Ao menos desde o fim da década de 1980, Elizabeth Jobim realiza uma pintura de qualidade, cujo movimento incorpora muitas questões levantadas pelo prolixo palavreado que acompanha a produção artística contemporânea institucionalizada, sem se confundir com ela. Mesmo em meio a uma situação confusa e muito dada a efeitos pirotécnicos - é significativo que a primeira exposição de arte contemporânea do novo curador do Masp, Adriano Pedrosa, se intitule Playgrounds 2016 -, a pintura de Elizabeth tem mantido um norte razoavelmente claro, que se torna mais límpido à medida que sua produção se desdobra. Nos anos 1980, seu trabalho mantinha um vínculo com o expressionismo moderno, uma gestualidade contida que se encaminhou para a realização de naturezas-mortas paradoxais. Gênero por excelência da ordenação não violenta das coisas díspares do mundo - frutas, garrafas, peixes, copos de estanho, etc. -, nas mãos de Beth Jobim a natureza-morta, adquiriu uma espécie de disponibilidade excessiva. E as pedras que serviam de motivo para seu trabalho pareciam derreter como blocos de gelo. Tal como vejo seu trabalho, a artista revelava o aspecto desastroso que o controle sobre a realidade, representado idealmente por esse gênero pictórico tão rico e generoso, acarretara no mundo contemporâneo. A capacidade humana de intervir sobre o mundo, o desenvolvimento espantoso das tecnologias, levara a um desequilíbrio sobre o frágil sistema natural que as catástrofes de nossos dias apenas confirmam.
Aos poucos, esses vestígios de expressividade - as pinceladas tensas, as tintas que escorriam - foram dando lugar a uma pintura mais impessoal, realizada sem os tradicionais pincéis, a tinta sendo aplicada meio mecanicamente com rolinhos de espuma. A trama das pinturas, porém, ainda mantinha relação com as “naturezas-mortas”. Estávamos no começo do século 21. Em breve, a artista deu mais um passo. As telas passaram a se justapor e a formar ambientes coloridos, lembrando a concepção das Ninfeias de Monet da Orangerie ou a piscina que Matisse desenhou com papéis coloridos nas paredes do seu quarto do Hotel Regina, em Nice, hoje no acervo do MoMA. O olhar retrospectivo sobre uma obra tende a pacificar trajetórias que não têm nada de sereno ou linear. Só os artistas sabem a dura realidade de mudar sem perder o passo. Acredito que essas passagens foram fortemente influenciadas pela arte contemporânea norte-americana, sobretudo depois de uma longa temporada de estudos de Beth Jobim em Nova York. A maior impessoalidade de sua pintura e o movimento em direção ao espaço tridimensional têm muito a ver com as discussões levantadas pelo minimalismo americano. A atual exposição na Galeria Raquel Arnaud, Arranjos, acompanhada pelo lançamento de um livro sobre o trabalho da artista, com texto de Paulo Venâncio Filho, aponta para mais uma mudança na trajetória de Elizabeth Jobim. O “arranjo” do título da mostra diz respeito à concatenação de trabalhos tridimensionais de parede e diversos volumes tridimensionais dispostos no chão da galeria. Suas cores agora ganham o espaço associadas a volumes assemelhados aos objetos do mundo. Diferentemente da retórica contemporânea, que solicita uma indiferenciação entre arte e vida, seu trabalho busca realizar um balizamento da vida, uma pontuação que nos faz perceber as articulações do mundo, tão distantes da confusa pasta em que se quer transformá-lo. Forças e movimentos diferentes produzem uma dinâmica que torna a participação na realidade um fenômeno generoso, já que a concepção conservadora de uma realidade estável e permanente é feita em pedaços, podendo então se rearticular. Acredito que nesse processo algo se perdeu. Por exemplo, a ironia algo beckettiana das naturezas-mortas amolecidas. É certo, porém, que meu olhar envelheceu mais que o de Elizabeth Jobim. A vontade de restituir ao mundo uma fluidez absoluta que tende a indiferenciar atividades e ações diversas pode soar radical a um discurso que, como o dominante na arte contemporânea mais regressiva, finge abrir mão de sua área de atuação (o meio de arte) apenas para poder controlá-la melhor. Vem daí o poder dos curadores nos dias que correm. Todavia há quem considere a Disneylândia o melhor dos mundos.
ELIZABETH JOBIM Galeria Raquel Arnaud. Rua Fidalga, 125, V, Madalena, tel. 3083-6322. 2ª a 6ª, 10h/ 19h; sáb., 12h/ 16h. Grátis. Até 28/5