Lina Bo Bardi ganha duas biografias


A arquiteta que projetou o Masp, morta em 1992, é homenageada por dois colegas, que analisam seu legado

Por Antonio Gonçalves Filho

A arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), conhecida pelo ousado projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e pelo Sesc Pompeia, entre outras obras, ganha agora duas biografias no exato momento em que a Bienal de Veneza concede pela primeira vez um Leão de Ouro a uma brasileira, ela, prêmio póstumo pelo conjunto de uma obra que se tornou referência internacional. Nascida Achillina Bo em Roma e naturalizada brasileira, Lina Bo Bardi passou à história como uma mulher ativa e revolucionária, que desafiou padrões comportamentais para exercer sua profissão. Em O Que Eu Queria era Ter História (Companhia das Letras), biografia escrita pelo arquiteto Zeuler R. Lima, Lina surge como uma mulher impetuosa, mas solitária, condenada à incompreensão num ambiente dominado por homens, seja na Itália ou no Brasil. No segundo livro, Lina: Uma Biografia (Editora Todavia), do também arquiteto Francesco Perrota-Bosch, o foco é outro: a identificação de Lina com a cultura popular brasileira.

A aquiteta Lina Bo Bardi no canteiro de obras do Masp em 1967 Foto: Lew Parrella/Instituto Bardi

As duas biografias, no entanto, convergem para o mesmo ponto: a libertação de uma mulher que parecia destinada a ficar sob a sombra do marido, Pietro Maria Bardi, criador e diretor do Masp, 15 anos mais velho que ela. Zeuler R. Lima vê essa emancipação como a luta de uma mulher irascível que soube se aproveitar do momento de transformação de um Brasil com sede de modernidade. Já Perrota-Bosch esboça o perfil de uma arquiteta engajada, simpatizante de regimes de esquerda, mas que viveu uma contradição, erguendo para si e o marido uma luxuosa mansão moderna no Morumbi (hoje, a Casa de Vidro) – ainda que, na época, o bairro fosse um imenso matagal.

continua após a publicidade

Há uma evidente equivalência entre as duas biografias, apesar das sutis diferenças entre elas. Zeuler já publicou uma monografia e outros estudos sobre Lina, enxergando como um motivo de suplício para ela ter erguido um edifício tão monumental como o Masp. Lina, segundo o autor, tinha em mente construir um espaço de liberdade para o homem comum, mas viu seu museu, que deveria ser uma instituição aberta para a cidade – daí o seu vão livre – se fechar e ser transformado num monumento ao regime que o financiou.

A vocação para o antagonismo fez de Lina, segundo Zeuler, uma pessoa angustiada, comumente vista como arrogante, a despeito de seus esforços para criar espaços generosos de convivência social. A biografia de Perrota-Bosch confirma: ela esbravejou com os dirigentes do Sesc Pompeia logo na inauguração por causa da primeira peça em cartaz, Os Filhos do Silêncio. O espetáculo pedia um palco italiano tradicional, pois a protagonista é muda, se comunica por sinais – e não fazia sentido falar por sinais só com metade da plateia, uma vez que o teatro tem duas arquibancadas em forma de arena.

Visitantes lendo na biblioteca do Sesc Pompeia projetado por Lina Foto: Lalo de Almeida/The New York Times
continua após a publicidade

A despeito do episódio, as relações de Lina com o teatro sempre foram boas. Ela participou como cenógrafa de montagens históricas como do Teatro Oficina (Na Selva das Cidades, Gracias Señor) e irreverentes como Ubu Rei, do grupo Ornitorrinco, além de ter apoiado o teatro experimental quando foi diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, temporada em que assinou o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Como diretora do MAM/Bahia, segundo a biografia de Zeuler, sua meta era criar um acervo que incorporasse artefatos locais, o que parecia um horror à sociedade conservadora baiana – ainda mais em plena ditadura militar. O fim da história era previsível: Lina acabou se demitindo do cargo e foi trabalhar com o diretor Martim Gonçalves na Ópera dos Três Vinténs de Brecht e Weill. Pura afinidade ideológica. Foi nessa época que Lina começou a beber às escondidas, segundo o biógrafo Zeuler.

Pietro Bardi, ainda de acordo com sua biografia, não aprovava o crescente radicalismo de Lina – muito menos sua inclinação ao alcoolismo, que a fez beber até perfume quando o marido começou a esconder as garrafas de uísque no fim da vida, no momento em que se viu confinada na Casa de Vidro do Morumbi por problemas de locomoção. A casa foi palco de uma reunião que quase a levou aos porões da ditadura.

O episódio é contado na mesma biografia de Zeuler, ao narrar a prisão do pintor Sérgio Ferro, então envolvido com antagonistas do regime militar, como o guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), cofundador do grupo revolucionário Aliança Libertadora Nacional. Ferro, Marighella e outros se reuniram na Casa de Vidro, mas ela não teria participado do encontro, apenas cedido o local. Não esperou para contar sua versão. Fugiu para a Itália.

continua após a publicidade

Fatos curiosos sobre as posições ideológicas de Lina são contados pelo biógrafo Perrota-Bosch em sua biografia. Um deles diz respeito à pintura dos dois pórticos de sustentação do Masp de vermelho, em 1990. Era a cor originalmente escolhida por Lina em 1968, quando o museu da Paulista foi inaugurado, justamente no ano do AI-5. Os militares reprimiram a audácia da arquiteta por razões óbvias. Anos mais tarde, ao encontrar o general Figueiredo, fustigou-o com a proposta de o governo contratar arquitetos para construir casas populares. “É uma ideia”, ironizou o ditador. “Não é uma ideia, senhor presidente, é um dever”, teria respondido a destemida Lina.

“As falas de Lina eram eruditas e heterodoxas, cativantes e contraditórias. Era uma polemista nata. Tinha um imenso talento para formular boutades”, escreve Perrota-Bosch na biografia, citando uma delas: “ Eu sou stalinista, militarista e antifeminista!” Lina, enfim, era como seu professor da faculdade Marcello Piacentini que, apesar de alinhado com o poder fascista, admirava profundamente o espírito modernista da Bauhaus, chegando a ser interlocutor de Gropius. As ligações de Pietro Bardi com Mussolini e o fascismo também não são exatamente um segredo. Mais de uma vez elas são mencionadas nas duas biografias.

Vale lembrar que, ao se conhecerem, nos anos 1940, Bardi era dono de uma galeria em Roma, o Studio d’Arte Palma. Como queria expandir seus negócios no pós-guerra, a América do Sul e sua elite endinheirada, ávida para ser legitimada pelo mundo da arte, pareceu uma boa escolha. Porém, o motivo verdadeiro, segundo a biografia de Zeuler R. Lima, “era a onda de acusações contra intelectuais italianos que colaboraram com o fascismo”. A conclusão da biografia de Zeuler: “Ela nunca abandonou seu romantismo idealista, para não falar do senso de responsabilidade social em relação aos menos privilegiados”.

A arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), conhecida pelo ousado projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e pelo Sesc Pompeia, entre outras obras, ganha agora duas biografias no exato momento em que a Bienal de Veneza concede pela primeira vez um Leão de Ouro a uma brasileira, ela, prêmio póstumo pelo conjunto de uma obra que se tornou referência internacional. Nascida Achillina Bo em Roma e naturalizada brasileira, Lina Bo Bardi passou à história como uma mulher ativa e revolucionária, que desafiou padrões comportamentais para exercer sua profissão. Em O Que Eu Queria era Ter História (Companhia das Letras), biografia escrita pelo arquiteto Zeuler R. Lima, Lina surge como uma mulher impetuosa, mas solitária, condenada à incompreensão num ambiente dominado por homens, seja na Itália ou no Brasil. No segundo livro, Lina: Uma Biografia (Editora Todavia), do também arquiteto Francesco Perrota-Bosch, o foco é outro: a identificação de Lina com a cultura popular brasileira.

A aquiteta Lina Bo Bardi no canteiro de obras do Masp em 1967 Foto: Lew Parrella/Instituto Bardi

As duas biografias, no entanto, convergem para o mesmo ponto: a libertação de uma mulher que parecia destinada a ficar sob a sombra do marido, Pietro Maria Bardi, criador e diretor do Masp, 15 anos mais velho que ela. Zeuler R. Lima vê essa emancipação como a luta de uma mulher irascível que soube se aproveitar do momento de transformação de um Brasil com sede de modernidade. Já Perrota-Bosch esboça o perfil de uma arquiteta engajada, simpatizante de regimes de esquerda, mas que viveu uma contradição, erguendo para si e o marido uma luxuosa mansão moderna no Morumbi (hoje, a Casa de Vidro) – ainda que, na época, o bairro fosse um imenso matagal.

Há uma evidente equivalência entre as duas biografias, apesar das sutis diferenças entre elas. Zeuler já publicou uma monografia e outros estudos sobre Lina, enxergando como um motivo de suplício para ela ter erguido um edifício tão monumental como o Masp. Lina, segundo o autor, tinha em mente construir um espaço de liberdade para o homem comum, mas viu seu museu, que deveria ser uma instituição aberta para a cidade – daí o seu vão livre – se fechar e ser transformado num monumento ao regime que o financiou.

A vocação para o antagonismo fez de Lina, segundo Zeuler, uma pessoa angustiada, comumente vista como arrogante, a despeito de seus esforços para criar espaços generosos de convivência social. A biografia de Perrota-Bosch confirma: ela esbravejou com os dirigentes do Sesc Pompeia logo na inauguração por causa da primeira peça em cartaz, Os Filhos do Silêncio. O espetáculo pedia um palco italiano tradicional, pois a protagonista é muda, se comunica por sinais – e não fazia sentido falar por sinais só com metade da plateia, uma vez que o teatro tem duas arquibancadas em forma de arena.

Visitantes lendo na biblioteca do Sesc Pompeia projetado por Lina Foto: Lalo de Almeida/The New York Times

A despeito do episódio, as relações de Lina com o teatro sempre foram boas. Ela participou como cenógrafa de montagens históricas como do Teatro Oficina (Na Selva das Cidades, Gracias Señor) e irreverentes como Ubu Rei, do grupo Ornitorrinco, além de ter apoiado o teatro experimental quando foi diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, temporada em que assinou o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Como diretora do MAM/Bahia, segundo a biografia de Zeuler, sua meta era criar um acervo que incorporasse artefatos locais, o que parecia um horror à sociedade conservadora baiana – ainda mais em plena ditadura militar. O fim da história era previsível: Lina acabou se demitindo do cargo e foi trabalhar com o diretor Martim Gonçalves na Ópera dos Três Vinténs de Brecht e Weill. Pura afinidade ideológica. Foi nessa época que Lina começou a beber às escondidas, segundo o biógrafo Zeuler.

Pietro Bardi, ainda de acordo com sua biografia, não aprovava o crescente radicalismo de Lina – muito menos sua inclinação ao alcoolismo, que a fez beber até perfume quando o marido começou a esconder as garrafas de uísque no fim da vida, no momento em que se viu confinada na Casa de Vidro do Morumbi por problemas de locomoção. A casa foi palco de uma reunião que quase a levou aos porões da ditadura.

O episódio é contado na mesma biografia de Zeuler, ao narrar a prisão do pintor Sérgio Ferro, então envolvido com antagonistas do regime militar, como o guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), cofundador do grupo revolucionário Aliança Libertadora Nacional. Ferro, Marighella e outros se reuniram na Casa de Vidro, mas ela não teria participado do encontro, apenas cedido o local. Não esperou para contar sua versão. Fugiu para a Itália.

Fatos curiosos sobre as posições ideológicas de Lina são contados pelo biógrafo Perrota-Bosch em sua biografia. Um deles diz respeito à pintura dos dois pórticos de sustentação do Masp de vermelho, em 1990. Era a cor originalmente escolhida por Lina em 1968, quando o museu da Paulista foi inaugurado, justamente no ano do AI-5. Os militares reprimiram a audácia da arquiteta por razões óbvias. Anos mais tarde, ao encontrar o general Figueiredo, fustigou-o com a proposta de o governo contratar arquitetos para construir casas populares. “É uma ideia”, ironizou o ditador. “Não é uma ideia, senhor presidente, é um dever”, teria respondido a destemida Lina.

“As falas de Lina eram eruditas e heterodoxas, cativantes e contraditórias. Era uma polemista nata. Tinha um imenso talento para formular boutades”, escreve Perrota-Bosch na biografia, citando uma delas: “ Eu sou stalinista, militarista e antifeminista!” Lina, enfim, era como seu professor da faculdade Marcello Piacentini que, apesar de alinhado com o poder fascista, admirava profundamente o espírito modernista da Bauhaus, chegando a ser interlocutor de Gropius. As ligações de Pietro Bardi com Mussolini e o fascismo também não são exatamente um segredo. Mais de uma vez elas são mencionadas nas duas biografias.

Vale lembrar que, ao se conhecerem, nos anos 1940, Bardi era dono de uma galeria em Roma, o Studio d’Arte Palma. Como queria expandir seus negócios no pós-guerra, a América do Sul e sua elite endinheirada, ávida para ser legitimada pelo mundo da arte, pareceu uma boa escolha. Porém, o motivo verdadeiro, segundo a biografia de Zeuler R. Lima, “era a onda de acusações contra intelectuais italianos que colaboraram com o fascismo”. A conclusão da biografia de Zeuler: “Ela nunca abandonou seu romantismo idealista, para não falar do senso de responsabilidade social em relação aos menos privilegiados”.

A arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), conhecida pelo ousado projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e pelo Sesc Pompeia, entre outras obras, ganha agora duas biografias no exato momento em que a Bienal de Veneza concede pela primeira vez um Leão de Ouro a uma brasileira, ela, prêmio póstumo pelo conjunto de uma obra que se tornou referência internacional. Nascida Achillina Bo em Roma e naturalizada brasileira, Lina Bo Bardi passou à história como uma mulher ativa e revolucionária, que desafiou padrões comportamentais para exercer sua profissão. Em O Que Eu Queria era Ter História (Companhia das Letras), biografia escrita pelo arquiteto Zeuler R. Lima, Lina surge como uma mulher impetuosa, mas solitária, condenada à incompreensão num ambiente dominado por homens, seja na Itália ou no Brasil. No segundo livro, Lina: Uma Biografia (Editora Todavia), do também arquiteto Francesco Perrota-Bosch, o foco é outro: a identificação de Lina com a cultura popular brasileira.

A aquiteta Lina Bo Bardi no canteiro de obras do Masp em 1967 Foto: Lew Parrella/Instituto Bardi

As duas biografias, no entanto, convergem para o mesmo ponto: a libertação de uma mulher que parecia destinada a ficar sob a sombra do marido, Pietro Maria Bardi, criador e diretor do Masp, 15 anos mais velho que ela. Zeuler R. Lima vê essa emancipação como a luta de uma mulher irascível que soube se aproveitar do momento de transformação de um Brasil com sede de modernidade. Já Perrota-Bosch esboça o perfil de uma arquiteta engajada, simpatizante de regimes de esquerda, mas que viveu uma contradição, erguendo para si e o marido uma luxuosa mansão moderna no Morumbi (hoje, a Casa de Vidro) – ainda que, na época, o bairro fosse um imenso matagal.

Há uma evidente equivalência entre as duas biografias, apesar das sutis diferenças entre elas. Zeuler já publicou uma monografia e outros estudos sobre Lina, enxergando como um motivo de suplício para ela ter erguido um edifício tão monumental como o Masp. Lina, segundo o autor, tinha em mente construir um espaço de liberdade para o homem comum, mas viu seu museu, que deveria ser uma instituição aberta para a cidade – daí o seu vão livre – se fechar e ser transformado num monumento ao regime que o financiou.

A vocação para o antagonismo fez de Lina, segundo Zeuler, uma pessoa angustiada, comumente vista como arrogante, a despeito de seus esforços para criar espaços generosos de convivência social. A biografia de Perrota-Bosch confirma: ela esbravejou com os dirigentes do Sesc Pompeia logo na inauguração por causa da primeira peça em cartaz, Os Filhos do Silêncio. O espetáculo pedia um palco italiano tradicional, pois a protagonista é muda, se comunica por sinais – e não fazia sentido falar por sinais só com metade da plateia, uma vez que o teatro tem duas arquibancadas em forma de arena.

Visitantes lendo na biblioteca do Sesc Pompeia projetado por Lina Foto: Lalo de Almeida/The New York Times

A despeito do episódio, as relações de Lina com o teatro sempre foram boas. Ela participou como cenógrafa de montagens históricas como do Teatro Oficina (Na Selva das Cidades, Gracias Señor) e irreverentes como Ubu Rei, do grupo Ornitorrinco, além de ter apoiado o teatro experimental quando foi diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, temporada em que assinou o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Como diretora do MAM/Bahia, segundo a biografia de Zeuler, sua meta era criar um acervo que incorporasse artefatos locais, o que parecia um horror à sociedade conservadora baiana – ainda mais em plena ditadura militar. O fim da história era previsível: Lina acabou se demitindo do cargo e foi trabalhar com o diretor Martim Gonçalves na Ópera dos Três Vinténs de Brecht e Weill. Pura afinidade ideológica. Foi nessa época que Lina começou a beber às escondidas, segundo o biógrafo Zeuler.

Pietro Bardi, ainda de acordo com sua biografia, não aprovava o crescente radicalismo de Lina – muito menos sua inclinação ao alcoolismo, que a fez beber até perfume quando o marido começou a esconder as garrafas de uísque no fim da vida, no momento em que se viu confinada na Casa de Vidro do Morumbi por problemas de locomoção. A casa foi palco de uma reunião que quase a levou aos porões da ditadura.

O episódio é contado na mesma biografia de Zeuler, ao narrar a prisão do pintor Sérgio Ferro, então envolvido com antagonistas do regime militar, como o guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), cofundador do grupo revolucionário Aliança Libertadora Nacional. Ferro, Marighella e outros se reuniram na Casa de Vidro, mas ela não teria participado do encontro, apenas cedido o local. Não esperou para contar sua versão. Fugiu para a Itália.

Fatos curiosos sobre as posições ideológicas de Lina são contados pelo biógrafo Perrota-Bosch em sua biografia. Um deles diz respeito à pintura dos dois pórticos de sustentação do Masp de vermelho, em 1990. Era a cor originalmente escolhida por Lina em 1968, quando o museu da Paulista foi inaugurado, justamente no ano do AI-5. Os militares reprimiram a audácia da arquiteta por razões óbvias. Anos mais tarde, ao encontrar o general Figueiredo, fustigou-o com a proposta de o governo contratar arquitetos para construir casas populares. “É uma ideia”, ironizou o ditador. “Não é uma ideia, senhor presidente, é um dever”, teria respondido a destemida Lina.

“As falas de Lina eram eruditas e heterodoxas, cativantes e contraditórias. Era uma polemista nata. Tinha um imenso talento para formular boutades”, escreve Perrota-Bosch na biografia, citando uma delas: “ Eu sou stalinista, militarista e antifeminista!” Lina, enfim, era como seu professor da faculdade Marcello Piacentini que, apesar de alinhado com o poder fascista, admirava profundamente o espírito modernista da Bauhaus, chegando a ser interlocutor de Gropius. As ligações de Pietro Bardi com Mussolini e o fascismo também não são exatamente um segredo. Mais de uma vez elas são mencionadas nas duas biografias.

Vale lembrar que, ao se conhecerem, nos anos 1940, Bardi era dono de uma galeria em Roma, o Studio d’Arte Palma. Como queria expandir seus negócios no pós-guerra, a América do Sul e sua elite endinheirada, ávida para ser legitimada pelo mundo da arte, pareceu uma boa escolha. Porém, o motivo verdadeiro, segundo a biografia de Zeuler R. Lima, “era a onda de acusações contra intelectuais italianos que colaboraram com o fascismo”. A conclusão da biografia de Zeuler: “Ela nunca abandonou seu romantismo idealista, para não falar do senso de responsabilidade social em relação aos menos privilegiados”.

A arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), conhecida pelo ousado projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e pelo Sesc Pompeia, entre outras obras, ganha agora duas biografias no exato momento em que a Bienal de Veneza concede pela primeira vez um Leão de Ouro a uma brasileira, ela, prêmio póstumo pelo conjunto de uma obra que se tornou referência internacional. Nascida Achillina Bo em Roma e naturalizada brasileira, Lina Bo Bardi passou à história como uma mulher ativa e revolucionária, que desafiou padrões comportamentais para exercer sua profissão. Em O Que Eu Queria era Ter História (Companhia das Letras), biografia escrita pelo arquiteto Zeuler R. Lima, Lina surge como uma mulher impetuosa, mas solitária, condenada à incompreensão num ambiente dominado por homens, seja na Itália ou no Brasil. No segundo livro, Lina: Uma Biografia (Editora Todavia), do também arquiteto Francesco Perrota-Bosch, o foco é outro: a identificação de Lina com a cultura popular brasileira.

A aquiteta Lina Bo Bardi no canteiro de obras do Masp em 1967 Foto: Lew Parrella/Instituto Bardi

As duas biografias, no entanto, convergem para o mesmo ponto: a libertação de uma mulher que parecia destinada a ficar sob a sombra do marido, Pietro Maria Bardi, criador e diretor do Masp, 15 anos mais velho que ela. Zeuler R. Lima vê essa emancipação como a luta de uma mulher irascível que soube se aproveitar do momento de transformação de um Brasil com sede de modernidade. Já Perrota-Bosch esboça o perfil de uma arquiteta engajada, simpatizante de regimes de esquerda, mas que viveu uma contradição, erguendo para si e o marido uma luxuosa mansão moderna no Morumbi (hoje, a Casa de Vidro) – ainda que, na época, o bairro fosse um imenso matagal.

Há uma evidente equivalência entre as duas biografias, apesar das sutis diferenças entre elas. Zeuler já publicou uma monografia e outros estudos sobre Lina, enxergando como um motivo de suplício para ela ter erguido um edifício tão monumental como o Masp. Lina, segundo o autor, tinha em mente construir um espaço de liberdade para o homem comum, mas viu seu museu, que deveria ser uma instituição aberta para a cidade – daí o seu vão livre – se fechar e ser transformado num monumento ao regime que o financiou.

A vocação para o antagonismo fez de Lina, segundo Zeuler, uma pessoa angustiada, comumente vista como arrogante, a despeito de seus esforços para criar espaços generosos de convivência social. A biografia de Perrota-Bosch confirma: ela esbravejou com os dirigentes do Sesc Pompeia logo na inauguração por causa da primeira peça em cartaz, Os Filhos do Silêncio. O espetáculo pedia um palco italiano tradicional, pois a protagonista é muda, se comunica por sinais – e não fazia sentido falar por sinais só com metade da plateia, uma vez que o teatro tem duas arquibancadas em forma de arena.

Visitantes lendo na biblioteca do Sesc Pompeia projetado por Lina Foto: Lalo de Almeida/The New York Times

A despeito do episódio, as relações de Lina com o teatro sempre foram boas. Ela participou como cenógrafa de montagens históricas como do Teatro Oficina (Na Selva das Cidades, Gracias Señor) e irreverentes como Ubu Rei, do grupo Ornitorrinco, além de ter apoiado o teatro experimental quando foi diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, temporada em que assinou o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Como diretora do MAM/Bahia, segundo a biografia de Zeuler, sua meta era criar um acervo que incorporasse artefatos locais, o que parecia um horror à sociedade conservadora baiana – ainda mais em plena ditadura militar. O fim da história era previsível: Lina acabou se demitindo do cargo e foi trabalhar com o diretor Martim Gonçalves na Ópera dos Três Vinténs de Brecht e Weill. Pura afinidade ideológica. Foi nessa época que Lina começou a beber às escondidas, segundo o biógrafo Zeuler.

Pietro Bardi, ainda de acordo com sua biografia, não aprovava o crescente radicalismo de Lina – muito menos sua inclinação ao alcoolismo, que a fez beber até perfume quando o marido começou a esconder as garrafas de uísque no fim da vida, no momento em que se viu confinada na Casa de Vidro do Morumbi por problemas de locomoção. A casa foi palco de uma reunião que quase a levou aos porões da ditadura.

O episódio é contado na mesma biografia de Zeuler, ao narrar a prisão do pintor Sérgio Ferro, então envolvido com antagonistas do regime militar, como o guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), cofundador do grupo revolucionário Aliança Libertadora Nacional. Ferro, Marighella e outros se reuniram na Casa de Vidro, mas ela não teria participado do encontro, apenas cedido o local. Não esperou para contar sua versão. Fugiu para a Itália.

Fatos curiosos sobre as posições ideológicas de Lina são contados pelo biógrafo Perrota-Bosch em sua biografia. Um deles diz respeito à pintura dos dois pórticos de sustentação do Masp de vermelho, em 1990. Era a cor originalmente escolhida por Lina em 1968, quando o museu da Paulista foi inaugurado, justamente no ano do AI-5. Os militares reprimiram a audácia da arquiteta por razões óbvias. Anos mais tarde, ao encontrar o general Figueiredo, fustigou-o com a proposta de o governo contratar arquitetos para construir casas populares. “É uma ideia”, ironizou o ditador. “Não é uma ideia, senhor presidente, é um dever”, teria respondido a destemida Lina.

“As falas de Lina eram eruditas e heterodoxas, cativantes e contraditórias. Era uma polemista nata. Tinha um imenso talento para formular boutades”, escreve Perrota-Bosch na biografia, citando uma delas: “ Eu sou stalinista, militarista e antifeminista!” Lina, enfim, era como seu professor da faculdade Marcello Piacentini que, apesar de alinhado com o poder fascista, admirava profundamente o espírito modernista da Bauhaus, chegando a ser interlocutor de Gropius. As ligações de Pietro Bardi com Mussolini e o fascismo também não são exatamente um segredo. Mais de uma vez elas são mencionadas nas duas biografias.

Vale lembrar que, ao se conhecerem, nos anos 1940, Bardi era dono de uma galeria em Roma, o Studio d’Arte Palma. Como queria expandir seus negócios no pós-guerra, a América do Sul e sua elite endinheirada, ávida para ser legitimada pelo mundo da arte, pareceu uma boa escolha. Porém, o motivo verdadeiro, segundo a biografia de Zeuler R. Lima, “era a onda de acusações contra intelectuais italianos que colaboraram com o fascismo”. A conclusão da biografia de Zeuler: “Ela nunca abandonou seu romantismo idealista, para não falar do senso de responsabilidade social em relação aos menos privilegiados”.

A arquiteta Lina Bo Bardi (1914-1992), conhecida pelo ousado projeto do Museu de Arte de São Paulo (Masp) e pelo Sesc Pompeia, entre outras obras, ganha agora duas biografias no exato momento em que a Bienal de Veneza concede pela primeira vez um Leão de Ouro a uma brasileira, ela, prêmio póstumo pelo conjunto de uma obra que se tornou referência internacional. Nascida Achillina Bo em Roma e naturalizada brasileira, Lina Bo Bardi passou à história como uma mulher ativa e revolucionária, que desafiou padrões comportamentais para exercer sua profissão. Em O Que Eu Queria era Ter História (Companhia das Letras), biografia escrita pelo arquiteto Zeuler R. Lima, Lina surge como uma mulher impetuosa, mas solitária, condenada à incompreensão num ambiente dominado por homens, seja na Itália ou no Brasil. No segundo livro, Lina: Uma Biografia (Editora Todavia), do também arquiteto Francesco Perrota-Bosch, o foco é outro: a identificação de Lina com a cultura popular brasileira.

A aquiteta Lina Bo Bardi no canteiro de obras do Masp em 1967 Foto: Lew Parrella/Instituto Bardi

As duas biografias, no entanto, convergem para o mesmo ponto: a libertação de uma mulher que parecia destinada a ficar sob a sombra do marido, Pietro Maria Bardi, criador e diretor do Masp, 15 anos mais velho que ela. Zeuler R. Lima vê essa emancipação como a luta de uma mulher irascível que soube se aproveitar do momento de transformação de um Brasil com sede de modernidade. Já Perrota-Bosch esboça o perfil de uma arquiteta engajada, simpatizante de regimes de esquerda, mas que viveu uma contradição, erguendo para si e o marido uma luxuosa mansão moderna no Morumbi (hoje, a Casa de Vidro) – ainda que, na época, o bairro fosse um imenso matagal.

Há uma evidente equivalência entre as duas biografias, apesar das sutis diferenças entre elas. Zeuler já publicou uma monografia e outros estudos sobre Lina, enxergando como um motivo de suplício para ela ter erguido um edifício tão monumental como o Masp. Lina, segundo o autor, tinha em mente construir um espaço de liberdade para o homem comum, mas viu seu museu, que deveria ser uma instituição aberta para a cidade – daí o seu vão livre – se fechar e ser transformado num monumento ao regime que o financiou.

A vocação para o antagonismo fez de Lina, segundo Zeuler, uma pessoa angustiada, comumente vista como arrogante, a despeito de seus esforços para criar espaços generosos de convivência social. A biografia de Perrota-Bosch confirma: ela esbravejou com os dirigentes do Sesc Pompeia logo na inauguração por causa da primeira peça em cartaz, Os Filhos do Silêncio. O espetáculo pedia um palco italiano tradicional, pois a protagonista é muda, se comunica por sinais – e não fazia sentido falar por sinais só com metade da plateia, uma vez que o teatro tem duas arquibancadas em forma de arena.

Visitantes lendo na biblioteca do Sesc Pompeia projetado por Lina Foto: Lalo de Almeida/The New York Times

A despeito do episódio, as relações de Lina com o teatro sempre foram boas. Ela participou como cenógrafa de montagens históricas como do Teatro Oficina (Na Selva das Cidades, Gracias Señor) e irreverentes como Ubu Rei, do grupo Ornitorrinco, além de ter apoiado o teatro experimental quando foi diretora do Museu de Arte Moderna da Bahia, temporada em que assinou o projeto de recuperação do Solar do Unhão. Como diretora do MAM/Bahia, segundo a biografia de Zeuler, sua meta era criar um acervo que incorporasse artefatos locais, o que parecia um horror à sociedade conservadora baiana – ainda mais em plena ditadura militar. O fim da história era previsível: Lina acabou se demitindo do cargo e foi trabalhar com o diretor Martim Gonçalves na Ópera dos Três Vinténs de Brecht e Weill. Pura afinidade ideológica. Foi nessa época que Lina começou a beber às escondidas, segundo o biógrafo Zeuler.

Pietro Bardi, ainda de acordo com sua biografia, não aprovava o crescente radicalismo de Lina – muito menos sua inclinação ao alcoolismo, que a fez beber até perfume quando o marido começou a esconder as garrafas de uísque no fim da vida, no momento em que se viu confinada na Casa de Vidro do Morumbi por problemas de locomoção. A casa foi palco de uma reunião que quase a levou aos porões da ditadura.

O episódio é contado na mesma biografia de Zeuler, ao narrar a prisão do pintor Sérgio Ferro, então envolvido com antagonistas do regime militar, como o guerrilheiro baiano Carlos Marighella (1911-1969), cofundador do grupo revolucionário Aliança Libertadora Nacional. Ferro, Marighella e outros se reuniram na Casa de Vidro, mas ela não teria participado do encontro, apenas cedido o local. Não esperou para contar sua versão. Fugiu para a Itália.

Fatos curiosos sobre as posições ideológicas de Lina são contados pelo biógrafo Perrota-Bosch em sua biografia. Um deles diz respeito à pintura dos dois pórticos de sustentação do Masp de vermelho, em 1990. Era a cor originalmente escolhida por Lina em 1968, quando o museu da Paulista foi inaugurado, justamente no ano do AI-5. Os militares reprimiram a audácia da arquiteta por razões óbvias. Anos mais tarde, ao encontrar o general Figueiredo, fustigou-o com a proposta de o governo contratar arquitetos para construir casas populares. “É uma ideia”, ironizou o ditador. “Não é uma ideia, senhor presidente, é um dever”, teria respondido a destemida Lina.

“As falas de Lina eram eruditas e heterodoxas, cativantes e contraditórias. Era uma polemista nata. Tinha um imenso talento para formular boutades”, escreve Perrota-Bosch na biografia, citando uma delas: “ Eu sou stalinista, militarista e antifeminista!” Lina, enfim, era como seu professor da faculdade Marcello Piacentini que, apesar de alinhado com o poder fascista, admirava profundamente o espírito modernista da Bauhaus, chegando a ser interlocutor de Gropius. As ligações de Pietro Bardi com Mussolini e o fascismo também não são exatamente um segredo. Mais de uma vez elas são mencionadas nas duas biografias.

Vale lembrar que, ao se conhecerem, nos anos 1940, Bardi era dono de uma galeria em Roma, o Studio d’Arte Palma. Como queria expandir seus negócios no pós-guerra, a América do Sul e sua elite endinheirada, ávida para ser legitimada pelo mundo da arte, pareceu uma boa escolha. Porém, o motivo verdadeiro, segundo a biografia de Zeuler R. Lima, “era a onda de acusações contra intelectuais italianos que colaboraram com o fascismo”. A conclusão da biografia de Zeuler: “Ela nunca abandonou seu romantismo idealista, para não falar do senso de responsabilidade social em relação aos menos privilegiados”.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.