O impressionismo acabou nos ímãs de geladeira. Mas tudo começou com derramamento de sangue


As pinturas impressionistas são, na maioria dos casos, calmantes. Mas os fãs do impressionismo tendem a não registrar como as coisas ficaram sombrias antes que a luz do movimento surgisse e, por fim, triunfasse

Por Sebastian Smee

Na primeira vez em que li as cartas que Édouard Manet escreveu para sua família no inverno de 1870-1871 era uma tarde de verão e eu estava numa biblioteca universitária com ar-condicionado em Sydney. Eu tinha 19 anos e estudava história da arte. Era apaixonado pelas pinturas de Manet (nenhuma das quais eu tinha visto na vida real). Mas agora estava estranhamente fascinado por suas cartas, que eram concisas, zombeteiras e - durante aquele inverno em particular - silenciosamente infelizes.

Só mais tarde fiquei sabendo que essas cartas tinham sido levadas de Paris por balão. Quando Manet - agora passando fome e desesperado por notícias - finalmente recebeu respostas, elas foram entregues por pombos-correios. Os pombos - aqueles que conseguiram - chegaram a Paris com penas de ganso amarradas a suas caudas. Negativos fotográficos, cada um capturando centenas de cartas em miniatura, vinham enrolados dentro das penas.

Reprodução de 'Dead in Line!,' [Mortos em Fila], de Auguste Lançon, de 1873.  Foto: Musee de la Princerie de Verdun/Departement de la Moselle, MdG1870&A, Rebourg via The Washington Post
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Medidas extremas como estas foram necessárias porque Paris - essa cidade cosmopolita que todos nós adoramos contemplar neste verão olímpico - estava sitiada. O exército que a sitiava era prussiano - embora em janeiro daquele ano, só para piorar a humilhação da França, a Prússia tivesse se unido aos estados vizinhos para se tornar a nação unificada da Alemanha. A cerimônia foi realizada em Versalhes.

De qualquer forma, para se comunicar com o mundo exterior, balões e pombos eram tudo o que os parisienses tinham.

Esse período tumultuado - que ainda contou, no rescaldo do cerco, com uma insurreição de esquerda conhecida como Comuna - tem sua própria galeria no blockbuster de outono da National Gallery of Art: ‘Paris 1874: The Impressionist Moment’. É chocante, bem longe do que a maioria das pessoas espera ao entrar numa exposição de quadros impressionistas. Mas é um reconhecimento explícito de que não se pode pensar o nascimento desse amado movimento artístico sem entender a violenta agitação pela qual a sociedade francesa tinha acabado de passar.

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Manet hoje é conhecido como o pai do impressionismo. (Ele costumava se irritar quando as pessoas o confundiam com Monet, como ainda acontece). Antes do cerco de Paris, ele tinha sido apresentado à pintora Berthe Morisot por um conhecido em comum numa galeria do Louvre. Os dois se apaixonaram instantaneamente, claro. Com seus olhos escuros e brilhantes envoltos em sombras, ela o fez se lembrar de uma maja espanhola saída de uma pintura de Goya. E como Manet era apaixonado por todas as coisas espanholas, pediu que ela posasse para ele.

Depois de ler a correspondência de Manet, passei a ler as cartas curiosas, céticas e às vezes apaixonadas escritas por Morisot, sua irmã Edma e a mãe das duas, Cornelie.

Por Berthe Morisot me apaixonei assim que vi as reproduções dos lindos e íntimos retratos dela feitos por Manet. Eu ainda não tinha visto sua obra. E então, um belo dia, minha professora, Virginia Spate - uma importante estudiosa do impressionismo - levou nossa turma ao principal museu de arte de Sydney. Ela nos fez ficar em frente a uma pintura de Morisot, emprestada temporariamente ao museu. Ao longo de quarenta minutos, ela quase não falou. De vez em quando, fazia uma pergunta simples, como: “Que cor vocês acham que ela usou primeiro?”

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Foi durante esses quarenta minutos que fiquei encantado com a maneira de Morisot ver o mundo. Como todos os impressionistas, ela tinha um olhar apurado para a beleza cotidiana. Mas também tinha algo mais. Sua pincelada era mais solta, mais audaciosa que a dos outros impressionistas, como se ela tivesse um senso mais aguçado de como as coisas que tomamos por certas são frágeis e fugidias.

Ao ler suas cartas, fui cativado por sua mistura de inteligência viva, humor seco e frustração temperamental. Fiquei curioso com seu relacionamento bem próximo com a irmã pintora, Edma. Como foi, eu me perguntava, que as decisões que cada irmã tomou (Edma se casou e teve filhos; Berthe ficou solteira até os 30 anos) tiveram um impacto tão grande em seus respectivos destinos? Era como ler algo de Tolstói ou Chekhov. O tédio e a paixão frustrada em primeiro plano e, logo ali, nos bastidores, o drama intenso e transformador da vida.

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Nunca duvidei que Berthe e Édouard estivessem apaixonados. O problema para Berthe, que estava empenhada em avançar na carreira de pintora, era que Manet já era casado. Mas quando a guerra estourou e um ataque a Paris parecia iminente, ele despachou sua esposa, Suzanne, e seu filho adolescente, Leon, para um lugar seguro no sul da França, perto da fronteira com a Espanha. Ele e Edgar Degas, que também tinha ficado em Paris, se juntaram à Guarda Nacional, um exército ad hoc de cidadãos-soldados com a missão de defender a cidade.

Berthe teve a oportunidade de ir embora, mas também resolveu continuar em Paris. “Decidi ficar”, explicou ela. “Tenho a firme convicção de que tudo sairá melhor do que o esperado”.

Reprodução de um fotógrafo anônimo da 'Rue de Rivoli, 24 de maio de 1871', de Léon y Escosura, por volta de 1871 Foto: .Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Paris Musées
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Caro leitor, nunca coloque esses pensamentos no papel. Nunca os diga em voz alta. Nunca provoque o destino.

Morisot não tinha a menor ideia de como as coisas ficariam ruins. Quando comecei a ter uma noção do que ela e Manet sofreram durante o cerco e sob a Comuna, fiquei espantado. Qualquer pessoa que tenha lido The Fall of Paris, de Alistair Horne, Paris Babylon, de Rupert Christiansen, ou qualquer outro livro sobre o que Victor Hugo chamou de “O Ano Terrível”, sabe que os parisienses passaram por um inferno em 1870-1871.

Você talvez esteja pensando que Manet e Morisot, ambos de famílias abastadas, foram poupados do pior. E você tem razão: muitos parisienses mais pobres sofreram ainda mais do que eles. Mas, mesmo assim, eles também tiveram sorte de sair vivos. Aquele inverno foi um dos mais frios de que se tem memória. Morisot ficou muito doente. Manet entrou em ação por pouco tempo, perdeu amigos na batalha e adoeceu. Perto do fim do cerco, ambos estavam vivendo a base de rações. Quando o gato de Manet desapareceu, logo ficou claro que alguém o tinha comido.

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Todo esse calvário terminou numa rendição humilhante. Mas em Paris, inacreditavelmente, as coisas estavam prestes a piorar. O sentimento de vergonha, frustração e ansiedade econômica era tão agudo que, seis semanas depois da derrota, os radicais de esquerda organizaram uma insurreição total. O exército se retirou para Versalhes e um governo alternativo se estabeleceu em Paris.

A Comuna, como foi chamado esse governo, durou quase dois meses e meio. Durante esse período, Paris foi sitiada de novo, dessa vez pelo próprio exército francês. A Comuna só entrou em colapso quando o exército, depois de bombardear as fortalezas dos rebeldes, entrou por um portal desprotegido nas fortificações da cidade. A guerra civil eclodiu nas ruas de Paris. As tropas do governo massacraram impiedosamente seus concidadãos, que construíram barricadas e incendiaram grande parte do centro.

Ao se retirarem para o leste da cidade, alguns dos últimos rebeldes foram capturados e mortos no cemitério Père Lachaise, mas não antes que muitos dos maiores edifícios da cidade - entre eles o Hôtel de Ville e o Palácio das Tulherias - fossem reduzidos a escombros fumegantes. O Louvre - onde Manet e Morisot flertavam, fofocavam e buscavam inspiração - escapou por pouco. A escala da matança - milhares de execuções sumárias realizadas por forças do exército enlouquecidas pela vingança - foi tão grande que o episódio ficou conhecido como a Semaine Sanglante, ou Semana Sangrenta.

Canhões posicionados pelos Communards no Butte Montmartre em 18 de março de 1871. Foto: Paris Musées/Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Ville de Paris

A primeira exposição impressionista foi inaugurada na esteira desses eventos, em um contexto ainda carregado pela política polarizada do período. Há muito acostumados com as formas impressionistas de perceber o mundo, colocamos pinturas de Monet e Renoir em panos de prato e ímãs de geladeira e penduramos pôsteres de Manet e Degas nas paredes dos dentistas, porque supostamente são calmantes. Mas os fãs do impressionismo tendem a não registrar como as coisas ficaram sombrias antes que a luz do movimento surgisse e, por fim, triunfasse.

As pinturas impressionistas são, na maioria dos casos, calmantes. São reparadoras. Foram planejadas como tal. Isso se deve pelo menos em parte ao fato de que, depois do Ano Terrível, a França precisava de reparos. Tanto a esquerda quanto a direita haviam sido levadas a extremos tão grandes que não conseguiam mais conversar uma com a outra.

Do ponto de vista político, a consequência imediata do Ano Terrível foi um momento reacionário. A França era uma república. Mas o destino da república não estava assegurado. A esquerda havia se excedido e agora enfrentava uma reação adversa. Os monarquistas católicos tinham um apoio considerável. Era muito provável que a França voltasse a ser uma monarquia. Era até possível que Napoleão III ou seu filho voltasse do exílio na Inglaterra e restabelecesse o império.

Os pintores impressionistas queriam evitar esses cenários. Em sua maioria, simpatizavam com os rebeldes e estavam chocados com o tratamento impiedoso dispensado pelo governo. Todos eles eram antiautoritários. Queriam garantir a república. Suas exposições foram elogiadas em jornais republicanos, apoiadas por jornalistas republicanos.

Mas eles também estavam se afastando do extremismo político. O movimento (na medida em que podemos chamá-lo assim nesses anos emergentes) constituiu um recuo deliberado em relação à retórica ideológica.

As pinturas dos impressionistas promoveram uma nova maneira radical de retratar o mundo. Em seu espírito, era secular, democrático e anti-hierárquico. Em vez de quadros heroicos alegorizando virtudes antiquadas ou fazendo proselitismo em nome de um passado glorioso, eles pintaram temas do cotidiano em um presente secular e pacífico.

Eles estavam interessados em lugares onde diferentes classes se misturavam. Evitaram as ruas queimadas e cheias de escombros do centro de Paris. Em vez disso, pintaram flores, parques e margens de rios, bem como chaminés, portos e pontes em construção (pontes que haviam sido explodidas durante o Ano Terrível). Seus quadros começaram a parecer “normais” - menos radicais, menos oposicionistas - em grande parte porque a república sobreviveu e sua visão de uma sociedade secular e democrática se tornou também normal.

'Fila em frente a um açougue', de Édouard Manet, 1870.  Foto: National Gallery of Art

Berthe Morisot estava de luto. Quando Manet a convenceu posar para ele, ambos estavam, creio eu, em estado de choque após a Semana Sangrenta. Ele esperava pintar o retrato dela. Mas, acima de tudo, queria estar em sua companhia.

Juntos, passaram por um trauma que a maioria de seus amigos e colegas pintores tinham evitado (Monet, Pissarro, Renoir, Cézanne e Sisley estavam todos fora de Paris durante o cerco). O pai de Morisot morrera recentemente. Morisot, que logo se casaria com o irmão de Manet (se ela não podia se casar com ele, o irmão dele era a segunda melhor opção), tinha decidido, de uma vez por todas, seguir a carreira de pintora. Estava cheia de dúvidas, mas, ao mesmo tempo, tranquilamente determinada. Com o apoio de Manet e de seus amigos pintores, vinha fazendo grandes progressos.

Quando Degas a convidou para participar da primeira exposição impressionista, que seria inaugurada na primavera de 1874, Morisot aceitou. Ela discutiu o convite com Manet durante suas muitas sessões de retratos. Apesar de ser aclamado como o líder da nova escola emergente (eles ainda não tinham sido rotulados como “impressionistas”), Manet se recusou a participar. E fez de tudo para convencer Morisot a não participar.

Reprodução de 'Hoarfrost' [Geada], de Camille Pissarro, de 1873.  Foto: Patrice Schmidt/Musee d’Orsay, Paris/RMN-Grand Palais via The Washington Post

Manet achava que a exposição faria com que eles parecessem amadores e ingênuos. Ele também se preocupava com o risco de eles serem descartados pelo establishment reacionário e tomados como simpatizantes dos rebeldes (o que eles de fato eram). Mas, talvez acima de tudo, ele acreditava que, para deixar uma marca como pintor, ainda era preciso expor no Salão de Paris, a vitrine anual patrocinada pelo governo. Em outras palavras, Manet ainda achava que poderia transformar o establishment artístico a partir de dentro.

Morisot ignorou seu conselho. E, no fim das contas, foi a decisão certa. Oito exposições impressionistas foram organizadas nos quinze anos seguintes. Morisot exibiu seu trabalho em todas elas, exceto uma. Enquanto isso, o Salão foi definhando lentamente. Uma nova dinâmica cultural de reação e contrarreação se estabeleceu. A cor foi liberada. Nascia a vanguarda e, com ela, uma nova ideia de beleza. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Na primeira vez em que li as cartas que Édouard Manet escreveu para sua família no inverno de 1870-1871 era uma tarde de verão e eu estava numa biblioteca universitária com ar-condicionado em Sydney. Eu tinha 19 anos e estudava história da arte. Era apaixonado pelas pinturas de Manet (nenhuma das quais eu tinha visto na vida real). Mas agora estava estranhamente fascinado por suas cartas, que eram concisas, zombeteiras e - durante aquele inverno em particular - silenciosamente infelizes.

Só mais tarde fiquei sabendo que essas cartas tinham sido levadas de Paris por balão. Quando Manet - agora passando fome e desesperado por notícias - finalmente recebeu respostas, elas foram entregues por pombos-correios. Os pombos - aqueles que conseguiram - chegaram a Paris com penas de ganso amarradas a suas caudas. Negativos fotográficos, cada um capturando centenas de cartas em miniatura, vinham enrolados dentro das penas.

Reprodução de 'Dead in Line!,' [Mortos em Fila], de Auguste Lançon, de 1873.  Foto: Musee de la Princerie de Verdun/Departement de la Moselle, MdG1870&A, Rebourg via The Washington Post

Medidas extremas como estas foram necessárias porque Paris - essa cidade cosmopolita que todos nós adoramos contemplar neste verão olímpico - estava sitiada. O exército que a sitiava era prussiano - embora em janeiro daquele ano, só para piorar a humilhação da França, a Prússia tivesse se unido aos estados vizinhos para se tornar a nação unificada da Alemanha. A cerimônia foi realizada em Versalhes.

De qualquer forma, para se comunicar com o mundo exterior, balões e pombos eram tudo o que os parisienses tinham.

Esse período tumultuado - que ainda contou, no rescaldo do cerco, com uma insurreição de esquerda conhecida como Comuna - tem sua própria galeria no blockbuster de outono da National Gallery of Art: ‘Paris 1874: The Impressionist Moment’. É chocante, bem longe do que a maioria das pessoas espera ao entrar numa exposição de quadros impressionistas. Mas é um reconhecimento explícito de que não se pode pensar o nascimento desse amado movimento artístico sem entender a violenta agitação pela qual a sociedade francesa tinha acabado de passar.

Manet hoje é conhecido como o pai do impressionismo. (Ele costumava se irritar quando as pessoas o confundiam com Monet, como ainda acontece). Antes do cerco de Paris, ele tinha sido apresentado à pintora Berthe Morisot por um conhecido em comum numa galeria do Louvre. Os dois se apaixonaram instantaneamente, claro. Com seus olhos escuros e brilhantes envoltos em sombras, ela o fez se lembrar de uma maja espanhola saída de uma pintura de Goya. E como Manet era apaixonado por todas as coisas espanholas, pediu que ela posasse para ele.

Depois de ler a correspondência de Manet, passei a ler as cartas curiosas, céticas e às vezes apaixonadas escritas por Morisot, sua irmã Edma e a mãe das duas, Cornelie.

Por Berthe Morisot me apaixonei assim que vi as reproduções dos lindos e íntimos retratos dela feitos por Manet. Eu ainda não tinha visto sua obra. E então, um belo dia, minha professora, Virginia Spate - uma importante estudiosa do impressionismo - levou nossa turma ao principal museu de arte de Sydney. Ela nos fez ficar em frente a uma pintura de Morisot, emprestada temporariamente ao museu. Ao longo de quarenta minutos, ela quase não falou. De vez em quando, fazia uma pergunta simples, como: “Que cor vocês acham que ela usou primeiro?”

Foi durante esses quarenta minutos que fiquei encantado com a maneira de Morisot ver o mundo. Como todos os impressionistas, ela tinha um olhar apurado para a beleza cotidiana. Mas também tinha algo mais. Sua pincelada era mais solta, mais audaciosa que a dos outros impressionistas, como se ela tivesse um senso mais aguçado de como as coisas que tomamos por certas são frágeis e fugidias.

Ao ler suas cartas, fui cativado por sua mistura de inteligência viva, humor seco e frustração temperamental. Fiquei curioso com seu relacionamento bem próximo com a irmã pintora, Edma. Como foi, eu me perguntava, que as decisões que cada irmã tomou (Edma se casou e teve filhos; Berthe ficou solteira até os 30 anos) tiveram um impacto tão grande em seus respectivos destinos? Era como ler algo de Tolstói ou Chekhov. O tédio e a paixão frustrada em primeiro plano e, logo ali, nos bastidores, o drama intenso e transformador da vida.

Nunca duvidei que Berthe e Édouard estivessem apaixonados. O problema para Berthe, que estava empenhada em avançar na carreira de pintora, era que Manet já era casado. Mas quando a guerra estourou e um ataque a Paris parecia iminente, ele despachou sua esposa, Suzanne, e seu filho adolescente, Leon, para um lugar seguro no sul da França, perto da fronteira com a Espanha. Ele e Edgar Degas, que também tinha ficado em Paris, se juntaram à Guarda Nacional, um exército ad hoc de cidadãos-soldados com a missão de defender a cidade.

Berthe teve a oportunidade de ir embora, mas também resolveu continuar em Paris. “Decidi ficar”, explicou ela. “Tenho a firme convicção de que tudo sairá melhor do que o esperado”.

Reprodução de um fotógrafo anônimo da 'Rue de Rivoli, 24 de maio de 1871', de Léon y Escosura, por volta de 1871 Foto: .Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Paris Musées

Caro leitor, nunca coloque esses pensamentos no papel. Nunca os diga em voz alta. Nunca provoque o destino.

Morisot não tinha a menor ideia de como as coisas ficariam ruins. Quando comecei a ter uma noção do que ela e Manet sofreram durante o cerco e sob a Comuna, fiquei espantado. Qualquer pessoa que tenha lido The Fall of Paris, de Alistair Horne, Paris Babylon, de Rupert Christiansen, ou qualquer outro livro sobre o que Victor Hugo chamou de “O Ano Terrível”, sabe que os parisienses passaram por um inferno em 1870-1871.

Você talvez esteja pensando que Manet e Morisot, ambos de famílias abastadas, foram poupados do pior. E você tem razão: muitos parisienses mais pobres sofreram ainda mais do que eles. Mas, mesmo assim, eles também tiveram sorte de sair vivos. Aquele inverno foi um dos mais frios de que se tem memória. Morisot ficou muito doente. Manet entrou em ação por pouco tempo, perdeu amigos na batalha e adoeceu. Perto do fim do cerco, ambos estavam vivendo a base de rações. Quando o gato de Manet desapareceu, logo ficou claro que alguém o tinha comido.

Todo esse calvário terminou numa rendição humilhante. Mas em Paris, inacreditavelmente, as coisas estavam prestes a piorar. O sentimento de vergonha, frustração e ansiedade econômica era tão agudo que, seis semanas depois da derrota, os radicais de esquerda organizaram uma insurreição total. O exército se retirou para Versalhes e um governo alternativo se estabeleceu em Paris.

A Comuna, como foi chamado esse governo, durou quase dois meses e meio. Durante esse período, Paris foi sitiada de novo, dessa vez pelo próprio exército francês. A Comuna só entrou em colapso quando o exército, depois de bombardear as fortalezas dos rebeldes, entrou por um portal desprotegido nas fortificações da cidade. A guerra civil eclodiu nas ruas de Paris. As tropas do governo massacraram impiedosamente seus concidadãos, que construíram barricadas e incendiaram grande parte do centro.

Ao se retirarem para o leste da cidade, alguns dos últimos rebeldes foram capturados e mortos no cemitério Père Lachaise, mas não antes que muitos dos maiores edifícios da cidade - entre eles o Hôtel de Ville e o Palácio das Tulherias - fossem reduzidos a escombros fumegantes. O Louvre - onde Manet e Morisot flertavam, fofocavam e buscavam inspiração - escapou por pouco. A escala da matança - milhares de execuções sumárias realizadas por forças do exército enlouquecidas pela vingança - foi tão grande que o episódio ficou conhecido como a Semaine Sanglante, ou Semana Sangrenta.

Canhões posicionados pelos Communards no Butte Montmartre em 18 de março de 1871. Foto: Paris Musées/Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Ville de Paris

A primeira exposição impressionista foi inaugurada na esteira desses eventos, em um contexto ainda carregado pela política polarizada do período. Há muito acostumados com as formas impressionistas de perceber o mundo, colocamos pinturas de Monet e Renoir em panos de prato e ímãs de geladeira e penduramos pôsteres de Manet e Degas nas paredes dos dentistas, porque supostamente são calmantes. Mas os fãs do impressionismo tendem a não registrar como as coisas ficaram sombrias antes que a luz do movimento surgisse e, por fim, triunfasse.

As pinturas impressionistas são, na maioria dos casos, calmantes. São reparadoras. Foram planejadas como tal. Isso se deve pelo menos em parte ao fato de que, depois do Ano Terrível, a França precisava de reparos. Tanto a esquerda quanto a direita haviam sido levadas a extremos tão grandes que não conseguiam mais conversar uma com a outra.

Do ponto de vista político, a consequência imediata do Ano Terrível foi um momento reacionário. A França era uma república. Mas o destino da república não estava assegurado. A esquerda havia se excedido e agora enfrentava uma reação adversa. Os monarquistas católicos tinham um apoio considerável. Era muito provável que a França voltasse a ser uma monarquia. Era até possível que Napoleão III ou seu filho voltasse do exílio na Inglaterra e restabelecesse o império.

Os pintores impressionistas queriam evitar esses cenários. Em sua maioria, simpatizavam com os rebeldes e estavam chocados com o tratamento impiedoso dispensado pelo governo. Todos eles eram antiautoritários. Queriam garantir a república. Suas exposições foram elogiadas em jornais republicanos, apoiadas por jornalistas republicanos.

Mas eles também estavam se afastando do extremismo político. O movimento (na medida em que podemos chamá-lo assim nesses anos emergentes) constituiu um recuo deliberado em relação à retórica ideológica.

As pinturas dos impressionistas promoveram uma nova maneira radical de retratar o mundo. Em seu espírito, era secular, democrático e anti-hierárquico. Em vez de quadros heroicos alegorizando virtudes antiquadas ou fazendo proselitismo em nome de um passado glorioso, eles pintaram temas do cotidiano em um presente secular e pacífico.

Eles estavam interessados em lugares onde diferentes classes se misturavam. Evitaram as ruas queimadas e cheias de escombros do centro de Paris. Em vez disso, pintaram flores, parques e margens de rios, bem como chaminés, portos e pontes em construção (pontes que haviam sido explodidas durante o Ano Terrível). Seus quadros começaram a parecer “normais” - menos radicais, menos oposicionistas - em grande parte porque a república sobreviveu e sua visão de uma sociedade secular e democrática se tornou também normal.

'Fila em frente a um açougue', de Édouard Manet, 1870.  Foto: National Gallery of Art

Berthe Morisot estava de luto. Quando Manet a convenceu posar para ele, ambos estavam, creio eu, em estado de choque após a Semana Sangrenta. Ele esperava pintar o retrato dela. Mas, acima de tudo, queria estar em sua companhia.

Juntos, passaram por um trauma que a maioria de seus amigos e colegas pintores tinham evitado (Monet, Pissarro, Renoir, Cézanne e Sisley estavam todos fora de Paris durante o cerco). O pai de Morisot morrera recentemente. Morisot, que logo se casaria com o irmão de Manet (se ela não podia se casar com ele, o irmão dele era a segunda melhor opção), tinha decidido, de uma vez por todas, seguir a carreira de pintora. Estava cheia de dúvidas, mas, ao mesmo tempo, tranquilamente determinada. Com o apoio de Manet e de seus amigos pintores, vinha fazendo grandes progressos.

Quando Degas a convidou para participar da primeira exposição impressionista, que seria inaugurada na primavera de 1874, Morisot aceitou. Ela discutiu o convite com Manet durante suas muitas sessões de retratos. Apesar de ser aclamado como o líder da nova escola emergente (eles ainda não tinham sido rotulados como “impressionistas”), Manet se recusou a participar. E fez de tudo para convencer Morisot a não participar.

Reprodução de 'Hoarfrost' [Geada], de Camille Pissarro, de 1873.  Foto: Patrice Schmidt/Musee d’Orsay, Paris/RMN-Grand Palais via The Washington Post

Manet achava que a exposição faria com que eles parecessem amadores e ingênuos. Ele também se preocupava com o risco de eles serem descartados pelo establishment reacionário e tomados como simpatizantes dos rebeldes (o que eles de fato eram). Mas, talvez acima de tudo, ele acreditava que, para deixar uma marca como pintor, ainda era preciso expor no Salão de Paris, a vitrine anual patrocinada pelo governo. Em outras palavras, Manet ainda achava que poderia transformar o establishment artístico a partir de dentro.

Morisot ignorou seu conselho. E, no fim das contas, foi a decisão certa. Oito exposições impressionistas foram organizadas nos quinze anos seguintes. Morisot exibiu seu trabalho em todas elas, exceto uma. Enquanto isso, o Salão foi definhando lentamente. Uma nova dinâmica cultural de reação e contrarreação se estabeleceu. A cor foi liberada. Nascia a vanguarda e, com ela, uma nova ideia de beleza. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Na primeira vez em que li as cartas que Édouard Manet escreveu para sua família no inverno de 1870-1871 era uma tarde de verão e eu estava numa biblioteca universitária com ar-condicionado em Sydney. Eu tinha 19 anos e estudava história da arte. Era apaixonado pelas pinturas de Manet (nenhuma das quais eu tinha visto na vida real). Mas agora estava estranhamente fascinado por suas cartas, que eram concisas, zombeteiras e - durante aquele inverno em particular - silenciosamente infelizes.

Só mais tarde fiquei sabendo que essas cartas tinham sido levadas de Paris por balão. Quando Manet - agora passando fome e desesperado por notícias - finalmente recebeu respostas, elas foram entregues por pombos-correios. Os pombos - aqueles que conseguiram - chegaram a Paris com penas de ganso amarradas a suas caudas. Negativos fotográficos, cada um capturando centenas de cartas em miniatura, vinham enrolados dentro das penas.

Reprodução de 'Dead in Line!,' [Mortos em Fila], de Auguste Lançon, de 1873.  Foto: Musee de la Princerie de Verdun/Departement de la Moselle, MdG1870&A, Rebourg via The Washington Post

Medidas extremas como estas foram necessárias porque Paris - essa cidade cosmopolita que todos nós adoramos contemplar neste verão olímpico - estava sitiada. O exército que a sitiava era prussiano - embora em janeiro daquele ano, só para piorar a humilhação da França, a Prússia tivesse se unido aos estados vizinhos para se tornar a nação unificada da Alemanha. A cerimônia foi realizada em Versalhes.

De qualquer forma, para se comunicar com o mundo exterior, balões e pombos eram tudo o que os parisienses tinham.

Esse período tumultuado - que ainda contou, no rescaldo do cerco, com uma insurreição de esquerda conhecida como Comuna - tem sua própria galeria no blockbuster de outono da National Gallery of Art: ‘Paris 1874: The Impressionist Moment’. É chocante, bem longe do que a maioria das pessoas espera ao entrar numa exposição de quadros impressionistas. Mas é um reconhecimento explícito de que não se pode pensar o nascimento desse amado movimento artístico sem entender a violenta agitação pela qual a sociedade francesa tinha acabado de passar.

Manet hoje é conhecido como o pai do impressionismo. (Ele costumava se irritar quando as pessoas o confundiam com Monet, como ainda acontece). Antes do cerco de Paris, ele tinha sido apresentado à pintora Berthe Morisot por um conhecido em comum numa galeria do Louvre. Os dois se apaixonaram instantaneamente, claro. Com seus olhos escuros e brilhantes envoltos em sombras, ela o fez se lembrar de uma maja espanhola saída de uma pintura de Goya. E como Manet era apaixonado por todas as coisas espanholas, pediu que ela posasse para ele.

Depois de ler a correspondência de Manet, passei a ler as cartas curiosas, céticas e às vezes apaixonadas escritas por Morisot, sua irmã Edma e a mãe das duas, Cornelie.

Por Berthe Morisot me apaixonei assim que vi as reproduções dos lindos e íntimos retratos dela feitos por Manet. Eu ainda não tinha visto sua obra. E então, um belo dia, minha professora, Virginia Spate - uma importante estudiosa do impressionismo - levou nossa turma ao principal museu de arte de Sydney. Ela nos fez ficar em frente a uma pintura de Morisot, emprestada temporariamente ao museu. Ao longo de quarenta minutos, ela quase não falou. De vez em quando, fazia uma pergunta simples, como: “Que cor vocês acham que ela usou primeiro?”

Foi durante esses quarenta minutos que fiquei encantado com a maneira de Morisot ver o mundo. Como todos os impressionistas, ela tinha um olhar apurado para a beleza cotidiana. Mas também tinha algo mais. Sua pincelada era mais solta, mais audaciosa que a dos outros impressionistas, como se ela tivesse um senso mais aguçado de como as coisas que tomamos por certas são frágeis e fugidias.

Ao ler suas cartas, fui cativado por sua mistura de inteligência viva, humor seco e frustração temperamental. Fiquei curioso com seu relacionamento bem próximo com a irmã pintora, Edma. Como foi, eu me perguntava, que as decisões que cada irmã tomou (Edma se casou e teve filhos; Berthe ficou solteira até os 30 anos) tiveram um impacto tão grande em seus respectivos destinos? Era como ler algo de Tolstói ou Chekhov. O tédio e a paixão frustrada em primeiro plano e, logo ali, nos bastidores, o drama intenso e transformador da vida.

Nunca duvidei que Berthe e Édouard estivessem apaixonados. O problema para Berthe, que estava empenhada em avançar na carreira de pintora, era que Manet já era casado. Mas quando a guerra estourou e um ataque a Paris parecia iminente, ele despachou sua esposa, Suzanne, e seu filho adolescente, Leon, para um lugar seguro no sul da França, perto da fronteira com a Espanha. Ele e Edgar Degas, que também tinha ficado em Paris, se juntaram à Guarda Nacional, um exército ad hoc de cidadãos-soldados com a missão de defender a cidade.

Berthe teve a oportunidade de ir embora, mas também resolveu continuar em Paris. “Decidi ficar”, explicou ela. “Tenho a firme convicção de que tudo sairá melhor do que o esperado”.

Reprodução de um fotógrafo anônimo da 'Rue de Rivoli, 24 de maio de 1871', de Léon y Escosura, por volta de 1871 Foto: .Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Paris Musées

Caro leitor, nunca coloque esses pensamentos no papel. Nunca os diga em voz alta. Nunca provoque o destino.

Morisot não tinha a menor ideia de como as coisas ficariam ruins. Quando comecei a ter uma noção do que ela e Manet sofreram durante o cerco e sob a Comuna, fiquei espantado. Qualquer pessoa que tenha lido The Fall of Paris, de Alistair Horne, Paris Babylon, de Rupert Christiansen, ou qualquer outro livro sobre o que Victor Hugo chamou de “O Ano Terrível”, sabe que os parisienses passaram por um inferno em 1870-1871.

Você talvez esteja pensando que Manet e Morisot, ambos de famílias abastadas, foram poupados do pior. E você tem razão: muitos parisienses mais pobres sofreram ainda mais do que eles. Mas, mesmo assim, eles também tiveram sorte de sair vivos. Aquele inverno foi um dos mais frios de que se tem memória. Morisot ficou muito doente. Manet entrou em ação por pouco tempo, perdeu amigos na batalha e adoeceu. Perto do fim do cerco, ambos estavam vivendo a base de rações. Quando o gato de Manet desapareceu, logo ficou claro que alguém o tinha comido.

Todo esse calvário terminou numa rendição humilhante. Mas em Paris, inacreditavelmente, as coisas estavam prestes a piorar. O sentimento de vergonha, frustração e ansiedade econômica era tão agudo que, seis semanas depois da derrota, os radicais de esquerda organizaram uma insurreição total. O exército se retirou para Versalhes e um governo alternativo se estabeleceu em Paris.

A Comuna, como foi chamado esse governo, durou quase dois meses e meio. Durante esse período, Paris foi sitiada de novo, dessa vez pelo próprio exército francês. A Comuna só entrou em colapso quando o exército, depois de bombardear as fortalezas dos rebeldes, entrou por um portal desprotegido nas fortificações da cidade. A guerra civil eclodiu nas ruas de Paris. As tropas do governo massacraram impiedosamente seus concidadãos, que construíram barricadas e incendiaram grande parte do centro.

Ao se retirarem para o leste da cidade, alguns dos últimos rebeldes foram capturados e mortos no cemitério Père Lachaise, mas não antes que muitos dos maiores edifícios da cidade - entre eles o Hôtel de Ville e o Palácio das Tulherias - fossem reduzidos a escombros fumegantes. O Louvre - onde Manet e Morisot flertavam, fofocavam e buscavam inspiração - escapou por pouco. A escala da matança - milhares de execuções sumárias realizadas por forças do exército enlouquecidas pela vingança - foi tão grande que o episódio ficou conhecido como a Semaine Sanglante, ou Semana Sangrenta.

Canhões posicionados pelos Communards no Butte Montmartre em 18 de março de 1871. Foto: Paris Musées/Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Ville de Paris

A primeira exposição impressionista foi inaugurada na esteira desses eventos, em um contexto ainda carregado pela política polarizada do período. Há muito acostumados com as formas impressionistas de perceber o mundo, colocamos pinturas de Monet e Renoir em panos de prato e ímãs de geladeira e penduramos pôsteres de Manet e Degas nas paredes dos dentistas, porque supostamente são calmantes. Mas os fãs do impressionismo tendem a não registrar como as coisas ficaram sombrias antes que a luz do movimento surgisse e, por fim, triunfasse.

As pinturas impressionistas são, na maioria dos casos, calmantes. São reparadoras. Foram planejadas como tal. Isso se deve pelo menos em parte ao fato de que, depois do Ano Terrível, a França precisava de reparos. Tanto a esquerda quanto a direita haviam sido levadas a extremos tão grandes que não conseguiam mais conversar uma com a outra.

Do ponto de vista político, a consequência imediata do Ano Terrível foi um momento reacionário. A França era uma república. Mas o destino da república não estava assegurado. A esquerda havia se excedido e agora enfrentava uma reação adversa. Os monarquistas católicos tinham um apoio considerável. Era muito provável que a França voltasse a ser uma monarquia. Era até possível que Napoleão III ou seu filho voltasse do exílio na Inglaterra e restabelecesse o império.

Os pintores impressionistas queriam evitar esses cenários. Em sua maioria, simpatizavam com os rebeldes e estavam chocados com o tratamento impiedoso dispensado pelo governo. Todos eles eram antiautoritários. Queriam garantir a república. Suas exposições foram elogiadas em jornais republicanos, apoiadas por jornalistas republicanos.

Mas eles também estavam se afastando do extremismo político. O movimento (na medida em que podemos chamá-lo assim nesses anos emergentes) constituiu um recuo deliberado em relação à retórica ideológica.

As pinturas dos impressionistas promoveram uma nova maneira radical de retratar o mundo. Em seu espírito, era secular, democrático e anti-hierárquico. Em vez de quadros heroicos alegorizando virtudes antiquadas ou fazendo proselitismo em nome de um passado glorioso, eles pintaram temas do cotidiano em um presente secular e pacífico.

Eles estavam interessados em lugares onde diferentes classes se misturavam. Evitaram as ruas queimadas e cheias de escombros do centro de Paris. Em vez disso, pintaram flores, parques e margens de rios, bem como chaminés, portos e pontes em construção (pontes que haviam sido explodidas durante o Ano Terrível). Seus quadros começaram a parecer “normais” - menos radicais, menos oposicionistas - em grande parte porque a república sobreviveu e sua visão de uma sociedade secular e democrática se tornou também normal.

'Fila em frente a um açougue', de Édouard Manet, 1870.  Foto: National Gallery of Art

Berthe Morisot estava de luto. Quando Manet a convenceu posar para ele, ambos estavam, creio eu, em estado de choque após a Semana Sangrenta. Ele esperava pintar o retrato dela. Mas, acima de tudo, queria estar em sua companhia.

Juntos, passaram por um trauma que a maioria de seus amigos e colegas pintores tinham evitado (Monet, Pissarro, Renoir, Cézanne e Sisley estavam todos fora de Paris durante o cerco). O pai de Morisot morrera recentemente. Morisot, que logo se casaria com o irmão de Manet (se ela não podia se casar com ele, o irmão dele era a segunda melhor opção), tinha decidido, de uma vez por todas, seguir a carreira de pintora. Estava cheia de dúvidas, mas, ao mesmo tempo, tranquilamente determinada. Com o apoio de Manet e de seus amigos pintores, vinha fazendo grandes progressos.

Quando Degas a convidou para participar da primeira exposição impressionista, que seria inaugurada na primavera de 1874, Morisot aceitou. Ela discutiu o convite com Manet durante suas muitas sessões de retratos. Apesar de ser aclamado como o líder da nova escola emergente (eles ainda não tinham sido rotulados como “impressionistas”), Manet se recusou a participar. E fez de tudo para convencer Morisot a não participar.

Reprodução de 'Hoarfrost' [Geada], de Camille Pissarro, de 1873.  Foto: Patrice Schmidt/Musee d’Orsay, Paris/RMN-Grand Palais via The Washington Post

Manet achava que a exposição faria com que eles parecessem amadores e ingênuos. Ele também se preocupava com o risco de eles serem descartados pelo establishment reacionário e tomados como simpatizantes dos rebeldes (o que eles de fato eram). Mas, talvez acima de tudo, ele acreditava que, para deixar uma marca como pintor, ainda era preciso expor no Salão de Paris, a vitrine anual patrocinada pelo governo. Em outras palavras, Manet ainda achava que poderia transformar o establishment artístico a partir de dentro.

Morisot ignorou seu conselho. E, no fim das contas, foi a decisão certa. Oito exposições impressionistas foram organizadas nos quinze anos seguintes. Morisot exibiu seu trabalho em todas elas, exceto uma. Enquanto isso, o Salão foi definhando lentamente. Uma nova dinâmica cultural de reação e contrarreação se estabeleceu. A cor foi liberada. Nascia a vanguarda e, com ela, uma nova ideia de beleza. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Na primeira vez em que li as cartas que Édouard Manet escreveu para sua família no inverno de 1870-1871 era uma tarde de verão e eu estava numa biblioteca universitária com ar-condicionado em Sydney. Eu tinha 19 anos e estudava história da arte. Era apaixonado pelas pinturas de Manet (nenhuma das quais eu tinha visto na vida real). Mas agora estava estranhamente fascinado por suas cartas, que eram concisas, zombeteiras e - durante aquele inverno em particular - silenciosamente infelizes.

Só mais tarde fiquei sabendo que essas cartas tinham sido levadas de Paris por balão. Quando Manet - agora passando fome e desesperado por notícias - finalmente recebeu respostas, elas foram entregues por pombos-correios. Os pombos - aqueles que conseguiram - chegaram a Paris com penas de ganso amarradas a suas caudas. Negativos fotográficos, cada um capturando centenas de cartas em miniatura, vinham enrolados dentro das penas.

Reprodução de 'Dead in Line!,' [Mortos em Fila], de Auguste Lançon, de 1873.  Foto: Musee de la Princerie de Verdun/Departement de la Moselle, MdG1870&A, Rebourg via The Washington Post

Medidas extremas como estas foram necessárias porque Paris - essa cidade cosmopolita que todos nós adoramos contemplar neste verão olímpico - estava sitiada. O exército que a sitiava era prussiano - embora em janeiro daquele ano, só para piorar a humilhação da França, a Prússia tivesse se unido aos estados vizinhos para se tornar a nação unificada da Alemanha. A cerimônia foi realizada em Versalhes.

De qualquer forma, para se comunicar com o mundo exterior, balões e pombos eram tudo o que os parisienses tinham.

Esse período tumultuado - que ainda contou, no rescaldo do cerco, com uma insurreição de esquerda conhecida como Comuna - tem sua própria galeria no blockbuster de outono da National Gallery of Art: ‘Paris 1874: The Impressionist Moment’. É chocante, bem longe do que a maioria das pessoas espera ao entrar numa exposição de quadros impressionistas. Mas é um reconhecimento explícito de que não se pode pensar o nascimento desse amado movimento artístico sem entender a violenta agitação pela qual a sociedade francesa tinha acabado de passar.

Manet hoje é conhecido como o pai do impressionismo. (Ele costumava se irritar quando as pessoas o confundiam com Monet, como ainda acontece). Antes do cerco de Paris, ele tinha sido apresentado à pintora Berthe Morisot por um conhecido em comum numa galeria do Louvre. Os dois se apaixonaram instantaneamente, claro. Com seus olhos escuros e brilhantes envoltos em sombras, ela o fez se lembrar de uma maja espanhola saída de uma pintura de Goya. E como Manet era apaixonado por todas as coisas espanholas, pediu que ela posasse para ele.

Depois de ler a correspondência de Manet, passei a ler as cartas curiosas, céticas e às vezes apaixonadas escritas por Morisot, sua irmã Edma e a mãe das duas, Cornelie.

Por Berthe Morisot me apaixonei assim que vi as reproduções dos lindos e íntimos retratos dela feitos por Manet. Eu ainda não tinha visto sua obra. E então, um belo dia, minha professora, Virginia Spate - uma importante estudiosa do impressionismo - levou nossa turma ao principal museu de arte de Sydney. Ela nos fez ficar em frente a uma pintura de Morisot, emprestada temporariamente ao museu. Ao longo de quarenta minutos, ela quase não falou. De vez em quando, fazia uma pergunta simples, como: “Que cor vocês acham que ela usou primeiro?”

Foi durante esses quarenta minutos que fiquei encantado com a maneira de Morisot ver o mundo. Como todos os impressionistas, ela tinha um olhar apurado para a beleza cotidiana. Mas também tinha algo mais. Sua pincelada era mais solta, mais audaciosa que a dos outros impressionistas, como se ela tivesse um senso mais aguçado de como as coisas que tomamos por certas são frágeis e fugidias.

Ao ler suas cartas, fui cativado por sua mistura de inteligência viva, humor seco e frustração temperamental. Fiquei curioso com seu relacionamento bem próximo com a irmã pintora, Edma. Como foi, eu me perguntava, que as decisões que cada irmã tomou (Edma se casou e teve filhos; Berthe ficou solteira até os 30 anos) tiveram um impacto tão grande em seus respectivos destinos? Era como ler algo de Tolstói ou Chekhov. O tédio e a paixão frustrada em primeiro plano e, logo ali, nos bastidores, o drama intenso e transformador da vida.

Nunca duvidei que Berthe e Édouard estivessem apaixonados. O problema para Berthe, que estava empenhada em avançar na carreira de pintora, era que Manet já era casado. Mas quando a guerra estourou e um ataque a Paris parecia iminente, ele despachou sua esposa, Suzanne, e seu filho adolescente, Leon, para um lugar seguro no sul da França, perto da fronteira com a Espanha. Ele e Edgar Degas, que também tinha ficado em Paris, se juntaram à Guarda Nacional, um exército ad hoc de cidadãos-soldados com a missão de defender a cidade.

Berthe teve a oportunidade de ir embora, mas também resolveu continuar em Paris. “Decidi ficar”, explicou ela. “Tenho a firme convicção de que tudo sairá melhor do que o esperado”.

Reprodução de um fotógrafo anônimo da 'Rue de Rivoli, 24 de maio de 1871', de Léon y Escosura, por volta de 1871 Foto: .Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Paris Musées

Caro leitor, nunca coloque esses pensamentos no papel. Nunca os diga em voz alta. Nunca provoque o destino.

Morisot não tinha a menor ideia de como as coisas ficariam ruins. Quando comecei a ter uma noção do que ela e Manet sofreram durante o cerco e sob a Comuna, fiquei espantado. Qualquer pessoa que tenha lido The Fall of Paris, de Alistair Horne, Paris Babylon, de Rupert Christiansen, ou qualquer outro livro sobre o que Victor Hugo chamou de “O Ano Terrível”, sabe que os parisienses passaram por um inferno em 1870-1871.

Você talvez esteja pensando que Manet e Morisot, ambos de famílias abastadas, foram poupados do pior. E você tem razão: muitos parisienses mais pobres sofreram ainda mais do que eles. Mas, mesmo assim, eles também tiveram sorte de sair vivos. Aquele inverno foi um dos mais frios de que se tem memória. Morisot ficou muito doente. Manet entrou em ação por pouco tempo, perdeu amigos na batalha e adoeceu. Perto do fim do cerco, ambos estavam vivendo a base de rações. Quando o gato de Manet desapareceu, logo ficou claro que alguém o tinha comido.

Todo esse calvário terminou numa rendição humilhante. Mas em Paris, inacreditavelmente, as coisas estavam prestes a piorar. O sentimento de vergonha, frustração e ansiedade econômica era tão agudo que, seis semanas depois da derrota, os radicais de esquerda organizaram uma insurreição total. O exército se retirou para Versalhes e um governo alternativo se estabeleceu em Paris.

A Comuna, como foi chamado esse governo, durou quase dois meses e meio. Durante esse período, Paris foi sitiada de novo, dessa vez pelo próprio exército francês. A Comuna só entrou em colapso quando o exército, depois de bombardear as fortalezas dos rebeldes, entrou por um portal desprotegido nas fortificações da cidade. A guerra civil eclodiu nas ruas de Paris. As tropas do governo massacraram impiedosamente seus concidadãos, que construíram barricadas e incendiaram grande parte do centro.

Ao se retirarem para o leste da cidade, alguns dos últimos rebeldes foram capturados e mortos no cemitério Père Lachaise, mas não antes que muitos dos maiores edifícios da cidade - entre eles o Hôtel de Ville e o Palácio das Tulherias - fossem reduzidos a escombros fumegantes. O Louvre - onde Manet e Morisot flertavam, fofocavam e buscavam inspiração - escapou por pouco. A escala da matança - milhares de execuções sumárias realizadas por forças do exército enlouquecidas pela vingança - foi tão grande que o episódio ficou conhecido como a Semaine Sanglante, ou Semana Sangrenta.

Canhões posicionados pelos Communards no Butte Montmartre em 18 de março de 1871. Foto: Paris Musées/Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Ville de Paris

A primeira exposição impressionista foi inaugurada na esteira desses eventos, em um contexto ainda carregado pela política polarizada do período. Há muito acostumados com as formas impressionistas de perceber o mundo, colocamos pinturas de Monet e Renoir em panos de prato e ímãs de geladeira e penduramos pôsteres de Manet e Degas nas paredes dos dentistas, porque supostamente são calmantes. Mas os fãs do impressionismo tendem a não registrar como as coisas ficaram sombrias antes que a luz do movimento surgisse e, por fim, triunfasse.

As pinturas impressionistas são, na maioria dos casos, calmantes. São reparadoras. Foram planejadas como tal. Isso se deve pelo menos em parte ao fato de que, depois do Ano Terrível, a França precisava de reparos. Tanto a esquerda quanto a direita haviam sido levadas a extremos tão grandes que não conseguiam mais conversar uma com a outra.

Do ponto de vista político, a consequência imediata do Ano Terrível foi um momento reacionário. A França era uma república. Mas o destino da república não estava assegurado. A esquerda havia se excedido e agora enfrentava uma reação adversa. Os monarquistas católicos tinham um apoio considerável. Era muito provável que a França voltasse a ser uma monarquia. Era até possível que Napoleão III ou seu filho voltasse do exílio na Inglaterra e restabelecesse o império.

Os pintores impressionistas queriam evitar esses cenários. Em sua maioria, simpatizavam com os rebeldes e estavam chocados com o tratamento impiedoso dispensado pelo governo. Todos eles eram antiautoritários. Queriam garantir a república. Suas exposições foram elogiadas em jornais republicanos, apoiadas por jornalistas republicanos.

Mas eles também estavam se afastando do extremismo político. O movimento (na medida em que podemos chamá-lo assim nesses anos emergentes) constituiu um recuo deliberado em relação à retórica ideológica.

As pinturas dos impressionistas promoveram uma nova maneira radical de retratar o mundo. Em seu espírito, era secular, democrático e anti-hierárquico. Em vez de quadros heroicos alegorizando virtudes antiquadas ou fazendo proselitismo em nome de um passado glorioso, eles pintaram temas do cotidiano em um presente secular e pacífico.

Eles estavam interessados em lugares onde diferentes classes se misturavam. Evitaram as ruas queimadas e cheias de escombros do centro de Paris. Em vez disso, pintaram flores, parques e margens de rios, bem como chaminés, portos e pontes em construção (pontes que haviam sido explodidas durante o Ano Terrível). Seus quadros começaram a parecer “normais” - menos radicais, menos oposicionistas - em grande parte porque a república sobreviveu e sua visão de uma sociedade secular e democrática se tornou também normal.

'Fila em frente a um açougue', de Édouard Manet, 1870.  Foto: National Gallery of Art

Berthe Morisot estava de luto. Quando Manet a convenceu posar para ele, ambos estavam, creio eu, em estado de choque após a Semana Sangrenta. Ele esperava pintar o retrato dela. Mas, acima de tudo, queria estar em sua companhia.

Juntos, passaram por um trauma que a maioria de seus amigos e colegas pintores tinham evitado (Monet, Pissarro, Renoir, Cézanne e Sisley estavam todos fora de Paris durante o cerco). O pai de Morisot morrera recentemente. Morisot, que logo se casaria com o irmão de Manet (se ela não podia se casar com ele, o irmão dele era a segunda melhor opção), tinha decidido, de uma vez por todas, seguir a carreira de pintora. Estava cheia de dúvidas, mas, ao mesmo tempo, tranquilamente determinada. Com o apoio de Manet e de seus amigos pintores, vinha fazendo grandes progressos.

Quando Degas a convidou para participar da primeira exposição impressionista, que seria inaugurada na primavera de 1874, Morisot aceitou. Ela discutiu o convite com Manet durante suas muitas sessões de retratos. Apesar de ser aclamado como o líder da nova escola emergente (eles ainda não tinham sido rotulados como “impressionistas”), Manet se recusou a participar. E fez de tudo para convencer Morisot a não participar.

Reprodução de 'Hoarfrost' [Geada], de Camille Pissarro, de 1873.  Foto: Patrice Schmidt/Musee d’Orsay, Paris/RMN-Grand Palais via The Washington Post

Manet achava que a exposição faria com que eles parecessem amadores e ingênuos. Ele também se preocupava com o risco de eles serem descartados pelo establishment reacionário e tomados como simpatizantes dos rebeldes (o que eles de fato eram). Mas, talvez acima de tudo, ele acreditava que, para deixar uma marca como pintor, ainda era preciso expor no Salão de Paris, a vitrine anual patrocinada pelo governo. Em outras palavras, Manet ainda achava que poderia transformar o establishment artístico a partir de dentro.

Morisot ignorou seu conselho. E, no fim das contas, foi a decisão certa. Oito exposições impressionistas foram organizadas nos quinze anos seguintes. Morisot exibiu seu trabalho em todas elas, exceto uma. Enquanto isso, o Salão foi definhando lentamente. Uma nova dinâmica cultural de reação e contrarreação se estabeleceu. A cor foi liberada. Nascia a vanguarda e, com ela, uma nova ideia de beleza. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

Na primeira vez em que li as cartas que Édouard Manet escreveu para sua família no inverno de 1870-1871 era uma tarde de verão e eu estava numa biblioteca universitária com ar-condicionado em Sydney. Eu tinha 19 anos e estudava história da arte. Era apaixonado pelas pinturas de Manet (nenhuma das quais eu tinha visto na vida real). Mas agora estava estranhamente fascinado por suas cartas, que eram concisas, zombeteiras e - durante aquele inverno em particular - silenciosamente infelizes.

Só mais tarde fiquei sabendo que essas cartas tinham sido levadas de Paris por balão. Quando Manet - agora passando fome e desesperado por notícias - finalmente recebeu respostas, elas foram entregues por pombos-correios. Os pombos - aqueles que conseguiram - chegaram a Paris com penas de ganso amarradas a suas caudas. Negativos fotográficos, cada um capturando centenas de cartas em miniatura, vinham enrolados dentro das penas.

Reprodução de 'Dead in Line!,' [Mortos em Fila], de Auguste Lançon, de 1873.  Foto: Musee de la Princerie de Verdun/Departement de la Moselle, MdG1870&A, Rebourg via The Washington Post

Medidas extremas como estas foram necessárias porque Paris - essa cidade cosmopolita que todos nós adoramos contemplar neste verão olímpico - estava sitiada. O exército que a sitiava era prussiano - embora em janeiro daquele ano, só para piorar a humilhação da França, a Prússia tivesse se unido aos estados vizinhos para se tornar a nação unificada da Alemanha. A cerimônia foi realizada em Versalhes.

De qualquer forma, para se comunicar com o mundo exterior, balões e pombos eram tudo o que os parisienses tinham.

Esse período tumultuado - que ainda contou, no rescaldo do cerco, com uma insurreição de esquerda conhecida como Comuna - tem sua própria galeria no blockbuster de outono da National Gallery of Art: ‘Paris 1874: The Impressionist Moment’. É chocante, bem longe do que a maioria das pessoas espera ao entrar numa exposição de quadros impressionistas. Mas é um reconhecimento explícito de que não se pode pensar o nascimento desse amado movimento artístico sem entender a violenta agitação pela qual a sociedade francesa tinha acabado de passar.

Manet hoje é conhecido como o pai do impressionismo. (Ele costumava se irritar quando as pessoas o confundiam com Monet, como ainda acontece). Antes do cerco de Paris, ele tinha sido apresentado à pintora Berthe Morisot por um conhecido em comum numa galeria do Louvre. Os dois se apaixonaram instantaneamente, claro. Com seus olhos escuros e brilhantes envoltos em sombras, ela o fez se lembrar de uma maja espanhola saída de uma pintura de Goya. E como Manet era apaixonado por todas as coisas espanholas, pediu que ela posasse para ele.

Depois de ler a correspondência de Manet, passei a ler as cartas curiosas, céticas e às vezes apaixonadas escritas por Morisot, sua irmã Edma e a mãe das duas, Cornelie.

Por Berthe Morisot me apaixonei assim que vi as reproduções dos lindos e íntimos retratos dela feitos por Manet. Eu ainda não tinha visto sua obra. E então, um belo dia, minha professora, Virginia Spate - uma importante estudiosa do impressionismo - levou nossa turma ao principal museu de arte de Sydney. Ela nos fez ficar em frente a uma pintura de Morisot, emprestada temporariamente ao museu. Ao longo de quarenta minutos, ela quase não falou. De vez em quando, fazia uma pergunta simples, como: “Que cor vocês acham que ela usou primeiro?”

Foi durante esses quarenta minutos que fiquei encantado com a maneira de Morisot ver o mundo. Como todos os impressionistas, ela tinha um olhar apurado para a beleza cotidiana. Mas também tinha algo mais. Sua pincelada era mais solta, mais audaciosa que a dos outros impressionistas, como se ela tivesse um senso mais aguçado de como as coisas que tomamos por certas são frágeis e fugidias.

Ao ler suas cartas, fui cativado por sua mistura de inteligência viva, humor seco e frustração temperamental. Fiquei curioso com seu relacionamento bem próximo com a irmã pintora, Edma. Como foi, eu me perguntava, que as decisões que cada irmã tomou (Edma se casou e teve filhos; Berthe ficou solteira até os 30 anos) tiveram um impacto tão grande em seus respectivos destinos? Era como ler algo de Tolstói ou Chekhov. O tédio e a paixão frustrada em primeiro plano e, logo ali, nos bastidores, o drama intenso e transformador da vida.

Nunca duvidei que Berthe e Édouard estivessem apaixonados. O problema para Berthe, que estava empenhada em avançar na carreira de pintora, era que Manet já era casado. Mas quando a guerra estourou e um ataque a Paris parecia iminente, ele despachou sua esposa, Suzanne, e seu filho adolescente, Leon, para um lugar seguro no sul da França, perto da fronteira com a Espanha. Ele e Edgar Degas, que também tinha ficado em Paris, se juntaram à Guarda Nacional, um exército ad hoc de cidadãos-soldados com a missão de defender a cidade.

Berthe teve a oportunidade de ir embora, mas também resolveu continuar em Paris. “Decidi ficar”, explicou ela. “Tenho a firme convicção de que tudo sairá melhor do que o esperado”.

Reprodução de um fotógrafo anônimo da 'Rue de Rivoli, 24 de maio de 1871', de Léon y Escosura, por volta de 1871 Foto: .Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Paris Musées

Caro leitor, nunca coloque esses pensamentos no papel. Nunca os diga em voz alta. Nunca provoque o destino.

Morisot não tinha a menor ideia de como as coisas ficariam ruins. Quando comecei a ter uma noção do que ela e Manet sofreram durante o cerco e sob a Comuna, fiquei espantado. Qualquer pessoa que tenha lido The Fall of Paris, de Alistair Horne, Paris Babylon, de Rupert Christiansen, ou qualquer outro livro sobre o que Victor Hugo chamou de “O Ano Terrível”, sabe que os parisienses passaram por um inferno em 1870-1871.

Você talvez esteja pensando que Manet e Morisot, ambos de famílias abastadas, foram poupados do pior. E você tem razão: muitos parisienses mais pobres sofreram ainda mais do que eles. Mas, mesmo assim, eles também tiveram sorte de sair vivos. Aquele inverno foi um dos mais frios de que se tem memória. Morisot ficou muito doente. Manet entrou em ação por pouco tempo, perdeu amigos na batalha e adoeceu. Perto do fim do cerco, ambos estavam vivendo a base de rações. Quando o gato de Manet desapareceu, logo ficou claro que alguém o tinha comido.

Todo esse calvário terminou numa rendição humilhante. Mas em Paris, inacreditavelmente, as coisas estavam prestes a piorar. O sentimento de vergonha, frustração e ansiedade econômica era tão agudo que, seis semanas depois da derrota, os radicais de esquerda organizaram uma insurreição total. O exército se retirou para Versalhes e um governo alternativo se estabeleceu em Paris.

A Comuna, como foi chamado esse governo, durou quase dois meses e meio. Durante esse período, Paris foi sitiada de novo, dessa vez pelo próprio exército francês. A Comuna só entrou em colapso quando o exército, depois de bombardear as fortalezas dos rebeldes, entrou por um portal desprotegido nas fortificações da cidade. A guerra civil eclodiu nas ruas de Paris. As tropas do governo massacraram impiedosamente seus concidadãos, que construíram barricadas e incendiaram grande parte do centro.

Ao se retirarem para o leste da cidade, alguns dos últimos rebeldes foram capturados e mortos no cemitério Père Lachaise, mas não antes que muitos dos maiores edifícios da cidade - entre eles o Hôtel de Ville e o Palácio das Tulherias - fossem reduzidos a escombros fumegantes. O Louvre - onde Manet e Morisot flertavam, fofocavam e buscavam inspiração - escapou por pouco. A escala da matança - milhares de execuções sumárias realizadas por forças do exército enlouquecidas pela vingança - foi tão grande que o episódio ficou conhecido como a Semaine Sanglante, ou Semana Sangrenta.

Canhões posicionados pelos Communards no Butte Montmartre em 18 de março de 1871. Foto: Paris Musées/Musée Carnavalet, Histoire de Paris/Ville de Paris

A primeira exposição impressionista foi inaugurada na esteira desses eventos, em um contexto ainda carregado pela política polarizada do período. Há muito acostumados com as formas impressionistas de perceber o mundo, colocamos pinturas de Monet e Renoir em panos de prato e ímãs de geladeira e penduramos pôsteres de Manet e Degas nas paredes dos dentistas, porque supostamente são calmantes. Mas os fãs do impressionismo tendem a não registrar como as coisas ficaram sombrias antes que a luz do movimento surgisse e, por fim, triunfasse.

As pinturas impressionistas são, na maioria dos casos, calmantes. São reparadoras. Foram planejadas como tal. Isso se deve pelo menos em parte ao fato de que, depois do Ano Terrível, a França precisava de reparos. Tanto a esquerda quanto a direita haviam sido levadas a extremos tão grandes que não conseguiam mais conversar uma com a outra.

Do ponto de vista político, a consequência imediata do Ano Terrível foi um momento reacionário. A França era uma república. Mas o destino da república não estava assegurado. A esquerda havia se excedido e agora enfrentava uma reação adversa. Os monarquistas católicos tinham um apoio considerável. Era muito provável que a França voltasse a ser uma monarquia. Era até possível que Napoleão III ou seu filho voltasse do exílio na Inglaterra e restabelecesse o império.

Os pintores impressionistas queriam evitar esses cenários. Em sua maioria, simpatizavam com os rebeldes e estavam chocados com o tratamento impiedoso dispensado pelo governo. Todos eles eram antiautoritários. Queriam garantir a república. Suas exposições foram elogiadas em jornais republicanos, apoiadas por jornalistas republicanos.

Mas eles também estavam se afastando do extremismo político. O movimento (na medida em que podemos chamá-lo assim nesses anos emergentes) constituiu um recuo deliberado em relação à retórica ideológica.

As pinturas dos impressionistas promoveram uma nova maneira radical de retratar o mundo. Em seu espírito, era secular, democrático e anti-hierárquico. Em vez de quadros heroicos alegorizando virtudes antiquadas ou fazendo proselitismo em nome de um passado glorioso, eles pintaram temas do cotidiano em um presente secular e pacífico.

Eles estavam interessados em lugares onde diferentes classes se misturavam. Evitaram as ruas queimadas e cheias de escombros do centro de Paris. Em vez disso, pintaram flores, parques e margens de rios, bem como chaminés, portos e pontes em construção (pontes que haviam sido explodidas durante o Ano Terrível). Seus quadros começaram a parecer “normais” - menos radicais, menos oposicionistas - em grande parte porque a república sobreviveu e sua visão de uma sociedade secular e democrática se tornou também normal.

'Fila em frente a um açougue', de Édouard Manet, 1870.  Foto: National Gallery of Art

Berthe Morisot estava de luto. Quando Manet a convenceu posar para ele, ambos estavam, creio eu, em estado de choque após a Semana Sangrenta. Ele esperava pintar o retrato dela. Mas, acima de tudo, queria estar em sua companhia.

Juntos, passaram por um trauma que a maioria de seus amigos e colegas pintores tinham evitado (Monet, Pissarro, Renoir, Cézanne e Sisley estavam todos fora de Paris durante o cerco). O pai de Morisot morrera recentemente. Morisot, que logo se casaria com o irmão de Manet (se ela não podia se casar com ele, o irmão dele era a segunda melhor opção), tinha decidido, de uma vez por todas, seguir a carreira de pintora. Estava cheia de dúvidas, mas, ao mesmo tempo, tranquilamente determinada. Com o apoio de Manet e de seus amigos pintores, vinha fazendo grandes progressos.

Quando Degas a convidou para participar da primeira exposição impressionista, que seria inaugurada na primavera de 1874, Morisot aceitou. Ela discutiu o convite com Manet durante suas muitas sessões de retratos. Apesar de ser aclamado como o líder da nova escola emergente (eles ainda não tinham sido rotulados como “impressionistas”), Manet se recusou a participar. E fez de tudo para convencer Morisot a não participar.

Reprodução de 'Hoarfrost' [Geada], de Camille Pissarro, de 1873.  Foto: Patrice Schmidt/Musee d’Orsay, Paris/RMN-Grand Palais via The Washington Post

Manet achava que a exposição faria com que eles parecessem amadores e ingênuos. Ele também se preocupava com o risco de eles serem descartados pelo establishment reacionário e tomados como simpatizantes dos rebeldes (o que eles de fato eram). Mas, talvez acima de tudo, ele acreditava que, para deixar uma marca como pintor, ainda era preciso expor no Salão de Paris, a vitrine anual patrocinada pelo governo. Em outras palavras, Manet ainda achava que poderia transformar o establishment artístico a partir de dentro.

Morisot ignorou seu conselho. E, no fim das contas, foi a decisão certa. Oito exposições impressionistas foram organizadas nos quinze anos seguintes. Morisot exibiu seu trabalho em todas elas, exceto uma. Enquanto isso, o Salão foi definhando lentamente. Uma nova dinâmica cultural de reação e contrarreação se estabeleceu. A cor foi liberada. Nascia a vanguarda e, com ela, uma nova ideia de beleza. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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