Itaú Cultural abre mostra de Bispo do Rosário


Exposição presta tributo ao artista autodidata que passou 50 anos num manicômio carioca

Por Antonio Gonçalves Filho

Hoje um dos artistas brasileiros mais requisitados para exposições internacionais – a próxima será em janeiro, no Americas Society (EUA) –, o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) ganha, a partir do dia 18, uma ampla retrospectiva com 404 obras suas no Itaú Cultural, justamente no dia em que se comemora a Luta Antimanicomial. Bispo é um exemplo da crueldade de instituições que confinam doentes mentais, condenando-os ao isolamento. Passou 50 anos de sua vida na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por onde passaram também o escritor Lima Barreto (1881-1922) e o compositor Ernesto Nazareth (1863-1943), que fugiu do manicômio e foi encontrado três dias depois boiando nas águas da represa local.

A exposição Bispo do Rosário – Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto tem como curadores Ricardo Resende, também diretor do Museu Bispo do Rosário, e Diana Koller. Eles também selecionaram para a mostra, que ocupa três andares do Itaú Cultural, obras de contemporâneos que dialogam com as peças criadas por Bispo em sua pequena cela na Colônia Juliano Moreira.

Ricardo Resende, curador da exposição e diretor do Museu Bispo do Rosário Foto: DANIEL TEIXEIRA/ ESTADÃO
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Entre os artistas veteranos que ajudaram a reconhecer a arte de alienados está Almir Mavigner (1925-2018), que organizou com Léon Dégand e o crítico Lourival Gomes Machado a exposição Nove Artistas do Engenho de Dentro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP, em 1950. Foi um exemplo pioneiro de legitimação do que então Jean Dubuffet chamava de ‘art brut’ – o crítico Mário Pedrosa preferia o termo ‘arte virgem’ para qualificar a arte produzida por pessoas fora do eixo (acadêmico, em especial).

A professora de Artes Visuais e filósofa Solange de Oliveira, que acaba de lançar um livro sobre a obra do artista, Arthur Bispo do Rosário – Por um Fio (Estação Liberdade), preteriu ambos os termos e ficou com “arte ínsita”, que vem do latim ‘in situ’, significando inato, congênito, não formado, original. Com efeito, Bispo foi tudo isso. Não era um outsider ou marginal, mas um eleito. “Na verdade, ele nem se considerava artista, mas um mensageiro divino”, diz o curador Ricardo Resende. Prova dessa “divindade” é sua obra mais célebre, o Manto da Apresentação, uma roupa de gala feita de um cobertor velho, todo bordado, em que registrou os nomes de todas as pessoas queridas que levaria consigo quando se apresentasse diante do Senhor e ressuscitasse.

Manto da Apresentação com o qual Bispo se apresentaria no Juízo Final Foto: Itaú Cultural
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Como a maioria das peças bordadas por Bispo, o Manto foi confeccionado com linhas extraídas de uniformes dos internos da Colônia. A autora Solange de Oliveira foi buscar o sentido dessa desconstrução e da confecção dos uniformes da Marinha que criou. Num deles, sete estrelas extrapolam a patente de oficial – um almirante, a mais alta, tem cinco estrelas. Essas estrelas representavam para Bispo os sete anjos que vieram anunciar sua missão no dia 22 de dezembro de 1938.

Barcos remetiam aos tempos de Bispo como grumete na Marinha de Guerra Foto: Itaú Cultural

Nesse dia, ele deixou sua casa em Botafogo a caminho da Igreja da Candelária, mas acabou no Mosteiro de São Bento diante dos religiosos aos quais proclamou: “Eu sou Aquele que Veio Julgar os Vivos e os Mortos”. Os monges chamaram a polícia e o Jesus negro foi trancafiado no manicômio. Ficara para trás seu passado de grumete da Marinha. Com nostalgia do mar, construiu diversos barquinhos de madeira, bordou estandartes com nomes de países e cidades que jamais conheceu e realizou assemblages com objetos cotidianos, exatamente como fizeram os representantes do ‘nouveau réalisme’ francês nos anos 1960 (Arman, César), que reciclavam materiais ao acaso.

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Bispo, parece claro, não conhecia nem Arman nem o dadaísta Duchamp, o rei do ready-made (ele tem duas peças muito parecidas, uma delas que se assemelha à roda da bicicleta do francês). “Ele vivia isolado em seu mundo, usando objetos que outros internos lhe presenteavam”, conta o curador Resende, que catalogou mil peças feitas por Bispo com o apoio da galeria Almeida & Dale. Agora, com a mostra retrospectiva, o Itaú Cultural ajuda no restauro de peças muito antigas, que, segundo o curador, estavam em péssimas condições na Colônia – elas já passaram por restauro e estiveram em diversas mostras internacionais.

Obra utiliza roda de bicicleta, como o dadaístaDuchamp usou Foto: Itaú Cultural

A hipótese levantada pela professora Solange de Oliveira em seu livro é a de que o apagamento, a reinscrição da trajetória de Bispo, marcada pela exclusão e pelo abandono, “o impulsionaram a uma expressão em forma de uma epopeia bordada, dedicada em louvor a Deus”. Ele transformou seu “passado nebuloso” em mitopoética ulissiana, numa odisseia em que, a exemplo da Penélope de Homero, tecia e “destecia” o que criava. Entre seus seguidores, na mostra, se destacam artistas como Rosana Paulino, Maxwell Alexandre e Antonio Bragança. Uma exposição que diz muito sobre o Brasil. 

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Bispo do Rosário: Eu Vim – Aparição, Impregnação e Impacto Instituto Itaú Cultural. Av. Paulista, 149. 3ª/sáb.., 11h/20h. Dom., 11h/19. Abre dia 18, às 20h. Gratuito. Até 2/10

Na verdade, ele nem se considerava artista, mas um mensageiro divino

Ricardo Resende, curador

Hoje um dos artistas brasileiros mais requisitados para exposições internacionais – a próxima será em janeiro, no Americas Society (EUA) –, o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) ganha, a partir do dia 18, uma ampla retrospectiva com 404 obras suas no Itaú Cultural, justamente no dia em que se comemora a Luta Antimanicomial. Bispo é um exemplo da crueldade de instituições que confinam doentes mentais, condenando-os ao isolamento. Passou 50 anos de sua vida na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por onde passaram também o escritor Lima Barreto (1881-1922) e o compositor Ernesto Nazareth (1863-1943), que fugiu do manicômio e foi encontrado três dias depois boiando nas águas da represa local.

A exposição Bispo do Rosário – Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto tem como curadores Ricardo Resende, também diretor do Museu Bispo do Rosário, e Diana Koller. Eles também selecionaram para a mostra, que ocupa três andares do Itaú Cultural, obras de contemporâneos que dialogam com as peças criadas por Bispo em sua pequena cela na Colônia Juliano Moreira.

Ricardo Resende, curador da exposição e diretor do Museu Bispo do Rosário Foto: DANIEL TEIXEIRA/ ESTADÃO

Entre os artistas veteranos que ajudaram a reconhecer a arte de alienados está Almir Mavigner (1925-2018), que organizou com Léon Dégand e o crítico Lourival Gomes Machado a exposição Nove Artistas do Engenho de Dentro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP, em 1950. Foi um exemplo pioneiro de legitimação do que então Jean Dubuffet chamava de ‘art brut’ – o crítico Mário Pedrosa preferia o termo ‘arte virgem’ para qualificar a arte produzida por pessoas fora do eixo (acadêmico, em especial).

A professora de Artes Visuais e filósofa Solange de Oliveira, que acaba de lançar um livro sobre a obra do artista, Arthur Bispo do Rosário – Por um Fio (Estação Liberdade), preteriu ambos os termos e ficou com “arte ínsita”, que vem do latim ‘in situ’, significando inato, congênito, não formado, original. Com efeito, Bispo foi tudo isso. Não era um outsider ou marginal, mas um eleito. “Na verdade, ele nem se considerava artista, mas um mensageiro divino”, diz o curador Ricardo Resende. Prova dessa “divindade” é sua obra mais célebre, o Manto da Apresentação, uma roupa de gala feita de um cobertor velho, todo bordado, em que registrou os nomes de todas as pessoas queridas que levaria consigo quando se apresentasse diante do Senhor e ressuscitasse.

Manto da Apresentação com o qual Bispo se apresentaria no Juízo Final Foto: Itaú Cultural

Como a maioria das peças bordadas por Bispo, o Manto foi confeccionado com linhas extraídas de uniformes dos internos da Colônia. A autora Solange de Oliveira foi buscar o sentido dessa desconstrução e da confecção dos uniformes da Marinha que criou. Num deles, sete estrelas extrapolam a patente de oficial – um almirante, a mais alta, tem cinco estrelas. Essas estrelas representavam para Bispo os sete anjos que vieram anunciar sua missão no dia 22 de dezembro de 1938.

Barcos remetiam aos tempos de Bispo como grumete na Marinha de Guerra Foto: Itaú Cultural

Nesse dia, ele deixou sua casa em Botafogo a caminho da Igreja da Candelária, mas acabou no Mosteiro de São Bento diante dos religiosos aos quais proclamou: “Eu sou Aquele que Veio Julgar os Vivos e os Mortos”. Os monges chamaram a polícia e o Jesus negro foi trancafiado no manicômio. Ficara para trás seu passado de grumete da Marinha. Com nostalgia do mar, construiu diversos barquinhos de madeira, bordou estandartes com nomes de países e cidades que jamais conheceu e realizou assemblages com objetos cotidianos, exatamente como fizeram os representantes do ‘nouveau réalisme’ francês nos anos 1960 (Arman, César), que reciclavam materiais ao acaso.

Bispo, parece claro, não conhecia nem Arman nem o dadaísta Duchamp, o rei do ready-made (ele tem duas peças muito parecidas, uma delas que se assemelha à roda da bicicleta do francês). “Ele vivia isolado em seu mundo, usando objetos que outros internos lhe presenteavam”, conta o curador Resende, que catalogou mil peças feitas por Bispo com o apoio da galeria Almeida & Dale. Agora, com a mostra retrospectiva, o Itaú Cultural ajuda no restauro de peças muito antigas, que, segundo o curador, estavam em péssimas condições na Colônia – elas já passaram por restauro e estiveram em diversas mostras internacionais.

Obra utiliza roda de bicicleta, como o dadaístaDuchamp usou Foto: Itaú Cultural

A hipótese levantada pela professora Solange de Oliveira em seu livro é a de que o apagamento, a reinscrição da trajetória de Bispo, marcada pela exclusão e pelo abandono, “o impulsionaram a uma expressão em forma de uma epopeia bordada, dedicada em louvor a Deus”. Ele transformou seu “passado nebuloso” em mitopoética ulissiana, numa odisseia em que, a exemplo da Penélope de Homero, tecia e “destecia” o que criava. Entre seus seguidores, na mostra, se destacam artistas como Rosana Paulino, Maxwell Alexandre e Antonio Bragança. Uma exposição que diz muito sobre o Brasil. 

Bispo do Rosário: Eu Vim – Aparição, Impregnação e Impacto Instituto Itaú Cultural. Av. Paulista, 149. 3ª/sáb.., 11h/20h. Dom., 11h/19. Abre dia 18, às 20h. Gratuito. Até 2/10

Na verdade, ele nem se considerava artista, mas um mensageiro divino

Ricardo Resende, curador

Hoje um dos artistas brasileiros mais requisitados para exposições internacionais – a próxima será em janeiro, no Americas Society (EUA) –, o sergipano Arthur Bispo do Rosário (1911-1989) ganha, a partir do dia 18, uma ampla retrospectiva com 404 obras suas no Itaú Cultural, justamente no dia em que se comemora a Luta Antimanicomial. Bispo é um exemplo da crueldade de instituições que confinam doentes mentais, condenando-os ao isolamento. Passou 50 anos de sua vida na Colônia Juliano Moreira, em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, por onde passaram também o escritor Lima Barreto (1881-1922) e o compositor Ernesto Nazareth (1863-1943), que fugiu do manicômio e foi encontrado três dias depois boiando nas águas da represa local.

A exposição Bispo do Rosário – Eu Vim: Aparição, Impregnação e Impacto tem como curadores Ricardo Resende, também diretor do Museu Bispo do Rosário, e Diana Koller. Eles também selecionaram para a mostra, que ocupa três andares do Itaú Cultural, obras de contemporâneos que dialogam com as peças criadas por Bispo em sua pequena cela na Colônia Juliano Moreira.

Ricardo Resende, curador da exposição e diretor do Museu Bispo do Rosário Foto: DANIEL TEIXEIRA/ ESTADÃO

Entre os artistas veteranos que ajudaram a reconhecer a arte de alienados está Almir Mavigner (1925-2018), que organizou com Léon Dégand e o crítico Lourival Gomes Machado a exposição Nove Artistas do Engenho de Dentro, no Museu de Arte Moderna de São Paulo – MAM/SP, em 1950. Foi um exemplo pioneiro de legitimação do que então Jean Dubuffet chamava de ‘art brut’ – o crítico Mário Pedrosa preferia o termo ‘arte virgem’ para qualificar a arte produzida por pessoas fora do eixo (acadêmico, em especial).

A professora de Artes Visuais e filósofa Solange de Oliveira, que acaba de lançar um livro sobre a obra do artista, Arthur Bispo do Rosário – Por um Fio (Estação Liberdade), preteriu ambos os termos e ficou com “arte ínsita”, que vem do latim ‘in situ’, significando inato, congênito, não formado, original. Com efeito, Bispo foi tudo isso. Não era um outsider ou marginal, mas um eleito. “Na verdade, ele nem se considerava artista, mas um mensageiro divino”, diz o curador Ricardo Resende. Prova dessa “divindade” é sua obra mais célebre, o Manto da Apresentação, uma roupa de gala feita de um cobertor velho, todo bordado, em que registrou os nomes de todas as pessoas queridas que levaria consigo quando se apresentasse diante do Senhor e ressuscitasse.

Manto da Apresentação com o qual Bispo se apresentaria no Juízo Final Foto: Itaú Cultural

Como a maioria das peças bordadas por Bispo, o Manto foi confeccionado com linhas extraídas de uniformes dos internos da Colônia. A autora Solange de Oliveira foi buscar o sentido dessa desconstrução e da confecção dos uniformes da Marinha que criou. Num deles, sete estrelas extrapolam a patente de oficial – um almirante, a mais alta, tem cinco estrelas. Essas estrelas representavam para Bispo os sete anjos que vieram anunciar sua missão no dia 22 de dezembro de 1938.

Barcos remetiam aos tempos de Bispo como grumete na Marinha de Guerra Foto: Itaú Cultural

Nesse dia, ele deixou sua casa em Botafogo a caminho da Igreja da Candelária, mas acabou no Mosteiro de São Bento diante dos religiosos aos quais proclamou: “Eu sou Aquele que Veio Julgar os Vivos e os Mortos”. Os monges chamaram a polícia e o Jesus negro foi trancafiado no manicômio. Ficara para trás seu passado de grumete da Marinha. Com nostalgia do mar, construiu diversos barquinhos de madeira, bordou estandartes com nomes de países e cidades que jamais conheceu e realizou assemblages com objetos cotidianos, exatamente como fizeram os representantes do ‘nouveau réalisme’ francês nos anos 1960 (Arman, César), que reciclavam materiais ao acaso.

Bispo, parece claro, não conhecia nem Arman nem o dadaísta Duchamp, o rei do ready-made (ele tem duas peças muito parecidas, uma delas que se assemelha à roda da bicicleta do francês). “Ele vivia isolado em seu mundo, usando objetos que outros internos lhe presenteavam”, conta o curador Resende, que catalogou mil peças feitas por Bispo com o apoio da galeria Almeida & Dale. Agora, com a mostra retrospectiva, o Itaú Cultural ajuda no restauro de peças muito antigas, que, segundo o curador, estavam em péssimas condições na Colônia – elas já passaram por restauro e estiveram em diversas mostras internacionais.

Obra utiliza roda de bicicleta, como o dadaístaDuchamp usou Foto: Itaú Cultural

A hipótese levantada pela professora Solange de Oliveira em seu livro é a de que o apagamento, a reinscrição da trajetória de Bispo, marcada pela exclusão e pelo abandono, “o impulsionaram a uma expressão em forma de uma epopeia bordada, dedicada em louvor a Deus”. Ele transformou seu “passado nebuloso” em mitopoética ulissiana, numa odisseia em que, a exemplo da Penélope de Homero, tecia e “destecia” o que criava. Entre seus seguidores, na mostra, se destacam artistas como Rosana Paulino, Maxwell Alexandre e Antonio Bragança. Uma exposição que diz muito sobre o Brasil. 

Bispo do Rosário: Eu Vim – Aparição, Impregnação e Impacto Instituto Itaú Cultural. Av. Paulista, 149. 3ª/sáb.., 11h/20h. Dom., 11h/19. Abre dia 18, às 20h. Gratuito. Até 2/10

Na verdade, ele nem se considerava artista, mas um mensageiro divino

Ricardo Resende, curador

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