizeram a história do século 20. Nesse sentido, a tradução, pela Jorge Zahar, de duas coletâneas organizadas por Slavoj Zizek com textos de Mao Tsé-tung (Sobre a Prática e a Contradição) e de Robespierre (Virtude e Terror, tradução de José Maurício Gradel, 236 págs., R$ 39,90) é extremamente bem-vinda. Figura maior da renovação do pensamento de esquerda, com Alain Badiou, Giorgio Agamben, Ernesto Laclau e Judith Butler, Zizek conseguiu renovar as articulações entre psicanálise e marxismo através de recursos sistemáticos à Jacques Lacan e às figuras maiores do idealismo alemão (Hegel, Schelling, além de uma versão peculiar do sujeito transcendental kantiano). Esse projeto, traçado desde seu O Mais Sublime dos Histéricos: Hegel com Lacan (Zahar), publicado entre nós no início dos anos 90, foi sendo paulatinamente aprofundado até chegar à maturidade com seus dois livros principais: The Ticklish Subject e Visão em Paralaxe (Boitempo). Nesse trajeto, Zizek procurou tirar as consequências de seu projeto filosófico-psicanalítico no campo político. Operação feita por meio da reflexão sobre os problemas legados pela noção de "política revolucionária" em textos de Lenin, Trotsky, Lukács e, agora, Mao e Robespierre lidos à luz da noção de "ato analítico", de Lacan. Assim, longe de ser uma simples retomada de tais textos e de conceitos como: crítica da democracia formal, ditadura do proletariado, luta de classes, antagonismo social, violência legítima, Zizek procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito. Podemos dizer isso porque se trata de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo. Ou seja, Zizek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do "humano" e cujos interesses não permitiam ser compreendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena do político uma subjetividade "inumana" por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira "terrorista" os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma. Assim, se Zizek pode olhar para Robespierre e dizer que "o passado terrorista deve ser aceito como nosso", não se trata de fazer apologia voluntarista da violência política, mas de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa? Diga-se de passagem, um problema apontado de maneira clara pela primeira vez por Hegel já em suas leituras sobre (e a coincidência não é aqui casual) o terror jacobino. A sagacidade de Zizek, apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistribuição de riquezas e de generalização de direitos. Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se este impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com consequências políticas nefastas é, no fundo, dirá Zizek, maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia. Princípios que não têm força para impedir, por exemplo, processos como a generalização do estado de exceção como prática "normal" de governo. Maneira de, no limite, reduzir a política a uma "assustadora reunião de homens assustados" unidos não mais pela possibilidade de "reinventar a ordem da vida cotidiana", mas apenas pelo medo. Medo em relação ao crime, ao terrorismo, aos imigrantes, ao Estado excessivo com seus impostos, às catástrofes ecológicas. É claro que há uma série de questões em aberto no interior do projeto de Zizek. Por exemplo, há momentos dos textos onde ocorre certa sobreposição problemática entre violência popular contra o Estado com seu aparato legal e violência estatal, mesmo que esse Estado seja fruto de processos revolucionários. No entanto, há articulações extremamente bem-sucedidas, como a crítica à peculiar ruptura permanente da Revolução Cultural de Mao por ela ter, no fundo, preparado o caminho para a transformação da China em plataforma principal do capitalismo contemporâneo, desterritorializado e autotransgressor. Nesses e em vários outros momentos, Zizek demonstra até onde vai sua capacidade de apreender a complexidade da aposta política na "reinvenção de um terror que emancipa". Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, é autor de Cinismo e Falência da Crítica (Boitempo) e A Paixão do Negativo: Lacan e A Dialética (Unesp)

Há algum tempo, vemos as livrarias serem palcos de um assalto conservador à cultura. Um desavisado poderia imaginar estar em plena época da Guerra Fria, haja vista a quantidade de livros de propaganda anticomunista, de revisionismo histórico e de divulgação de ideologia conservadora que assolam as prateleiras de filosofia e ciências humanas. Estudos sobre o "sanguinário" Lenin convivem harmoniosamente com elogios ao grande passado imperial da nação brasileira, análises sobre a luta milenar entre os "terroristas" e os defensores da modernidade esclarecida e críticas conservadoras à solidão ontológica do homem contemporâneo com direito a citações de Ratzinger. O conjunto pode parecer heteróclito mas, infelizmente, não é. Eles são peças de um jogo de xadrez cujo objetivo consiste em impor uma extensa agenda conservadora no campo da reflexão e tirar de cena discussões fundamentais para a crítica cultural e sociopolítica produzidas no calor das lutas e revoluções que fizeram a história do século 20. Nesse sentido, a tradução, pela Jorge Zahar, de duas coletâneas organizadas por Slavoj Zizek com textos de Mao Tsé-tung (Sobre a Prática e a Contradição) e de Robespierre (Virtude e Terror, tradução de José Maurício Gradel, 236 págs., R$ 39,90) é extremamente bem-vinda. Figura maior da renovação do pensamento de esquerda, com Alain Badiou, Giorgio Agamben, Ernesto Laclau e Judith Butler, Zizek conseguiu renovar as articulações entre psicanálise e marxismo através de recursos sistemáticos à Jacques Lacan e às figuras maiores do idealismo alemão (Hegel, Schelling, além de uma versão peculiar do sujeito transcendental kantiano). Esse projeto, traçado desde seu O Mais Sublime dos Histéricos: Hegel com Lacan (Zahar), publicado entre nós no início dos anos 90, foi sendo paulatinamente aprofundado até chegar à maturidade com seus dois livros principais: The Ticklish Subject e Visão em Paralaxe (Boitempo). Nesse trajeto, Zizek procurou tirar as consequências de seu projeto filosófico-psicanalítico no campo político. Operação feita por meio da reflexão sobre os problemas legados pela noção de "política revolucionária" em textos de Lenin, Trotsky, Lukács e, agora, Mao e Robespierre lidos à luz da noção de "ato analítico", de Lacan. Assim, longe de ser uma simples retomada de tais textos e de conceitos como: crítica da democracia formal, ditadura do proletariado, luta de classes, antagonismo social, violência legítima, Zizek procura estabelecer uma articulação original entre política e teoria do sujeito. Podemos dizer isso porque se trata de interrogar o sentido da ação revolucionária no interior do projeto moderno de reconhecimento das exigências de uma subjetividade que não pode ser compreendida nos quadros normativos do humanismo. Ou seja, Zizek quer mostrar como os fatos decisivos da história política mundial desde a Revolução Francesa foram animados pelo advento de uma noção de subjetividade que não podia mais ser definida através da substancialização de atributos do "humano" e cujos interesses não permitiam ser compreendidos através da lógica utilitarista da maximização do prazer e do afastamento do desprazer. Ao contrário, a partir da Revolução Francesa, sobe à cena do político uma subjetividade "inumana" por recusar toda e qualquer figura normativa e pedagógica do homem, por recusar de maneira "terrorista" os hábitos e costumes, por não se reconhecer mais em natureza e em determinação substancial alguma. Assim, se Zizek pode olhar para Robespierre e dizer que "o passado terrorista deve ser aceito como nosso", não se trata de fazer apologia voluntarista da violência política, mas de insistir que o verdadeiro problema político legado desde o advento da modernidade é: como construir estruturas institucionais universalizantes capazes de dar conta de exigências de reconhecimento de sujeitos não-substanciais que tendem a se manifestar como pura potência disruptiva e negativa? Diga-se de passagem, um problema apontado de maneira clara pela primeira vez por Hegel já em suas leituras sobre (e a coincidência não é aqui casual) o terror jacobino. A sagacidade de Zizek, apoiando-se aqui em reflexões de Alain Badiou, consistiu em mostrar como essa experiência disruptiva inscrita na essência da conduta do sujeito foi o motor da nossa história recente. História revolucionária na qual se imbricam violência, criação, destruição, procura e que, principalmente, não pode ser lida apenas como uma sequência de lutas pela redistribuição de riquezas e de generalização de direitos. Recalcar esta história, como se fosse questão de uma sucessão de catástrofes (o comunismo, o terror, as ilusões de ruptura do modernismo, etc.), como se o tempo devesse ser avaliado a partir da contagem de mortos ou, para falar com Habermas, como se este impulso não passasse de uma estetização da violência e do excesso com consequências políticas nefastas é, no fundo, dirá Zizek, maneira de entificar uma política limitada pelo respeito a princípios formais gerais que, simplesmente, não conseguem mais dar efetividade alguma ao que um dia esteve contido na ideia de democracia. Princípios que não têm força para impedir, por exemplo, processos como a generalização do estado de exceção como prática "normal" de governo. Maneira de, no limite, reduzir a política a uma "assustadora reunião de homens assustados" unidos não mais pela possibilidade de "reinventar a ordem da vida cotidiana", mas apenas pelo medo. Medo em relação ao crime, ao terrorismo, aos imigrantes, ao Estado excessivo com seus impostos, às catástrofes ecológicas. É claro que há uma série de questões em aberto no interior do projeto de Zizek. Por exemplo, há momentos dos textos onde ocorre certa sobreposição problemática entre violência popular contra o Estado com seu aparato legal e violência estatal, mesmo que esse Estado seja fruto de processos revolucionários. No entanto, há articulações extremamente bem-sucedidas, como a crítica à peculiar ruptura permanente da Revolução Cultural de Mao por ela ter, no fundo, preparado o caminho para a transformação da China em plataforma principal do capitalismo contemporâneo, desterritorializado e autotransgressor. Nesses e em vários outros momentos, Zizek demonstra até onde vai sua capacidade de apreender a complexidade da aposta política na "reinvenção de um terror que emancipa". Vladimir Safatle, professor do Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo, é autor de Cinismo e Falência da Crítica (Boitempo) e A Paixão do Negativo: Lacan e A Dialética (Unesp)

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.