Museus fechados não impedem arte de chegar ao público


Sem recorrer à internet, uma série de iniciativas vem buscando encontrar maneiras criativas de contornar as restrições da pandemia

Por Júlia Corrêa

Durante a 2ª. Guerra Mundial, a National Gallery, em Londres, precisava encontrar uma forma de proteger seu acervo dos constantes bombardeios em território inglês. Foi o historiador da arte Kenneth Clark, então diretor do museu, o responsável por uma missão que levaria as cerca de 2.000 obras da coleção ao subterrâneo de uma mina no País de Gales. Engana-se quem pensa que os britânicos ficaram sem acesso à arte. Clark não só fez do ambiente do museu palco para uma série de concertos diurnos como criou o programa Picture of the Month — a cada edição, uma pintura era retirada cuidadosamente do abrigo para ser exibida ao público.

Os tempos não são de guerra, mas os perigos trazidos pelo novo coronavírus impuseram diversas restrições ao universo das artes. Nos últimos meses, a alternativa mais comum encontrada por museus e galerias para manter as atividades foi a adaptação das exposições para o ambiente virtual. Sem recorrer à internet, no entanto, uma série de iniciativas vem buscando encontrar maneiras criativas de aproximar a arte do público.

Outdoor com obra de Aline Motta, em Rio Branco. Foto: Odair Leal
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Mostras ao ar livre saem em vantagem no contexto de isolamento social. No Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), uma exposição em cartaz possibilita que quem passa pela frente do local, na Avenida Europa, aprecie um conjunto de obras produzidas por seis artistas, incluindo Yoko Ono.

Aliás, o título da mostra, O Ar que Nos Une, tem inspiração em um texto da obra Grapefruit: a Book of Instructions and Drawings, da artista e ativista japonesa. “A Yoko coloca que o ar é aquilo que nos conecta e aquilo que nos separa. Era algo que estava na minha cabeça e parecia que tinha encontrado o contexto perfeito para acontecer, que era a área externa do museu”, explica a curadora Galciani Neves, destacando ainda a inspiração na obra do filósofo italiano Emanuele Coccia.

“A área externa do MuBE reivindica diálogos e experiências entre o próprio prédio, os trabalhos e o público”, acrescenta Galciani, revelando que o processo de concepção da mostra, que demandou trocas virtuais com os artistas, não se deu sem algum estranhamento. “Normalmente, a curadoria visita o ateliê, tem conversas mais longas para pensar os trabalhos.”

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Intervenção de Laura Vinciproduz 'bruma' na marquise do MuBE. Foto: MuBE

De acordo com ela, as produções foram selecionadas a partir do “entendimento do ar como materialidade em primeira instância”. É de Conversa de ar, mesmo texto que inspirou a mostra, que parte a obra de Yoko em exibição. “A indicação dela e da assistente foi que queriam manter um caráter mais intimista, então fizemos uma impressão super simples e montamos no jardim do museu. É para ser lido por quem passa a pé, guardando um tanto da escala de leitor e livro”, detalha a curadora da exposição, que reúne ainda obras de nomes como a dupla Motta & Lima, Artur Lescher e Paulo Bruscky.

Da artista Laura Vinci, que também participa da mostra, uma instalação produz uma espécie de bruma movida pela corrente de ar, criando a ilusão de flutuação da marquise do museu. “Eu entendo, de uma maneira poética, que ela conecta os trabalhos; cria os diálogos entre esses ‘agentes’ que estão habitando o museu”, avalia a curadora.

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Já de Ana Teixeira, a obra Em Contato é uma intervenção com 14 boias no espelho d’água do local. Em cada uma, está inscrito um advérbio. Ao se moverem, elas formam composições textuais diversas. “O bonito é que, em um momento de incerteza, essas composições ilustram naturezas e condições dos acontecimentos, como aqueles que a gente não vai ver acontecer e aqueles que estão prestes a acontecer, mas não somos capazes de ter controle", conclui Galciani. 

Obra deAna Teixeiracoloca 14 boias no espelho d'água do MuBE, que se movem formando composições textuais diversas Foto: MuBE

A ideia de céu aberto pauta também a mostra No Calor da Hora, parte do projeto M.A.P.A (Modos de Ação para Propagar Arte). Promovida pela agência VIVA Projects, a iniciativa espalha obras de 27 artistas no espaço público de todas as capitais brasileiras. O que pode parecer inusitado — a escolha de outdoors como suporte — remete a uma prática corrente nos anos 1960 e 1970. Como explica a curadora Patricia Wagner, esse meio foi utilizado em momentos críticos do País, como na ditadura militar, quando nomes como Paulo Bruscky recorriam ao que ficou conhecido como “artdoor”.

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Ao lado da sócia Camila Barella, Cecilia Tanure criou o VIVA Projects como uma forma de difundir arte contemporânea para um público não especializado. No início do ano, elas já estavam articulando com Patricia um projeto inédito de arte pública. No entanto, com a pandemia, os planos foram frustrados. “Quando estávamos discutindo novos modelos possíveis, no começo de abril, vimos que conseguiríamos conduzir esse de dentro de casa, envolvendo o mínimo de pessoas que precisariam ir para a rua. Vimos também a possibilidade de chegar ao Brasil inteiro”, conta Cecilia.

Patricia acrescenta que a forma encontrada foi também propícia para responder à situação de “excepcionalidade” vivida hoje, em que confluem questões sanitárias, políticas e econômicas. “De certa maneira, o título No Calor da Hora colide com o entendimento tradicional da arte como um processo que pressupõe uma decantação. Mas chegamos num ponto em que precisávamos de respostas imediatas, então o que convocamos foi que os artistas partissem de sua poética para responder a este momento crítico ”, detalha a curadora.

Outdoor com trabalho de Paulo Bruscky, em Curitiba. Foto: Isabella Ianave
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Os artistas convidados formam, segundo as organizadoras, um grupo bastante diverso quanto a gênero, raça, origem geográfica e até faixa etária. Entre os destaques, em Goiânia, o cineasta Karim Aïnouz homenageia o líder indígena Aritana Yawalapiti; Aline Motta, em Rio Branco, aborda a ancestralidade; Paulo Bruscky, em Curitiba, exalta a “virulência da arte”; e Lenora de Barros, em Belo Horizonte, propõe uma “imagem-memória” de uma performance feita em 2014 em torno da noção de “silêncio”. O desdobramento da mostra será a produção de um múltiplo, que apoiadores do projeto compraram “no escuro”, sem interferência no processo criativo, para financiar a iniciativa.

A dispersão espacial também acompanha a iniciativa do curador Tiago de Abreu Pinto. O avanço da pandemia se deu quando ele estava no Chile. Com os voos cancelados, sem poder voltar ao Brasil, decidiu entrar em contato com artistas do país, no que daria origem ao projeto Ao ar, livre. “Me dei conta que estava num lugar em que não conhecia ninguém. Desde 2009, faço longas entrevistas com artistas, conhecendo suas práticas. Achei que valeria a pena começar uma conversa com os chilenos. Com tudo se transformando, me questionei: Qual o lugar da ação artística física?”, relembra Tiago, que, em poucas semanas, convocou 74 criadores de diferentes localidades do país.

Foi assim que o projeto se estruturou como uma espécie de exposição efêmera “diluída no território”, em que os artistas poderiam criar “a obra que quisessem, no espaço que quisessem”. A vírgula presente no título busca enfatizar tal liberdade. As obras foram exibidas em 16 e 17 de maio. Tiago explica que, como os chilenos estavam passando por um período de forte convulsão social, muitos trabalhos acabaram por refletir isso.

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Em seguida, foi organizada uma edição brasileira, que ocorreu em 22 e 23 de agosto. Desta vez, o curador reuniu 136 artistas, com manifestações bastante diversas, das políticas às mais líricas. “A Alice Yura, artista jovem LGBT, publicou uma obra no jornal popular local de Aparecida do Taboado, no Mato Grosso do Sul. O Éder Oliveira pintou a imagem da avó dele num vidro metacrilato. Por uma ilusão de óptica, a figura atravessa a janela e é como se estivesse sentada num banquinho na praça da frente. Enquanto isso, ele deixa tocar uma conversa que gravou com ela”, exemplifica.

A última passagem do projeto foi pelo México, em 22 e 23 de setembro. Todos os trabalhos acabam tendo um alcance local, mas, para Tiago, ao se pensar na “soma” de todas as manifestações, isso gera uma potência solidária, de uma “comunhão de afeto, de pessoas querendo repensar o futuro”. Os “resíduos” dessas intervenções podem ser vistos em imagens e vídeos no site do projeto, que, segundo o curador, originará ainda um livro.

COMO VER AS MOSTRAS

O Ar que nos Une As obras podem ser vistas a distância por quem passa em frente ao MuBE (Rua Alemanha, 221, Jardim Europa; mube.space). Vale fazer uma pausa para contemplá-las com calma. Até 11 de outubro.

No Calor da Hora A mostra exibe um outdoor nas capitais do Brasil (exceto São Paulo; por causa da Lei Cidade Limpa, a obra está na divisa com Osasco). Veja a localização em vivaprojects.org/mapa. Até 25 de outubro. 

Ao Ar, Livre A mostra teve obras apresentadas em diferentes localidades do Chile, Brasil e México, entre maio e setembro. O público pode conferir as ações e os artistas participantes no site aoar-livre.com

Durante a 2ª. Guerra Mundial, a National Gallery, em Londres, precisava encontrar uma forma de proteger seu acervo dos constantes bombardeios em território inglês. Foi o historiador da arte Kenneth Clark, então diretor do museu, o responsável por uma missão que levaria as cerca de 2.000 obras da coleção ao subterrâneo de uma mina no País de Gales. Engana-se quem pensa que os britânicos ficaram sem acesso à arte. Clark não só fez do ambiente do museu palco para uma série de concertos diurnos como criou o programa Picture of the Month — a cada edição, uma pintura era retirada cuidadosamente do abrigo para ser exibida ao público.

Os tempos não são de guerra, mas os perigos trazidos pelo novo coronavírus impuseram diversas restrições ao universo das artes. Nos últimos meses, a alternativa mais comum encontrada por museus e galerias para manter as atividades foi a adaptação das exposições para o ambiente virtual. Sem recorrer à internet, no entanto, uma série de iniciativas vem buscando encontrar maneiras criativas de aproximar a arte do público.

Outdoor com obra de Aline Motta, em Rio Branco. Foto: Odair Leal

Mostras ao ar livre saem em vantagem no contexto de isolamento social. No Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), uma exposição em cartaz possibilita que quem passa pela frente do local, na Avenida Europa, aprecie um conjunto de obras produzidas por seis artistas, incluindo Yoko Ono.

Aliás, o título da mostra, O Ar que Nos Une, tem inspiração em um texto da obra Grapefruit: a Book of Instructions and Drawings, da artista e ativista japonesa. “A Yoko coloca que o ar é aquilo que nos conecta e aquilo que nos separa. Era algo que estava na minha cabeça e parecia que tinha encontrado o contexto perfeito para acontecer, que era a área externa do museu”, explica a curadora Galciani Neves, destacando ainda a inspiração na obra do filósofo italiano Emanuele Coccia.

“A área externa do MuBE reivindica diálogos e experiências entre o próprio prédio, os trabalhos e o público”, acrescenta Galciani, revelando que o processo de concepção da mostra, que demandou trocas virtuais com os artistas, não se deu sem algum estranhamento. “Normalmente, a curadoria visita o ateliê, tem conversas mais longas para pensar os trabalhos.”

Intervenção de Laura Vinciproduz 'bruma' na marquise do MuBE. Foto: MuBE

De acordo com ela, as produções foram selecionadas a partir do “entendimento do ar como materialidade em primeira instância”. É de Conversa de ar, mesmo texto que inspirou a mostra, que parte a obra de Yoko em exibição. “A indicação dela e da assistente foi que queriam manter um caráter mais intimista, então fizemos uma impressão super simples e montamos no jardim do museu. É para ser lido por quem passa a pé, guardando um tanto da escala de leitor e livro”, detalha a curadora da exposição, que reúne ainda obras de nomes como a dupla Motta & Lima, Artur Lescher e Paulo Bruscky.

Da artista Laura Vinci, que também participa da mostra, uma instalação produz uma espécie de bruma movida pela corrente de ar, criando a ilusão de flutuação da marquise do museu. “Eu entendo, de uma maneira poética, que ela conecta os trabalhos; cria os diálogos entre esses ‘agentes’ que estão habitando o museu”, avalia a curadora.

Já de Ana Teixeira, a obra Em Contato é uma intervenção com 14 boias no espelho d’água do local. Em cada uma, está inscrito um advérbio. Ao se moverem, elas formam composições textuais diversas. “O bonito é que, em um momento de incerteza, essas composições ilustram naturezas e condições dos acontecimentos, como aqueles que a gente não vai ver acontecer e aqueles que estão prestes a acontecer, mas não somos capazes de ter controle", conclui Galciani. 

Obra deAna Teixeiracoloca 14 boias no espelho d'água do MuBE, que se movem formando composições textuais diversas Foto: MuBE

A ideia de céu aberto pauta também a mostra No Calor da Hora, parte do projeto M.A.P.A (Modos de Ação para Propagar Arte). Promovida pela agência VIVA Projects, a iniciativa espalha obras de 27 artistas no espaço público de todas as capitais brasileiras. O que pode parecer inusitado — a escolha de outdoors como suporte — remete a uma prática corrente nos anos 1960 e 1970. Como explica a curadora Patricia Wagner, esse meio foi utilizado em momentos críticos do País, como na ditadura militar, quando nomes como Paulo Bruscky recorriam ao que ficou conhecido como “artdoor”.

Ao lado da sócia Camila Barella, Cecilia Tanure criou o VIVA Projects como uma forma de difundir arte contemporânea para um público não especializado. No início do ano, elas já estavam articulando com Patricia um projeto inédito de arte pública. No entanto, com a pandemia, os planos foram frustrados. “Quando estávamos discutindo novos modelos possíveis, no começo de abril, vimos que conseguiríamos conduzir esse de dentro de casa, envolvendo o mínimo de pessoas que precisariam ir para a rua. Vimos também a possibilidade de chegar ao Brasil inteiro”, conta Cecilia.

Patricia acrescenta que a forma encontrada foi também propícia para responder à situação de “excepcionalidade” vivida hoje, em que confluem questões sanitárias, políticas e econômicas. “De certa maneira, o título No Calor da Hora colide com o entendimento tradicional da arte como um processo que pressupõe uma decantação. Mas chegamos num ponto em que precisávamos de respostas imediatas, então o que convocamos foi que os artistas partissem de sua poética para responder a este momento crítico ”, detalha a curadora.

Outdoor com trabalho de Paulo Bruscky, em Curitiba. Foto: Isabella Ianave

Os artistas convidados formam, segundo as organizadoras, um grupo bastante diverso quanto a gênero, raça, origem geográfica e até faixa etária. Entre os destaques, em Goiânia, o cineasta Karim Aïnouz homenageia o líder indígena Aritana Yawalapiti; Aline Motta, em Rio Branco, aborda a ancestralidade; Paulo Bruscky, em Curitiba, exalta a “virulência da arte”; e Lenora de Barros, em Belo Horizonte, propõe uma “imagem-memória” de uma performance feita em 2014 em torno da noção de “silêncio”. O desdobramento da mostra será a produção de um múltiplo, que apoiadores do projeto compraram “no escuro”, sem interferência no processo criativo, para financiar a iniciativa.

A dispersão espacial também acompanha a iniciativa do curador Tiago de Abreu Pinto. O avanço da pandemia se deu quando ele estava no Chile. Com os voos cancelados, sem poder voltar ao Brasil, decidiu entrar em contato com artistas do país, no que daria origem ao projeto Ao ar, livre. “Me dei conta que estava num lugar em que não conhecia ninguém. Desde 2009, faço longas entrevistas com artistas, conhecendo suas práticas. Achei que valeria a pena começar uma conversa com os chilenos. Com tudo se transformando, me questionei: Qual o lugar da ação artística física?”, relembra Tiago, que, em poucas semanas, convocou 74 criadores de diferentes localidades do país.

Foi assim que o projeto se estruturou como uma espécie de exposição efêmera “diluída no território”, em que os artistas poderiam criar “a obra que quisessem, no espaço que quisessem”. A vírgula presente no título busca enfatizar tal liberdade. As obras foram exibidas em 16 e 17 de maio. Tiago explica que, como os chilenos estavam passando por um período de forte convulsão social, muitos trabalhos acabaram por refletir isso.

Em seguida, foi organizada uma edição brasileira, que ocorreu em 22 e 23 de agosto. Desta vez, o curador reuniu 136 artistas, com manifestações bastante diversas, das políticas às mais líricas. “A Alice Yura, artista jovem LGBT, publicou uma obra no jornal popular local de Aparecida do Taboado, no Mato Grosso do Sul. O Éder Oliveira pintou a imagem da avó dele num vidro metacrilato. Por uma ilusão de óptica, a figura atravessa a janela e é como se estivesse sentada num banquinho na praça da frente. Enquanto isso, ele deixa tocar uma conversa que gravou com ela”, exemplifica.

A última passagem do projeto foi pelo México, em 22 e 23 de setembro. Todos os trabalhos acabam tendo um alcance local, mas, para Tiago, ao se pensar na “soma” de todas as manifestações, isso gera uma potência solidária, de uma “comunhão de afeto, de pessoas querendo repensar o futuro”. Os “resíduos” dessas intervenções podem ser vistos em imagens e vídeos no site do projeto, que, segundo o curador, originará ainda um livro.

COMO VER AS MOSTRAS

O Ar que nos Une As obras podem ser vistas a distância por quem passa em frente ao MuBE (Rua Alemanha, 221, Jardim Europa; mube.space). Vale fazer uma pausa para contemplá-las com calma. Até 11 de outubro.

No Calor da Hora A mostra exibe um outdoor nas capitais do Brasil (exceto São Paulo; por causa da Lei Cidade Limpa, a obra está na divisa com Osasco). Veja a localização em vivaprojects.org/mapa. Até 25 de outubro. 

Ao Ar, Livre A mostra teve obras apresentadas em diferentes localidades do Chile, Brasil e México, entre maio e setembro. O público pode conferir as ações e os artistas participantes no site aoar-livre.com

Durante a 2ª. Guerra Mundial, a National Gallery, em Londres, precisava encontrar uma forma de proteger seu acervo dos constantes bombardeios em território inglês. Foi o historiador da arte Kenneth Clark, então diretor do museu, o responsável por uma missão que levaria as cerca de 2.000 obras da coleção ao subterrâneo de uma mina no País de Gales. Engana-se quem pensa que os britânicos ficaram sem acesso à arte. Clark não só fez do ambiente do museu palco para uma série de concertos diurnos como criou o programa Picture of the Month — a cada edição, uma pintura era retirada cuidadosamente do abrigo para ser exibida ao público.

Os tempos não são de guerra, mas os perigos trazidos pelo novo coronavírus impuseram diversas restrições ao universo das artes. Nos últimos meses, a alternativa mais comum encontrada por museus e galerias para manter as atividades foi a adaptação das exposições para o ambiente virtual. Sem recorrer à internet, no entanto, uma série de iniciativas vem buscando encontrar maneiras criativas de aproximar a arte do público.

Outdoor com obra de Aline Motta, em Rio Branco. Foto: Odair Leal

Mostras ao ar livre saem em vantagem no contexto de isolamento social. No Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), uma exposição em cartaz possibilita que quem passa pela frente do local, na Avenida Europa, aprecie um conjunto de obras produzidas por seis artistas, incluindo Yoko Ono.

Aliás, o título da mostra, O Ar que Nos Une, tem inspiração em um texto da obra Grapefruit: a Book of Instructions and Drawings, da artista e ativista japonesa. “A Yoko coloca que o ar é aquilo que nos conecta e aquilo que nos separa. Era algo que estava na minha cabeça e parecia que tinha encontrado o contexto perfeito para acontecer, que era a área externa do museu”, explica a curadora Galciani Neves, destacando ainda a inspiração na obra do filósofo italiano Emanuele Coccia.

“A área externa do MuBE reivindica diálogos e experiências entre o próprio prédio, os trabalhos e o público”, acrescenta Galciani, revelando que o processo de concepção da mostra, que demandou trocas virtuais com os artistas, não se deu sem algum estranhamento. “Normalmente, a curadoria visita o ateliê, tem conversas mais longas para pensar os trabalhos.”

Intervenção de Laura Vinciproduz 'bruma' na marquise do MuBE. Foto: MuBE

De acordo com ela, as produções foram selecionadas a partir do “entendimento do ar como materialidade em primeira instância”. É de Conversa de ar, mesmo texto que inspirou a mostra, que parte a obra de Yoko em exibição. “A indicação dela e da assistente foi que queriam manter um caráter mais intimista, então fizemos uma impressão super simples e montamos no jardim do museu. É para ser lido por quem passa a pé, guardando um tanto da escala de leitor e livro”, detalha a curadora da exposição, que reúne ainda obras de nomes como a dupla Motta & Lima, Artur Lescher e Paulo Bruscky.

Da artista Laura Vinci, que também participa da mostra, uma instalação produz uma espécie de bruma movida pela corrente de ar, criando a ilusão de flutuação da marquise do museu. “Eu entendo, de uma maneira poética, que ela conecta os trabalhos; cria os diálogos entre esses ‘agentes’ que estão habitando o museu”, avalia a curadora.

Já de Ana Teixeira, a obra Em Contato é uma intervenção com 14 boias no espelho d’água do local. Em cada uma, está inscrito um advérbio. Ao se moverem, elas formam composições textuais diversas. “O bonito é que, em um momento de incerteza, essas composições ilustram naturezas e condições dos acontecimentos, como aqueles que a gente não vai ver acontecer e aqueles que estão prestes a acontecer, mas não somos capazes de ter controle", conclui Galciani. 

Obra deAna Teixeiracoloca 14 boias no espelho d'água do MuBE, que se movem formando composições textuais diversas Foto: MuBE

A ideia de céu aberto pauta também a mostra No Calor da Hora, parte do projeto M.A.P.A (Modos de Ação para Propagar Arte). Promovida pela agência VIVA Projects, a iniciativa espalha obras de 27 artistas no espaço público de todas as capitais brasileiras. O que pode parecer inusitado — a escolha de outdoors como suporte — remete a uma prática corrente nos anos 1960 e 1970. Como explica a curadora Patricia Wagner, esse meio foi utilizado em momentos críticos do País, como na ditadura militar, quando nomes como Paulo Bruscky recorriam ao que ficou conhecido como “artdoor”.

Ao lado da sócia Camila Barella, Cecilia Tanure criou o VIVA Projects como uma forma de difundir arte contemporânea para um público não especializado. No início do ano, elas já estavam articulando com Patricia um projeto inédito de arte pública. No entanto, com a pandemia, os planos foram frustrados. “Quando estávamos discutindo novos modelos possíveis, no começo de abril, vimos que conseguiríamos conduzir esse de dentro de casa, envolvendo o mínimo de pessoas que precisariam ir para a rua. Vimos também a possibilidade de chegar ao Brasil inteiro”, conta Cecilia.

Patricia acrescenta que a forma encontrada foi também propícia para responder à situação de “excepcionalidade” vivida hoje, em que confluem questões sanitárias, políticas e econômicas. “De certa maneira, o título No Calor da Hora colide com o entendimento tradicional da arte como um processo que pressupõe uma decantação. Mas chegamos num ponto em que precisávamos de respostas imediatas, então o que convocamos foi que os artistas partissem de sua poética para responder a este momento crítico ”, detalha a curadora.

Outdoor com trabalho de Paulo Bruscky, em Curitiba. Foto: Isabella Ianave

Os artistas convidados formam, segundo as organizadoras, um grupo bastante diverso quanto a gênero, raça, origem geográfica e até faixa etária. Entre os destaques, em Goiânia, o cineasta Karim Aïnouz homenageia o líder indígena Aritana Yawalapiti; Aline Motta, em Rio Branco, aborda a ancestralidade; Paulo Bruscky, em Curitiba, exalta a “virulência da arte”; e Lenora de Barros, em Belo Horizonte, propõe uma “imagem-memória” de uma performance feita em 2014 em torno da noção de “silêncio”. O desdobramento da mostra será a produção de um múltiplo, que apoiadores do projeto compraram “no escuro”, sem interferência no processo criativo, para financiar a iniciativa.

A dispersão espacial também acompanha a iniciativa do curador Tiago de Abreu Pinto. O avanço da pandemia se deu quando ele estava no Chile. Com os voos cancelados, sem poder voltar ao Brasil, decidiu entrar em contato com artistas do país, no que daria origem ao projeto Ao ar, livre. “Me dei conta que estava num lugar em que não conhecia ninguém. Desde 2009, faço longas entrevistas com artistas, conhecendo suas práticas. Achei que valeria a pena começar uma conversa com os chilenos. Com tudo se transformando, me questionei: Qual o lugar da ação artística física?”, relembra Tiago, que, em poucas semanas, convocou 74 criadores de diferentes localidades do país.

Foi assim que o projeto se estruturou como uma espécie de exposição efêmera “diluída no território”, em que os artistas poderiam criar “a obra que quisessem, no espaço que quisessem”. A vírgula presente no título busca enfatizar tal liberdade. As obras foram exibidas em 16 e 17 de maio. Tiago explica que, como os chilenos estavam passando por um período de forte convulsão social, muitos trabalhos acabaram por refletir isso.

Em seguida, foi organizada uma edição brasileira, que ocorreu em 22 e 23 de agosto. Desta vez, o curador reuniu 136 artistas, com manifestações bastante diversas, das políticas às mais líricas. “A Alice Yura, artista jovem LGBT, publicou uma obra no jornal popular local de Aparecida do Taboado, no Mato Grosso do Sul. O Éder Oliveira pintou a imagem da avó dele num vidro metacrilato. Por uma ilusão de óptica, a figura atravessa a janela e é como se estivesse sentada num banquinho na praça da frente. Enquanto isso, ele deixa tocar uma conversa que gravou com ela”, exemplifica.

A última passagem do projeto foi pelo México, em 22 e 23 de setembro. Todos os trabalhos acabam tendo um alcance local, mas, para Tiago, ao se pensar na “soma” de todas as manifestações, isso gera uma potência solidária, de uma “comunhão de afeto, de pessoas querendo repensar o futuro”. Os “resíduos” dessas intervenções podem ser vistos em imagens e vídeos no site do projeto, que, segundo o curador, originará ainda um livro.

COMO VER AS MOSTRAS

O Ar que nos Une As obras podem ser vistas a distância por quem passa em frente ao MuBE (Rua Alemanha, 221, Jardim Europa; mube.space). Vale fazer uma pausa para contemplá-las com calma. Até 11 de outubro.

No Calor da Hora A mostra exibe um outdoor nas capitais do Brasil (exceto São Paulo; por causa da Lei Cidade Limpa, a obra está na divisa com Osasco). Veja a localização em vivaprojects.org/mapa. Até 25 de outubro. 

Ao Ar, Livre A mostra teve obras apresentadas em diferentes localidades do Chile, Brasil e México, entre maio e setembro. O público pode conferir as ações e os artistas participantes no site aoar-livre.com

Durante a 2ª. Guerra Mundial, a National Gallery, em Londres, precisava encontrar uma forma de proteger seu acervo dos constantes bombardeios em território inglês. Foi o historiador da arte Kenneth Clark, então diretor do museu, o responsável por uma missão que levaria as cerca de 2.000 obras da coleção ao subterrâneo de uma mina no País de Gales. Engana-se quem pensa que os britânicos ficaram sem acesso à arte. Clark não só fez do ambiente do museu palco para uma série de concertos diurnos como criou o programa Picture of the Month — a cada edição, uma pintura era retirada cuidadosamente do abrigo para ser exibida ao público.

Os tempos não são de guerra, mas os perigos trazidos pelo novo coronavírus impuseram diversas restrições ao universo das artes. Nos últimos meses, a alternativa mais comum encontrada por museus e galerias para manter as atividades foi a adaptação das exposições para o ambiente virtual. Sem recorrer à internet, no entanto, uma série de iniciativas vem buscando encontrar maneiras criativas de aproximar a arte do público.

Outdoor com obra de Aline Motta, em Rio Branco. Foto: Odair Leal

Mostras ao ar livre saem em vantagem no contexto de isolamento social. No Museu Brasileiro da Escultura e Ecologia (MuBE), uma exposição em cartaz possibilita que quem passa pela frente do local, na Avenida Europa, aprecie um conjunto de obras produzidas por seis artistas, incluindo Yoko Ono.

Aliás, o título da mostra, O Ar que Nos Une, tem inspiração em um texto da obra Grapefruit: a Book of Instructions and Drawings, da artista e ativista japonesa. “A Yoko coloca que o ar é aquilo que nos conecta e aquilo que nos separa. Era algo que estava na minha cabeça e parecia que tinha encontrado o contexto perfeito para acontecer, que era a área externa do museu”, explica a curadora Galciani Neves, destacando ainda a inspiração na obra do filósofo italiano Emanuele Coccia.

“A área externa do MuBE reivindica diálogos e experiências entre o próprio prédio, os trabalhos e o público”, acrescenta Galciani, revelando que o processo de concepção da mostra, que demandou trocas virtuais com os artistas, não se deu sem algum estranhamento. “Normalmente, a curadoria visita o ateliê, tem conversas mais longas para pensar os trabalhos.”

Intervenção de Laura Vinciproduz 'bruma' na marquise do MuBE. Foto: MuBE

De acordo com ela, as produções foram selecionadas a partir do “entendimento do ar como materialidade em primeira instância”. É de Conversa de ar, mesmo texto que inspirou a mostra, que parte a obra de Yoko em exibição. “A indicação dela e da assistente foi que queriam manter um caráter mais intimista, então fizemos uma impressão super simples e montamos no jardim do museu. É para ser lido por quem passa a pé, guardando um tanto da escala de leitor e livro”, detalha a curadora da exposição, que reúne ainda obras de nomes como a dupla Motta & Lima, Artur Lescher e Paulo Bruscky.

Da artista Laura Vinci, que também participa da mostra, uma instalação produz uma espécie de bruma movida pela corrente de ar, criando a ilusão de flutuação da marquise do museu. “Eu entendo, de uma maneira poética, que ela conecta os trabalhos; cria os diálogos entre esses ‘agentes’ que estão habitando o museu”, avalia a curadora.

Já de Ana Teixeira, a obra Em Contato é uma intervenção com 14 boias no espelho d’água do local. Em cada uma, está inscrito um advérbio. Ao se moverem, elas formam composições textuais diversas. “O bonito é que, em um momento de incerteza, essas composições ilustram naturezas e condições dos acontecimentos, como aqueles que a gente não vai ver acontecer e aqueles que estão prestes a acontecer, mas não somos capazes de ter controle", conclui Galciani. 

Obra deAna Teixeiracoloca 14 boias no espelho d'água do MuBE, que se movem formando composições textuais diversas Foto: MuBE

A ideia de céu aberto pauta também a mostra No Calor da Hora, parte do projeto M.A.P.A (Modos de Ação para Propagar Arte). Promovida pela agência VIVA Projects, a iniciativa espalha obras de 27 artistas no espaço público de todas as capitais brasileiras. O que pode parecer inusitado — a escolha de outdoors como suporte — remete a uma prática corrente nos anos 1960 e 1970. Como explica a curadora Patricia Wagner, esse meio foi utilizado em momentos críticos do País, como na ditadura militar, quando nomes como Paulo Bruscky recorriam ao que ficou conhecido como “artdoor”.

Ao lado da sócia Camila Barella, Cecilia Tanure criou o VIVA Projects como uma forma de difundir arte contemporânea para um público não especializado. No início do ano, elas já estavam articulando com Patricia um projeto inédito de arte pública. No entanto, com a pandemia, os planos foram frustrados. “Quando estávamos discutindo novos modelos possíveis, no começo de abril, vimos que conseguiríamos conduzir esse de dentro de casa, envolvendo o mínimo de pessoas que precisariam ir para a rua. Vimos também a possibilidade de chegar ao Brasil inteiro”, conta Cecilia.

Patricia acrescenta que a forma encontrada foi também propícia para responder à situação de “excepcionalidade” vivida hoje, em que confluem questões sanitárias, políticas e econômicas. “De certa maneira, o título No Calor da Hora colide com o entendimento tradicional da arte como um processo que pressupõe uma decantação. Mas chegamos num ponto em que precisávamos de respostas imediatas, então o que convocamos foi que os artistas partissem de sua poética para responder a este momento crítico ”, detalha a curadora.

Outdoor com trabalho de Paulo Bruscky, em Curitiba. Foto: Isabella Ianave

Os artistas convidados formam, segundo as organizadoras, um grupo bastante diverso quanto a gênero, raça, origem geográfica e até faixa etária. Entre os destaques, em Goiânia, o cineasta Karim Aïnouz homenageia o líder indígena Aritana Yawalapiti; Aline Motta, em Rio Branco, aborda a ancestralidade; Paulo Bruscky, em Curitiba, exalta a “virulência da arte”; e Lenora de Barros, em Belo Horizonte, propõe uma “imagem-memória” de uma performance feita em 2014 em torno da noção de “silêncio”. O desdobramento da mostra será a produção de um múltiplo, que apoiadores do projeto compraram “no escuro”, sem interferência no processo criativo, para financiar a iniciativa.

A dispersão espacial também acompanha a iniciativa do curador Tiago de Abreu Pinto. O avanço da pandemia se deu quando ele estava no Chile. Com os voos cancelados, sem poder voltar ao Brasil, decidiu entrar em contato com artistas do país, no que daria origem ao projeto Ao ar, livre. “Me dei conta que estava num lugar em que não conhecia ninguém. Desde 2009, faço longas entrevistas com artistas, conhecendo suas práticas. Achei que valeria a pena começar uma conversa com os chilenos. Com tudo se transformando, me questionei: Qual o lugar da ação artística física?”, relembra Tiago, que, em poucas semanas, convocou 74 criadores de diferentes localidades do país.

Foi assim que o projeto se estruturou como uma espécie de exposição efêmera “diluída no território”, em que os artistas poderiam criar “a obra que quisessem, no espaço que quisessem”. A vírgula presente no título busca enfatizar tal liberdade. As obras foram exibidas em 16 e 17 de maio. Tiago explica que, como os chilenos estavam passando por um período de forte convulsão social, muitos trabalhos acabaram por refletir isso.

Em seguida, foi organizada uma edição brasileira, que ocorreu em 22 e 23 de agosto. Desta vez, o curador reuniu 136 artistas, com manifestações bastante diversas, das políticas às mais líricas. “A Alice Yura, artista jovem LGBT, publicou uma obra no jornal popular local de Aparecida do Taboado, no Mato Grosso do Sul. O Éder Oliveira pintou a imagem da avó dele num vidro metacrilato. Por uma ilusão de óptica, a figura atravessa a janela e é como se estivesse sentada num banquinho na praça da frente. Enquanto isso, ele deixa tocar uma conversa que gravou com ela”, exemplifica.

A última passagem do projeto foi pelo México, em 22 e 23 de setembro. Todos os trabalhos acabam tendo um alcance local, mas, para Tiago, ao se pensar na “soma” de todas as manifestações, isso gera uma potência solidária, de uma “comunhão de afeto, de pessoas querendo repensar o futuro”. Os “resíduos” dessas intervenções podem ser vistos em imagens e vídeos no site do projeto, que, segundo o curador, originará ainda um livro.

COMO VER AS MOSTRAS

O Ar que nos Une As obras podem ser vistas a distância por quem passa em frente ao MuBE (Rua Alemanha, 221, Jardim Europa; mube.space). Vale fazer uma pausa para contemplá-las com calma. Até 11 de outubro.

No Calor da Hora A mostra exibe um outdoor nas capitais do Brasil (exceto São Paulo; por causa da Lei Cidade Limpa, a obra está na divisa com Osasco). Veja a localização em vivaprojects.org/mapa. Até 25 de outubro. 

Ao Ar, Livre A mostra teve obras apresentadas em diferentes localidades do Chile, Brasil e México, entre maio e setembro. O público pode conferir as ações e os artistas participantes no site aoar-livre.com

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