Opinião|Menino, este judeu da burguesia industrial alemã sobreviveu ao Holocausto. No Brasil, fez história


Hans Günter Flieg era fotógrafo amador quando, aos 16, foi deportado para campo nazista. Resgatado, desembarcou no País em 1939 e se tornou fotógrafo publicitário e de arquitetura. Conheça o legado do ‘poeta do concreto e do aço’, que morreu aos 101 anos

Por Luis S. Krausz

Hans Günter Flieg, um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil, morreu em São Paulo no início deste mês, aos 101 anos de idade. Flieg foi um daqueles refugiados judeus da Alemanha nazista que aportaram no Brasil arrastados pelas contingências políticas e que, juntamente com outros fotógrafos e fotógrafas de mesma origem, como Peter Scheyer, Gertrud Altschul, Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Werner Haberkorn, para citar apenas os mais conhecidos, revolucionaram a cultura fotográfica do País, nela introduzindo uma nova estética, influenciada pela Nova Objetividade alemã e pelo estilo da Bauhaus, possibilitada, em boa parte, pela agilidade das então recém-inventadas câmeras de 35 mm.

Flieg chegou ao Brasil aos 16 anos, no final de 1939, quando a 2ª Guerra Mundial já havia começado. Filho de uma família da burguesia industrial de Chemnitz, descobriu sua vocação fotográfica aos 15 de maneira um tanto inesperada.

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Depois da Noite dos Cristais, em novembro de 1938, seus pais, que até àquela altura ainda não haviam se decidido pela emigração, apesar do cerco cada vez mais apertado que o governo nazista fechava em torno dos judeus alemães, se deram conta de que não havia mais esperanças de continuarem com suas vidas no país onde haviam nascido, e ao qual julgavam pertencer.

Hans Günter Flieg limpando a câmera Linhof em 1953. São Paulo, Brasil. Foto: Otto Svoboda/Acervo IMS

De fato, a família de Flieg, como tantas e tantas outras famílias judias alemãs, via no seu pertencimento à cultura germânica um dos fundamentos de sua identidade. Sobre seu avô Hagü, como Flieg era conhecido entre os amigos e em família, contou certa vez que, todos os anos, no varão, ele retornava ao balneário de Karlsbad para uma temporada de descanso, e que invariavelmente levava consigo seu exemplar do Faust, de Goethe, o qual estudava com a mesma minúcia e com o mesmo fervor que os judeus da era anterior à Emancipação judaica dedicavam ao estudo dos textos sagrados do judaísmo.

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No centro da cultura familiar de Hagü estava o conceito goetheiano de Bildung, uma formação humanística abrangente que, à maneira da paideia dos antigos gregos, buscava o bom e o belo por meio de valores universais e perenes. Seu pai, Karl fora, em Chemnitz, um grande amigo das artes e um dos patrocinadores da pinacoteca local. A casa da família, inclusive, foi decorada com afrescos de um dos mais renomados artistas plásticos da cidade à época – de cujo nome já não me lembro. Este mesmo artista, poucos anos depois, não hesitou em virar a cara ao encontrar seus antigos patronos na rua, depois que entraram em vigor as infames leis raciais do nazismo, que obrigavam os judeus a portarem estrelas amarelas costuradas às suas roupas. E sussurrou, entre os dentes: “os tempos mudaram!”

Peterco - Comércio e Indústria de Eletricidade: Iluminação - Chaves e tomadas blindadas - conectores, Vila Iza - Santo Amaro, São Paulo, 1957. Gelatina e prata. Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo IMS

Se a fotografia de Hagü sempre se destacou por suas qualidades intrínsecas, isto sem dúvida se deve à educação que ele recebeu, não em instituições de ensino superior, às quais não teve acesso por causa das circunstâncias ligadas à emigração, mas em sua casa, por meio de uma inteligência e lucidez incomuns, do cultivo da leitura e do interesse pelas artes visuais. É daí que provém seu apuradíssimo e evidente senso estético.

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Quando seus pais se decidiram pela emigração – o que, àquela altura, significava deixar para trás todos os bens e sair da Alemanha com pouco além da roupa do corpo – ficou claro que, no novo país, ele teria que trabalhar e que não poderia se dedicar aos estudos superiores. Era, portanto, preciso encontrar rapidamente uma profissão para o adolescente de 15 anos. A primeira ideia de seus pais foi que ele se formasse como confeiteiro na Alemanha para ter uma profissão no novo país, enquanto a família aguardava a documentação necessária para a viagem – o que, em 1938, quando o mundo fechou suas portas aos emigrantes judeus, não era nada fácil.

Hagü, no entanto, já era fotógrafo amador e um encontro com Grete Karplus, uma conhecida fotógrafa de Berlim, amiga de Walter Benjamin, fez com que ele decidisse se tornar seu aprendiz em vez de se tornar aprendiz de confeiteiro.

Passado quase um ano de aprendizado, os pais ainda não tinham conseguido obter os documentos necessários à emigração. Foram meses de angústia e ansiedade que culminaram com a deportação do jovem de 16 anos para um campo de trabalhos forçados, onde foi engajado na colheita de batatas. Ainda assim, no último instante, por assim dizer, a família conseguiu pôr-se a caminho do Brasil e conseguiu, igualmente, a libertação de Hagü, que em 1939 aportou em Santos com os pais e o irmão mais novo, Stefan. A guerra já havia começado e as portas estavam se fechando.

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Na bagagem da família vinha uma Leica 35mm, com objetivas intercambiáveis, adquirida na Alemanha graças a uma concessão especial das autoridades, que livraram do confisco compulsório esses objetos que se destinavam à sobrevivência dos emigrantes em seu país de destino.

Hagü nunca viu o próprio trabalho como o de um artista e sim com a austeridade que cabe a um profissional competente. Foi como fotógrafo publicitário e de arquitetura que ele descreveu sua brilhante carreira. No entanto, a qualidade intrínseca das imagens que produziu começou a chamar a atenção dos críticos de fotografia e, já na década de 1980, passou a ser conhecido como o poeta do concreto e do aço. Pouco a pouco o mundo descobria, por trás daquelas fotografias supostamente tão objetivas, todo um repertório estético elaboradíssimo, e mesmo a expressão de um olhar filosófico.

Foto de Hans Gunter Flieg: Equipamentos e Instalações Elétricas Industriais Brown Boveri, Osasco - SP, 196. Gelatina e prata. Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo Instituto Moreira Salles
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Depois de uma exposição no Museu Judaico de Berlim, realizada em 2006, dedicada ao tema da emigração judaica da Alemanha sob o nazismo, seu trabalho passou a chamar a atenção de críticos e curadores alemães. Cinco anos depois, uma grande mostra retrospectiva de sua obra foi organizada no Martin Gropius Bau, um dos mais prestigiosos espaços para as artes plásticas de Berlim. De lá, a mostra seguiu para Chemnitz, sua cidade natal.

Hagü, que jamais havia deixado o Brasil desde a sua chegada aqui, em 1939, foi convidado a viajar à Alemanha para inaugurar essa mostra e, depois de muita hesitação, resolveu aceitar o convite. Rever a Alemanha setenta anos depois de tê-la deixado foi, mais do que qualquer coisa, um tremendo choque, para o qual, no entanto, ele havia se preparado ao longo de muito tempo.

Hans Günter Flieg em 2014; o fotógrafo morreu no início de setembro, aos 101 anos Foto: Tiago Queiroz/Estadão
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Seu acervo de milhares e milhares de negativos hoje pertence ao Instituto Moreira Salles, que no ano passado organizou uma grande exposição em comemoração ao centenário de Flieg. E seu legado artístico, hoje internacionalmente reconhecido, influenciou de maneira decisiva os rumos da arte fotográfica no Brasil.

O falecimento de Hagü, para além de tudo isto, marca também o desaparecimento da geração à qual ele pertenceu, a última cuja formação se deu no contexto de uma curiosa e extraordinariamente fecunda elipse cultural, cujos pontos focais foram, por um lado, o legado de Moisés e, por outro, o da tradição humanista germânica do século 19.

Hans Günter Flieg, um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil, morreu em São Paulo no início deste mês, aos 101 anos de idade. Flieg foi um daqueles refugiados judeus da Alemanha nazista que aportaram no Brasil arrastados pelas contingências políticas e que, juntamente com outros fotógrafos e fotógrafas de mesma origem, como Peter Scheyer, Gertrud Altschul, Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Werner Haberkorn, para citar apenas os mais conhecidos, revolucionaram a cultura fotográfica do País, nela introduzindo uma nova estética, influenciada pela Nova Objetividade alemã e pelo estilo da Bauhaus, possibilitada, em boa parte, pela agilidade das então recém-inventadas câmeras de 35 mm.

Flieg chegou ao Brasil aos 16 anos, no final de 1939, quando a 2ª Guerra Mundial já havia começado. Filho de uma família da burguesia industrial de Chemnitz, descobriu sua vocação fotográfica aos 15 de maneira um tanto inesperada.

Depois da Noite dos Cristais, em novembro de 1938, seus pais, que até àquela altura ainda não haviam se decidido pela emigração, apesar do cerco cada vez mais apertado que o governo nazista fechava em torno dos judeus alemães, se deram conta de que não havia mais esperanças de continuarem com suas vidas no país onde haviam nascido, e ao qual julgavam pertencer.

Hans Günter Flieg limpando a câmera Linhof em 1953. São Paulo, Brasil. Foto: Otto Svoboda/Acervo IMS

De fato, a família de Flieg, como tantas e tantas outras famílias judias alemãs, via no seu pertencimento à cultura germânica um dos fundamentos de sua identidade. Sobre seu avô Hagü, como Flieg era conhecido entre os amigos e em família, contou certa vez que, todos os anos, no varão, ele retornava ao balneário de Karlsbad para uma temporada de descanso, e que invariavelmente levava consigo seu exemplar do Faust, de Goethe, o qual estudava com a mesma minúcia e com o mesmo fervor que os judeus da era anterior à Emancipação judaica dedicavam ao estudo dos textos sagrados do judaísmo.

No centro da cultura familiar de Hagü estava o conceito goetheiano de Bildung, uma formação humanística abrangente que, à maneira da paideia dos antigos gregos, buscava o bom e o belo por meio de valores universais e perenes. Seu pai, Karl fora, em Chemnitz, um grande amigo das artes e um dos patrocinadores da pinacoteca local. A casa da família, inclusive, foi decorada com afrescos de um dos mais renomados artistas plásticos da cidade à época – de cujo nome já não me lembro. Este mesmo artista, poucos anos depois, não hesitou em virar a cara ao encontrar seus antigos patronos na rua, depois que entraram em vigor as infames leis raciais do nazismo, que obrigavam os judeus a portarem estrelas amarelas costuradas às suas roupas. E sussurrou, entre os dentes: “os tempos mudaram!”

Peterco - Comércio e Indústria de Eletricidade: Iluminação - Chaves e tomadas blindadas - conectores, Vila Iza - Santo Amaro, São Paulo, 1957. Gelatina e prata. Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo IMS

Se a fotografia de Hagü sempre se destacou por suas qualidades intrínsecas, isto sem dúvida se deve à educação que ele recebeu, não em instituições de ensino superior, às quais não teve acesso por causa das circunstâncias ligadas à emigração, mas em sua casa, por meio de uma inteligência e lucidez incomuns, do cultivo da leitura e do interesse pelas artes visuais. É daí que provém seu apuradíssimo e evidente senso estético.

Quando seus pais se decidiram pela emigração – o que, àquela altura, significava deixar para trás todos os bens e sair da Alemanha com pouco além da roupa do corpo – ficou claro que, no novo país, ele teria que trabalhar e que não poderia se dedicar aos estudos superiores. Era, portanto, preciso encontrar rapidamente uma profissão para o adolescente de 15 anos. A primeira ideia de seus pais foi que ele se formasse como confeiteiro na Alemanha para ter uma profissão no novo país, enquanto a família aguardava a documentação necessária para a viagem – o que, em 1938, quando o mundo fechou suas portas aos emigrantes judeus, não era nada fácil.

Hagü, no entanto, já era fotógrafo amador e um encontro com Grete Karplus, uma conhecida fotógrafa de Berlim, amiga de Walter Benjamin, fez com que ele decidisse se tornar seu aprendiz em vez de se tornar aprendiz de confeiteiro.

Passado quase um ano de aprendizado, os pais ainda não tinham conseguido obter os documentos necessários à emigração. Foram meses de angústia e ansiedade que culminaram com a deportação do jovem de 16 anos para um campo de trabalhos forçados, onde foi engajado na colheita de batatas. Ainda assim, no último instante, por assim dizer, a família conseguiu pôr-se a caminho do Brasil e conseguiu, igualmente, a libertação de Hagü, que em 1939 aportou em Santos com os pais e o irmão mais novo, Stefan. A guerra já havia começado e as portas estavam se fechando.

Na bagagem da família vinha uma Leica 35mm, com objetivas intercambiáveis, adquirida na Alemanha graças a uma concessão especial das autoridades, que livraram do confisco compulsório esses objetos que se destinavam à sobrevivência dos emigrantes em seu país de destino.

Hagü nunca viu o próprio trabalho como o de um artista e sim com a austeridade que cabe a um profissional competente. Foi como fotógrafo publicitário e de arquitetura que ele descreveu sua brilhante carreira. No entanto, a qualidade intrínseca das imagens que produziu começou a chamar a atenção dos críticos de fotografia e, já na década de 1980, passou a ser conhecido como o poeta do concreto e do aço. Pouco a pouco o mundo descobria, por trás daquelas fotografias supostamente tão objetivas, todo um repertório estético elaboradíssimo, e mesmo a expressão de um olhar filosófico.

Foto de Hans Gunter Flieg: Equipamentos e Instalações Elétricas Industriais Brown Boveri, Osasco - SP, 196. Gelatina e prata. Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo Instituto Moreira Salles

Depois de uma exposição no Museu Judaico de Berlim, realizada em 2006, dedicada ao tema da emigração judaica da Alemanha sob o nazismo, seu trabalho passou a chamar a atenção de críticos e curadores alemães. Cinco anos depois, uma grande mostra retrospectiva de sua obra foi organizada no Martin Gropius Bau, um dos mais prestigiosos espaços para as artes plásticas de Berlim. De lá, a mostra seguiu para Chemnitz, sua cidade natal.

Hagü, que jamais havia deixado o Brasil desde a sua chegada aqui, em 1939, foi convidado a viajar à Alemanha para inaugurar essa mostra e, depois de muita hesitação, resolveu aceitar o convite. Rever a Alemanha setenta anos depois de tê-la deixado foi, mais do que qualquer coisa, um tremendo choque, para o qual, no entanto, ele havia se preparado ao longo de muito tempo.

Hans Günter Flieg em 2014; o fotógrafo morreu no início de setembro, aos 101 anos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Seu acervo de milhares e milhares de negativos hoje pertence ao Instituto Moreira Salles, que no ano passado organizou uma grande exposição em comemoração ao centenário de Flieg. E seu legado artístico, hoje internacionalmente reconhecido, influenciou de maneira decisiva os rumos da arte fotográfica no Brasil.

O falecimento de Hagü, para além de tudo isto, marca também o desaparecimento da geração à qual ele pertenceu, a última cuja formação se deu no contexto de uma curiosa e extraordinariamente fecunda elipse cultural, cujos pontos focais foram, por um lado, o legado de Moisés e, por outro, o da tradição humanista germânica do século 19.

Hans Günter Flieg, um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil, morreu em São Paulo no início deste mês, aos 101 anos de idade. Flieg foi um daqueles refugiados judeus da Alemanha nazista que aportaram no Brasil arrastados pelas contingências políticas e que, juntamente com outros fotógrafos e fotógrafas de mesma origem, como Peter Scheyer, Gertrud Altschul, Hildegard Rosenthal, Alice Brill e Werner Haberkorn, para citar apenas os mais conhecidos, revolucionaram a cultura fotográfica do País, nela introduzindo uma nova estética, influenciada pela Nova Objetividade alemã e pelo estilo da Bauhaus, possibilitada, em boa parte, pela agilidade das então recém-inventadas câmeras de 35 mm.

Flieg chegou ao Brasil aos 16 anos, no final de 1939, quando a 2ª Guerra Mundial já havia começado. Filho de uma família da burguesia industrial de Chemnitz, descobriu sua vocação fotográfica aos 15 de maneira um tanto inesperada.

Depois da Noite dos Cristais, em novembro de 1938, seus pais, que até àquela altura ainda não haviam se decidido pela emigração, apesar do cerco cada vez mais apertado que o governo nazista fechava em torno dos judeus alemães, se deram conta de que não havia mais esperanças de continuarem com suas vidas no país onde haviam nascido, e ao qual julgavam pertencer.

Hans Günter Flieg limpando a câmera Linhof em 1953. São Paulo, Brasil. Foto: Otto Svoboda/Acervo IMS

De fato, a família de Flieg, como tantas e tantas outras famílias judias alemãs, via no seu pertencimento à cultura germânica um dos fundamentos de sua identidade. Sobre seu avô Hagü, como Flieg era conhecido entre os amigos e em família, contou certa vez que, todos os anos, no varão, ele retornava ao balneário de Karlsbad para uma temporada de descanso, e que invariavelmente levava consigo seu exemplar do Faust, de Goethe, o qual estudava com a mesma minúcia e com o mesmo fervor que os judeus da era anterior à Emancipação judaica dedicavam ao estudo dos textos sagrados do judaísmo.

No centro da cultura familiar de Hagü estava o conceito goetheiano de Bildung, uma formação humanística abrangente que, à maneira da paideia dos antigos gregos, buscava o bom e o belo por meio de valores universais e perenes. Seu pai, Karl fora, em Chemnitz, um grande amigo das artes e um dos patrocinadores da pinacoteca local. A casa da família, inclusive, foi decorada com afrescos de um dos mais renomados artistas plásticos da cidade à época – de cujo nome já não me lembro. Este mesmo artista, poucos anos depois, não hesitou em virar a cara ao encontrar seus antigos patronos na rua, depois que entraram em vigor as infames leis raciais do nazismo, que obrigavam os judeus a portarem estrelas amarelas costuradas às suas roupas. E sussurrou, entre os dentes: “os tempos mudaram!”

Peterco - Comércio e Indústria de Eletricidade: Iluminação - Chaves e tomadas blindadas - conectores, Vila Iza - Santo Amaro, São Paulo, 1957. Gelatina e prata. Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo IMS

Se a fotografia de Hagü sempre se destacou por suas qualidades intrínsecas, isto sem dúvida se deve à educação que ele recebeu, não em instituições de ensino superior, às quais não teve acesso por causa das circunstâncias ligadas à emigração, mas em sua casa, por meio de uma inteligência e lucidez incomuns, do cultivo da leitura e do interesse pelas artes visuais. É daí que provém seu apuradíssimo e evidente senso estético.

Quando seus pais se decidiram pela emigração – o que, àquela altura, significava deixar para trás todos os bens e sair da Alemanha com pouco além da roupa do corpo – ficou claro que, no novo país, ele teria que trabalhar e que não poderia se dedicar aos estudos superiores. Era, portanto, preciso encontrar rapidamente uma profissão para o adolescente de 15 anos. A primeira ideia de seus pais foi que ele se formasse como confeiteiro na Alemanha para ter uma profissão no novo país, enquanto a família aguardava a documentação necessária para a viagem – o que, em 1938, quando o mundo fechou suas portas aos emigrantes judeus, não era nada fácil.

Hagü, no entanto, já era fotógrafo amador e um encontro com Grete Karplus, uma conhecida fotógrafa de Berlim, amiga de Walter Benjamin, fez com que ele decidisse se tornar seu aprendiz em vez de se tornar aprendiz de confeiteiro.

Passado quase um ano de aprendizado, os pais ainda não tinham conseguido obter os documentos necessários à emigração. Foram meses de angústia e ansiedade que culminaram com a deportação do jovem de 16 anos para um campo de trabalhos forçados, onde foi engajado na colheita de batatas. Ainda assim, no último instante, por assim dizer, a família conseguiu pôr-se a caminho do Brasil e conseguiu, igualmente, a libertação de Hagü, que em 1939 aportou em Santos com os pais e o irmão mais novo, Stefan. A guerra já havia começado e as portas estavam se fechando.

Na bagagem da família vinha uma Leica 35mm, com objetivas intercambiáveis, adquirida na Alemanha graças a uma concessão especial das autoridades, que livraram do confisco compulsório esses objetos que se destinavam à sobrevivência dos emigrantes em seu país de destino.

Hagü nunca viu o próprio trabalho como o de um artista e sim com a austeridade que cabe a um profissional competente. Foi como fotógrafo publicitário e de arquitetura que ele descreveu sua brilhante carreira. No entanto, a qualidade intrínseca das imagens que produziu começou a chamar a atenção dos críticos de fotografia e, já na década de 1980, passou a ser conhecido como o poeta do concreto e do aço. Pouco a pouco o mundo descobria, por trás daquelas fotografias supostamente tão objetivas, todo um repertório estético elaboradíssimo, e mesmo a expressão de um olhar filosófico.

Foto de Hans Gunter Flieg: Equipamentos e Instalações Elétricas Industriais Brown Boveri, Osasco - SP, 196. Gelatina e prata. Foto: Hans Gunter Flieg/Acervo Instituto Moreira Salles

Depois de uma exposição no Museu Judaico de Berlim, realizada em 2006, dedicada ao tema da emigração judaica da Alemanha sob o nazismo, seu trabalho passou a chamar a atenção de críticos e curadores alemães. Cinco anos depois, uma grande mostra retrospectiva de sua obra foi organizada no Martin Gropius Bau, um dos mais prestigiosos espaços para as artes plásticas de Berlim. De lá, a mostra seguiu para Chemnitz, sua cidade natal.

Hagü, que jamais havia deixado o Brasil desde a sua chegada aqui, em 1939, foi convidado a viajar à Alemanha para inaugurar essa mostra e, depois de muita hesitação, resolveu aceitar o convite. Rever a Alemanha setenta anos depois de tê-la deixado foi, mais do que qualquer coisa, um tremendo choque, para o qual, no entanto, ele havia se preparado ao longo de muito tempo.

Hans Günter Flieg em 2014; o fotógrafo morreu no início de setembro, aos 101 anos Foto: Tiago Queiroz/Estadão

Seu acervo de milhares e milhares de negativos hoje pertence ao Instituto Moreira Salles, que no ano passado organizou uma grande exposição em comemoração ao centenário de Flieg. E seu legado artístico, hoje internacionalmente reconhecido, influenciou de maneira decisiva os rumos da arte fotográfica no Brasil.

O falecimento de Hagü, para além de tudo isto, marca também o desaparecimento da geração à qual ele pertenceu, a última cuja formação se deu no contexto de uma curiosa e extraordinariamente fecunda elipse cultural, cujos pontos focais foram, por um lado, o legado de Moisés e, por outro, o da tradição humanista germânica do século 19.

Opinião por Luis S. Krausz

Professor livre-docente de Literatura Hebraica e Judaica na Universidade de São Paulo e escritor

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