O judeu escondido na Holanda que criou uma revista satírica para desafiar os nazistas na 2ª Guerra


De agosto de 1943 até ser libertado, em abril de 1945, Curt Bloch produziu 95 edições de uma revista enquanto tentava sobreviver incógnito em um pequeno sótão na Holanda; conheça história

Por Nina Siegal
Atualização:

THE NEW YORK TIMES – Por mais de dois anos, a casa de Curt Bloch foi o pequeno espaço sob as vigas de uma modesta casa de tijolinho à vista em Enschede, cidade holandesa perto da fronteira alemã. O sótão tinha uma única janela. E ele o compartilhava com outros dois adultos.

Durante esse tempo, Bloch, que era judeu alemão, sobreviveu na Holanda ocupada pelos nazistas, contando com uma rede de pessoas que lhe davam comida e guardavam seus segredos.

Nesse aspecto, ele era como pelo menos 10 mil judeus que se esconderam na Holanda e conseguiram viver fingindo não existir. Pelo menos 104 mil – muitos deles também procuraram refúgio, mas foram encontrados – acabaram nos campos de concentração.

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Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

Mas a experiência de Bloch foi diferente porque, além de sustento e cuidados, seus ajudantes lhe trouxeram canetas, cola, jornais e outros materiais impressos que ele usou para produzir uma publicação surpreendente: sua revista semanal de poesia satírica.

De agosto de 1943 até ser libertado, em abril de 1945, Bloch produziu 95 edições de Het Onderwater Cabaret, algo como “O Cabaré Debaixo d’Água”.

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Cada edição trazia artes, poesias e canções originais que muitas vezes tinham como alvo os nazistas e seus colaboradores holandeses. Escrevendo em alemão e holandês, Bloch zombava da propaganda nazista, reagia às notícias da guerra e oferecia perspectivas pessoais sobre as privações dos tempos de guerra.

Em um poema, ele sugeriu sarcasticamente como os acontecimentos recentes tinham reordenado o que significava ser uma fera no reino animal:

Hienas e chacais

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Olhe com inveja

Pois agora parecem meninos de coro

Diante da humanidade

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Bloch compartilhava sua revista manuscrita com as pessoas com quem vivia, a família que o abrigava e, possivelmente, pessoas que os ajudavam fora da casa e outros judeus escondidos. Depois da guerra, à qual Bloch sobreviveu, ele reuniu suas revistas e as levou para casa e, finalmente, para Nova York, para onde emigrou. Ali estão, entre livros nas estantes, criações desconhecidas de um homem que não era poeta ou artista, mas sim advogado.

A filha de Bloch, Simone Bloch, hoje com 64 anos, ainda se lembra de ver as revistas na casa da família quando criança. Ela não compreendia muito bem o que queriam dizer, mas não se importava muito com isso. Adolescente rebelde, segundo ela própria, Simone disse que nunca teve uma boa relação com o pai, que morreu de uma doença hepática quando ela tinha 15 anos.

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“De vez em quando ele lia nos jantares”, disse ela em entrevista, “mas naquela época eu não entendia alemão”.

Curt Bloch, judeu que editou revista satírica contra o nazismo enquanto se escondia na Holanda Foto: Museu Judaico de Berlim / Lide Schattenkerk

Muitos anos depois, porém, a filha de Simone, Lucy, se interessou pelas revistas, não apenas como recordações de família, mas como marcadores da história. Ela conseguiu uma bolsa de pesquisa para viajar à Alemanha, onde pôde estudar mais sobre a história do avô. Simone então passou anos à procura de uma forma de divulgar as revistas, um dos poucos esforços literários até então desconhecidos que documentam o Holocausto na Europa.

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Isso levou à produção de um livro, The Underwater Cabaret: The Satirical Resistance of Curt Bloch [”O Cabaré Debaixo D’Água: a resistência satírica de Curt Bloch”, em tradução livre] de Gerard Groeneveld, que foi publicado na Holanda no início de 2023. Em breve haverá também uma exposição de museu, chamada “‘Meus Versos São Dinamite’: O Cabaré Debaixo D’Água de Curt Bloch”, que deve abrir em fevereiro no Jüdisches Museum de Berlim.

“Sempre que uma obra quase completamente desconhecida deste calibre vem à tona, é muito significativo”, disse Aubrey Pomerance, curador da exposição no museu de Berlim. “A esmagadora maioria dos escritos que foram criados na clandestinidade acabaram destruídos. Ou já vieram a público. Então, é tremendamente emocionante”.

A pesquisa de Pomerance e Groeneveld para a exposição e o livro ajudou a iluminar muitos aspectos da vida de Bloch que antes não haviam chamado muita atenção. Nascido em Dortmund, cidade industrial no oeste da Alemanha, Bloch tinha 22 anos e trabalhava em seu primeiro emprego como secretário jurídico quando Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha, em 1933. A violência antissemita na cidade natal de Bloch aumentou mesmo antes da oficialização das medidas antijudaicas.

Depois que um colega o ameaçou de morte naquele mesmo ano, Bloch fugiu para Amsterdã, onde conseguiu um emprego com um importador e revendedor de tapetes persas. Ele esperava encontrar refúgio ali antes de fugir mais para oeste, mas seus planos foram frustrados em 1940, quando os alemães invadiram, as fronteiras foram fechadas e o pesadelo se estendeu também aos judeus dali.

A empresa transferiu Bloch para Haia, mas, quando os judeus não holandeses foram forçados a sair das províncias ocidentais por decreto dos invasores, ele foi mandado para trabalhar em uma filial em Enschede.

Ali, Bloch conseguiu um emprego no Conselho Judaico local, organização instalada pelos superintendentes nazistas para implementar os decretos antissemitas. Os judeus que trabalhavam para o conselho tiveram a garantia de que estavam a salvo da deportação.

Tecnicamente, Bloch era conselheiro para “assuntos de imigração”, embora não houvesse oportunidades de imigração – apenas transporte para campos de concentração. O conselho de Enschede compreendeu os perigos e alertou seus membros para se esconderem.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

O conselho contou com o auxílio de um influente pastor da Igreja Reformada Holandesa, Leendert Overduin, que dirigia secretamente uma organização de resistência que ajudou cerca de mil judeus a encontrar esconderijos. Conhecido como Grupo Overduin, era formado por umas cinquenta pessoas, entre elas as duas irmãs de Overduin. Overduin foi preso três vezes por esse trabalho. Desde então, foi condecorado como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem, o centro de memória do Holocausto em Jerusalém.

O Grupo Overduin encontrou um esconderijo para Bloch na casa de Bertus Menneken, agente funerário, e de sua esposa, Aleida Menneken, governanta. O sobrado de tijolinho à vista ficava na Plataanstraat 15, em um bairro de classe média no oeste de Enschede.

Ali, Bloch dividia o pouco espaço com um refugiado judeu-alemão de 44 anos, Bruno Löwenberg, e a namorada de Löwenberg, Karola Wolf, de 22 anos, a quem chamavam de Ola. Durante os tempos de clandestinidade, Bloch se apaixonou por Ola e escreveu muitos versos só para ela.

“Ele tinha muita coragem, mas também foi muito imprudente”, disse Groeneveld.

Cada edição da revista de Bloch consistia em apenas um exemplar, mas talvez tenha sido lida por vinte a trinta pessoas, calculou Groeneveld.

Havia uma “enorme organização por trás dele, com mensageiros que traziam comida, mas que também podiam fazer a circulação da revista, compartilhando-a com outras pessoas do grupo em quem se pudesse confiar”, disse Groeneveld. “As revistas são muito pequenas, dá para levá-las no bolso ou escondê-las dentro de um livro. Ele recuperou todas elas”.

Bloch batizou sua revista em resposta a um programa de rádio em língua alemã que era transmitido nas ondas holandesas durante a ocupação, o “Cabaré de Domingo à Tarde”. Já o Cabaré Debaixo d’Água, explicou Groeneveld, derivava de um termo holandês para o ato de se esconder: onderduiken. Seu sentido literal é “mergulhar”, mas a tradução mais comum seria “escapar da vista do público”. Uma pessoa escondida era um onderduiker, alguém que tinha ficado submerso ou “debaixo d’água”.

Groeneveld disse que as capas de Bloch, que eram fotomontagens estilizadas, se inspiravam em revistas satíricas antifascistas da era pré-guerra, como a francesa Marianne, conhecida por suas ilustrações antinazistas, e a revista operária alemã Arbeiter-Illustrierte-Zeitung.

“Seu principal alvo era Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista”, disse Pomerance. “Ele muitas vezes se refere a artigos que falam sobre uma ‘vitória final dos nazistas’ e zomba dessa ideia, chamando-os de assassinos e mentirosos. Ele sempre teve certeza de que a Alemanha perderia a guerra”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES – Por mais de dois anos, a casa de Curt Bloch foi o pequeno espaço sob as vigas de uma modesta casa de tijolinho à vista em Enschede, cidade holandesa perto da fronteira alemã. O sótão tinha uma única janela. E ele o compartilhava com outros dois adultos.

Durante esse tempo, Bloch, que era judeu alemão, sobreviveu na Holanda ocupada pelos nazistas, contando com uma rede de pessoas que lhe davam comida e guardavam seus segredos.

Nesse aspecto, ele era como pelo menos 10 mil judeus que se esconderam na Holanda e conseguiram viver fingindo não existir. Pelo menos 104 mil – muitos deles também procuraram refúgio, mas foram encontrados – acabaram nos campos de concentração.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

Mas a experiência de Bloch foi diferente porque, além de sustento e cuidados, seus ajudantes lhe trouxeram canetas, cola, jornais e outros materiais impressos que ele usou para produzir uma publicação surpreendente: sua revista semanal de poesia satírica.

De agosto de 1943 até ser libertado, em abril de 1945, Bloch produziu 95 edições de Het Onderwater Cabaret, algo como “O Cabaré Debaixo d’Água”.

Cada edição trazia artes, poesias e canções originais que muitas vezes tinham como alvo os nazistas e seus colaboradores holandeses. Escrevendo em alemão e holandês, Bloch zombava da propaganda nazista, reagia às notícias da guerra e oferecia perspectivas pessoais sobre as privações dos tempos de guerra.

Em um poema, ele sugeriu sarcasticamente como os acontecimentos recentes tinham reordenado o que significava ser uma fera no reino animal:

Hienas e chacais

Olhe com inveja

Pois agora parecem meninos de coro

Diante da humanidade

Bloch compartilhava sua revista manuscrita com as pessoas com quem vivia, a família que o abrigava e, possivelmente, pessoas que os ajudavam fora da casa e outros judeus escondidos. Depois da guerra, à qual Bloch sobreviveu, ele reuniu suas revistas e as levou para casa e, finalmente, para Nova York, para onde emigrou. Ali estão, entre livros nas estantes, criações desconhecidas de um homem que não era poeta ou artista, mas sim advogado.

A filha de Bloch, Simone Bloch, hoje com 64 anos, ainda se lembra de ver as revistas na casa da família quando criança. Ela não compreendia muito bem o que queriam dizer, mas não se importava muito com isso. Adolescente rebelde, segundo ela própria, Simone disse que nunca teve uma boa relação com o pai, que morreu de uma doença hepática quando ela tinha 15 anos.

“De vez em quando ele lia nos jantares”, disse ela em entrevista, “mas naquela época eu não entendia alemão”.

Curt Bloch, judeu que editou revista satírica contra o nazismo enquanto se escondia na Holanda Foto: Museu Judaico de Berlim / Lide Schattenkerk

Muitos anos depois, porém, a filha de Simone, Lucy, se interessou pelas revistas, não apenas como recordações de família, mas como marcadores da história. Ela conseguiu uma bolsa de pesquisa para viajar à Alemanha, onde pôde estudar mais sobre a história do avô. Simone então passou anos à procura de uma forma de divulgar as revistas, um dos poucos esforços literários até então desconhecidos que documentam o Holocausto na Europa.

Isso levou à produção de um livro, The Underwater Cabaret: The Satirical Resistance of Curt Bloch [”O Cabaré Debaixo D’Água: a resistência satírica de Curt Bloch”, em tradução livre] de Gerard Groeneveld, que foi publicado na Holanda no início de 2023. Em breve haverá também uma exposição de museu, chamada “‘Meus Versos São Dinamite’: O Cabaré Debaixo D’Água de Curt Bloch”, que deve abrir em fevereiro no Jüdisches Museum de Berlim.

“Sempre que uma obra quase completamente desconhecida deste calibre vem à tona, é muito significativo”, disse Aubrey Pomerance, curador da exposição no museu de Berlim. “A esmagadora maioria dos escritos que foram criados na clandestinidade acabaram destruídos. Ou já vieram a público. Então, é tremendamente emocionante”.

A pesquisa de Pomerance e Groeneveld para a exposição e o livro ajudou a iluminar muitos aspectos da vida de Bloch que antes não haviam chamado muita atenção. Nascido em Dortmund, cidade industrial no oeste da Alemanha, Bloch tinha 22 anos e trabalhava em seu primeiro emprego como secretário jurídico quando Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha, em 1933. A violência antissemita na cidade natal de Bloch aumentou mesmo antes da oficialização das medidas antijudaicas.

Depois que um colega o ameaçou de morte naquele mesmo ano, Bloch fugiu para Amsterdã, onde conseguiu um emprego com um importador e revendedor de tapetes persas. Ele esperava encontrar refúgio ali antes de fugir mais para oeste, mas seus planos foram frustrados em 1940, quando os alemães invadiram, as fronteiras foram fechadas e o pesadelo se estendeu também aos judeus dali.

A empresa transferiu Bloch para Haia, mas, quando os judeus não holandeses foram forçados a sair das províncias ocidentais por decreto dos invasores, ele foi mandado para trabalhar em uma filial em Enschede.

Ali, Bloch conseguiu um emprego no Conselho Judaico local, organização instalada pelos superintendentes nazistas para implementar os decretos antissemitas. Os judeus que trabalhavam para o conselho tiveram a garantia de que estavam a salvo da deportação.

Tecnicamente, Bloch era conselheiro para “assuntos de imigração”, embora não houvesse oportunidades de imigração – apenas transporte para campos de concentração. O conselho de Enschede compreendeu os perigos e alertou seus membros para se esconderem.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

O conselho contou com o auxílio de um influente pastor da Igreja Reformada Holandesa, Leendert Overduin, que dirigia secretamente uma organização de resistência que ajudou cerca de mil judeus a encontrar esconderijos. Conhecido como Grupo Overduin, era formado por umas cinquenta pessoas, entre elas as duas irmãs de Overduin. Overduin foi preso três vezes por esse trabalho. Desde então, foi condecorado como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem, o centro de memória do Holocausto em Jerusalém.

O Grupo Overduin encontrou um esconderijo para Bloch na casa de Bertus Menneken, agente funerário, e de sua esposa, Aleida Menneken, governanta. O sobrado de tijolinho à vista ficava na Plataanstraat 15, em um bairro de classe média no oeste de Enschede.

Ali, Bloch dividia o pouco espaço com um refugiado judeu-alemão de 44 anos, Bruno Löwenberg, e a namorada de Löwenberg, Karola Wolf, de 22 anos, a quem chamavam de Ola. Durante os tempos de clandestinidade, Bloch se apaixonou por Ola e escreveu muitos versos só para ela.

“Ele tinha muita coragem, mas também foi muito imprudente”, disse Groeneveld.

Cada edição da revista de Bloch consistia em apenas um exemplar, mas talvez tenha sido lida por vinte a trinta pessoas, calculou Groeneveld.

Havia uma “enorme organização por trás dele, com mensageiros que traziam comida, mas que também podiam fazer a circulação da revista, compartilhando-a com outras pessoas do grupo em quem se pudesse confiar”, disse Groeneveld. “As revistas são muito pequenas, dá para levá-las no bolso ou escondê-las dentro de um livro. Ele recuperou todas elas”.

Bloch batizou sua revista em resposta a um programa de rádio em língua alemã que era transmitido nas ondas holandesas durante a ocupação, o “Cabaré de Domingo à Tarde”. Já o Cabaré Debaixo d’Água, explicou Groeneveld, derivava de um termo holandês para o ato de se esconder: onderduiken. Seu sentido literal é “mergulhar”, mas a tradução mais comum seria “escapar da vista do público”. Uma pessoa escondida era um onderduiker, alguém que tinha ficado submerso ou “debaixo d’água”.

Groeneveld disse que as capas de Bloch, que eram fotomontagens estilizadas, se inspiravam em revistas satíricas antifascistas da era pré-guerra, como a francesa Marianne, conhecida por suas ilustrações antinazistas, e a revista operária alemã Arbeiter-Illustrierte-Zeitung.

“Seu principal alvo era Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista”, disse Pomerance. “Ele muitas vezes se refere a artigos que falam sobre uma ‘vitória final dos nazistas’ e zomba dessa ideia, chamando-os de assassinos e mentirosos. Ele sempre teve certeza de que a Alemanha perderia a guerra”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES – Por mais de dois anos, a casa de Curt Bloch foi o pequeno espaço sob as vigas de uma modesta casa de tijolinho à vista em Enschede, cidade holandesa perto da fronteira alemã. O sótão tinha uma única janela. E ele o compartilhava com outros dois adultos.

Durante esse tempo, Bloch, que era judeu alemão, sobreviveu na Holanda ocupada pelos nazistas, contando com uma rede de pessoas que lhe davam comida e guardavam seus segredos.

Nesse aspecto, ele era como pelo menos 10 mil judeus que se esconderam na Holanda e conseguiram viver fingindo não existir. Pelo menos 104 mil – muitos deles também procuraram refúgio, mas foram encontrados – acabaram nos campos de concentração.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

Mas a experiência de Bloch foi diferente porque, além de sustento e cuidados, seus ajudantes lhe trouxeram canetas, cola, jornais e outros materiais impressos que ele usou para produzir uma publicação surpreendente: sua revista semanal de poesia satírica.

De agosto de 1943 até ser libertado, em abril de 1945, Bloch produziu 95 edições de Het Onderwater Cabaret, algo como “O Cabaré Debaixo d’Água”.

Cada edição trazia artes, poesias e canções originais que muitas vezes tinham como alvo os nazistas e seus colaboradores holandeses. Escrevendo em alemão e holandês, Bloch zombava da propaganda nazista, reagia às notícias da guerra e oferecia perspectivas pessoais sobre as privações dos tempos de guerra.

Em um poema, ele sugeriu sarcasticamente como os acontecimentos recentes tinham reordenado o que significava ser uma fera no reino animal:

Hienas e chacais

Olhe com inveja

Pois agora parecem meninos de coro

Diante da humanidade

Bloch compartilhava sua revista manuscrita com as pessoas com quem vivia, a família que o abrigava e, possivelmente, pessoas que os ajudavam fora da casa e outros judeus escondidos. Depois da guerra, à qual Bloch sobreviveu, ele reuniu suas revistas e as levou para casa e, finalmente, para Nova York, para onde emigrou. Ali estão, entre livros nas estantes, criações desconhecidas de um homem que não era poeta ou artista, mas sim advogado.

A filha de Bloch, Simone Bloch, hoje com 64 anos, ainda se lembra de ver as revistas na casa da família quando criança. Ela não compreendia muito bem o que queriam dizer, mas não se importava muito com isso. Adolescente rebelde, segundo ela própria, Simone disse que nunca teve uma boa relação com o pai, que morreu de uma doença hepática quando ela tinha 15 anos.

“De vez em quando ele lia nos jantares”, disse ela em entrevista, “mas naquela época eu não entendia alemão”.

Curt Bloch, judeu que editou revista satírica contra o nazismo enquanto se escondia na Holanda Foto: Museu Judaico de Berlim / Lide Schattenkerk

Muitos anos depois, porém, a filha de Simone, Lucy, se interessou pelas revistas, não apenas como recordações de família, mas como marcadores da história. Ela conseguiu uma bolsa de pesquisa para viajar à Alemanha, onde pôde estudar mais sobre a história do avô. Simone então passou anos à procura de uma forma de divulgar as revistas, um dos poucos esforços literários até então desconhecidos que documentam o Holocausto na Europa.

Isso levou à produção de um livro, The Underwater Cabaret: The Satirical Resistance of Curt Bloch [”O Cabaré Debaixo D’Água: a resistência satírica de Curt Bloch”, em tradução livre] de Gerard Groeneveld, que foi publicado na Holanda no início de 2023. Em breve haverá também uma exposição de museu, chamada “‘Meus Versos São Dinamite’: O Cabaré Debaixo D’Água de Curt Bloch”, que deve abrir em fevereiro no Jüdisches Museum de Berlim.

“Sempre que uma obra quase completamente desconhecida deste calibre vem à tona, é muito significativo”, disse Aubrey Pomerance, curador da exposição no museu de Berlim. “A esmagadora maioria dos escritos que foram criados na clandestinidade acabaram destruídos. Ou já vieram a público. Então, é tremendamente emocionante”.

A pesquisa de Pomerance e Groeneveld para a exposição e o livro ajudou a iluminar muitos aspectos da vida de Bloch que antes não haviam chamado muita atenção. Nascido em Dortmund, cidade industrial no oeste da Alemanha, Bloch tinha 22 anos e trabalhava em seu primeiro emprego como secretário jurídico quando Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha, em 1933. A violência antissemita na cidade natal de Bloch aumentou mesmo antes da oficialização das medidas antijudaicas.

Depois que um colega o ameaçou de morte naquele mesmo ano, Bloch fugiu para Amsterdã, onde conseguiu um emprego com um importador e revendedor de tapetes persas. Ele esperava encontrar refúgio ali antes de fugir mais para oeste, mas seus planos foram frustrados em 1940, quando os alemães invadiram, as fronteiras foram fechadas e o pesadelo se estendeu também aos judeus dali.

A empresa transferiu Bloch para Haia, mas, quando os judeus não holandeses foram forçados a sair das províncias ocidentais por decreto dos invasores, ele foi mandado para trabalhar em uma filial em Enschede.

Ali, Bloch conseguiu um emprego no Conselho Judaico local, organização instalada pelos superintendentes nazistas para implementar os decretos antissemitas. Os judeus que trabalhavam para o conselho tiveram a garantia de que estavam a salvo da deportação.

Tecnicamente, Bloch era conselheiro para “assuntos de imigração”, embora não houvesse oportunidades de imigração – apenas transporte para campos de concentração. O conselho de Enschede compreendeu os perigos e alertou seus membros para se esconderem.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

O conselho contou com o auxílio de um influente pastor da Igreja Reformada Holandesa, Leendert Overduin, que dirigia secretamente uma organização de resistência que ajudou cerca de mil judeus a encontrar esconderijos. Conhecido como Grupo Overduin, era formado por umas cinquenta pessoas, entre elas as duas irmãs de Overduin. Overduin foi preso três vezes por esse trabalho. Desde então, foi condecorado como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem, o centro de memória do Holocausto em Jerusalém.

O Grupo Overduin encontrou um esconderijo para Bloch na casa de Bertus Menneken, agente funerário, e de sua esposa, Aleida Menneken, governanta. O sobrado de tijolinho à vista ficava na Plataanstraat 15, em um bairro de classe média no oeste de Enschede.

Ali, Bloch dividia o pouco espaço com um refugiado judeu-alemão de 44 anos, Bruno Löwenberg, e a namorada de Löwenberg, Karola Wolf, de 22 anos, a quem chamavam de Ola. Durante os tempos de clandestinidade, Bloch se apaixonou por Ola e escreveu muitos versos só para ela.

“Ele tinha muita coragem, mas também foi muito imprudente”, disse Groeneveld.

Cada edição da revista de Bloch consistia em apenas um exemplar, mas talvez tenha sido lida por vinte a trinta pessoas, calculou Groeneveld.

Havia uma “enorme organização por trás dele, com mensageiros que traziam comida, mas que também podiam fazer a circulação da revista, compartilhando-a com outras pessoas do grupo em quem se pudesse confiar”, disse Groeneveld. “As revistas são muito pequenas, dá para levá-las no bolso ou escondê-las dentro de um livro. Ele recuperou todas elas”.

Bloch batizou sua revista em resposta a um programa de rádio em língua alemã que era transmitido nas ondas holandesas durante a ocupação, o “Cabaré de Domingo à Tarde”. Já o Cabaré Debaixo d’Água, explicou Groeneveld, derivava de um termo holandês para o ato de se esconder: onderduiken. Seu sentido literal é “mergulhar”, mas a tradução mais comum seria “escapar da vista do público”. Uma pessoa escondida era um onderduiker, alguém que tinha ficado submerso ou “debaixo d’água”.

Groeneveld disse que as capas de Bloch, que eram fotomontagens estilizadas, se inspiravam em revistas satíricas antifascistas da era pré-guerra, como a francesa Marianne, conhecida por suas ilustrações antinazistas, e a revista operária alemã Arbeiter-Illustrierte-Zeitung.

“Seu principal alvo era Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista”, disse Pomerance. “Ele muitas vezes se refere a artigos que falam sobre uma ‘vitória final dos nazistas’ e zomba dessa ideia, chamando-os de assassinos e mentirosos. Ele sempre teve certeza de que a Alemanha perderia a guerra”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES – Por mais de dois anos, a casa de Curt Bloch foi o pequeno espaço sob as vigas de uma modesta casa de tijolinho à vista em Enschede, cidade holandesa perto da fronteira alemã. O sótão tinha uma única janela. E ele o compartilhava com outros dois adultos.

Durante esse tempo, Bloch, que era judeu alemão, sobreviveu na Holanda ocupada pelos nazistas, contando com uma rede de pessoas que lhe davam comida e guardavam seus segredos.

Nesse aspecto, ele era como pelo menos 10 mil judeus que se esconderam na Holanda e conseguiram viver fingindo não existir. Pelo menos 104 mil – muitos deles também procuraram refúgio, mas foram encontrados – acabaram nos campos de concentração.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

Mas a experiência de Bloch foi diferente porque, além de sustento e cuidados, seus ajudantes lhe trouxeram canetas, cola, jornais e outros materiais impressos que ele usou para produzir uma publicação surpreendente: sua revista semanal de poesia satírica.

De agosto de 1943 até ser libertado, em abril de 1945, Bloch produziu 95 edições de Het Onderwater Cabaret, algo como “O Cabaré Debaixo d’Água”.

Cada edição trazia artes, poesias e canções originais que muitas vezes tinham como alvo os nazistas e seus colaboradores holandeses. Escrevendo em alemão e holandês, Bloch zombava da propaganda nazista, reagia às notícias da guerra e oferecia perspectivas pessoais sobre as privações dos tempos de guerra.

Em um poema, ele sugeriu sarcasticamente como os acontecimentos recentes tinham reordenado o que significava ser uma fera no reino animal:

Hienas e chacais

Olhe com inveja

Pois agora parecem meninos de coro

Diante da humanidade

Bloch compartilhava sua revista manuscrita com as pessoas com quem vivia, a família que o abrigava e, possivelmente, pessoas que os ajudavam fora da casa e outros judeus escondidos. Depois da guerra, à qual Bloch sobreviveu, ele reuniu suas revistas e as levou para casa e, finalmente, para Nova York, para onde emigrou. Ali estão, entre livros nas estantes, criações desconhecidas de um homem que não era poeta ou artista, mas sim advogado.

A filha de Bloch, Simone Bloch, hoje com 64 anos, ainda se lembra de ver as revistas na casa da família quando criança. Ela não compreendia muito bem o que queriam dizer, mas não se importava muito com isso. Adolescente rebelde, segundo ela própria, Simone disse que nunca teve uma boa relação com o pai, que morreu de uma doença hepática quando ela tinha 15 anos.

“De vez em quando ele lia nos jantares”, disse ela em entrevista, “mas naquela época eu não entendia alemão”.

Curt Bloch, judeu que editou revista satírica contra o nazismo enquanto se escondia na Holanda Foto: Museu Judaico de Berlim / Lide Schattenkerk

Muitos anos depois, porém, a filha de Simone, Lucy, se interessou pelas revistas, não apenas como recordações de família, mas como marcadores da história. Ela conseguiu uma bolsa de pesquisa para viajar à Alemanha, onde pôde estudar mais sobre a história do avô. Simone então passou anos à procura de uma forma de divulgar as revistas, um dos poucos esforços literários até então desconhecidos que documentam o Holocausto na Europa.

Isso levou à produção de um livro, The Underwater Cabaret: The Satirical Resistance of Curt Bloch [”O Cabaré Debaixo D’Água: a resistência satírica de Curt Bloch”, em tradução livre] de Gerard Groeneveld, que foi publicado na Holanda no início de 2023. Em breve haverá também uma exposição de museu, chamada “‘Meus Versos São Dinamite’: O Cabaré Debaixo D’Água de Curt Bloch”, que deve abrir em fevereiro no Jüdisches Museum de Berlim.

“Sempre que uma obra quase completamente desconhecida deste calibre vem à tona, é muito significativo”, disse Aubrey Pomerance, curador da exposição no museu de Berlim. “A esmagadora maioria dos escritos que foram criados na clandestinidade acabaram destruídos. Ou já vieram a público. Então, é tremendamente emocionante”.

A pesquisa de Pomerance e Groeneveld para a exposição e o livro ajudou a iluminar muitos aspectos da vida de Bloch que antes não haviam chamado muita atenção. Nascido em Dortmund, cidade industrial no oeste da Alemanha, Bloch tinha 22 anos e trabalhava em seu primeiro emprego como secretário jurídico quando Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha, em 1933. A violência antissemita na cidade natal de Bloch aumentou mesmo antes da oficialização das medidas antijudaicas.

Depois que um colega o ameaçou de morte naquele mesmo ano, Bloch fugiu para Amsterdã, onde conseguiu um emprego com um importador e revendedor de tapetes persas. Ele esperava encontrar refúgio ali antes de fugir mais para oeste, mas seus planos foram frustrados em 1940, quando os alemães invadiram, as fronteiras foram fechadas e o pesadelo se estendeu também aos judeus dali.

A empresa transferiu Bloch para Haia, mas, quando os judeus não holandeses foram forçados a sair das províncias ocidentais por decreto dos invasores, ele foi mandado para trabalhar em uma filial em Enschede.

Ali, Bloch conseguiu um emprego no Conselho Judaico local, organização instalada pelos superintendentes nazistas para implementar os decretos antissemitas. Os judeus que trabalhavam para o conselho tiveram a garantia de que estavam a salvo da deportação.

Tecnicamente, Bloch era conselheiro para “assuntos de imigração”, embora não houvesse oportunidades de imigração – apenas transporte para campos de concentração. O conselho de Enschede compreendeu os perigos e alertou seus membros para se esconderem.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

O conselho contou com o auxílio de um influente pastor da Igreja Reformada Holandesa, Leendert Overduin, que dirigia secretamente uma organização de resistência que ajudou cerca de mil judeus a encontrar esconderijos. Conhecido como Grupo Overduin, era formado por umas cinquenta pessoas, entre elas as duas irmãs de Overduin. Overduin foi preso três vezes por esse trabalho. Desde então, foi condecorado como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem, o centro de memória do Holocausto em Jerusalém.

O Grupo Overduin encontrou um esconderijo para Bloch na casa de Bertus Menneken, agente funerário, e de sua esposa, Aleida Menneken, governanta. O sobrado de tijolinho à vista ficava na Plataanstraat 15, em um bairro de classe média no oeste de Enschede.

Ali, Bloch dividia o pouco espaço com um refugiado judeu-alemão de 44 anos, Bruno Löwenberg, e a namorada de Löwenberg, Karola Wolf, de 22 anos, a quem chamavam de Ola. Durante os tempos de clandestinidade, Bloch se apaixonou por Ola e escreveu muitos versos só para ela.

“Ele tinha muita coragem, mas também foi muito imprudente”, disse Groeneveld.

Cada edição da revista de Bloch consistia em apenas um exemplar, mas talvez tenha sido lida por vinte a trinta pessoas, calculou Groeneveld.

Havia uma “enorme organização por trás dele, com mensageiros que traziam comida, mas que também podiam fazer a circulação da revista, compartilhando-a com outras pessoas do grupo em quem se pudesse confiar”, disse Groeneveld. “As revistas são muito pequenas, dá para levá-las no bolso ou escondê-las dentro de um livro. Ele recuperou todas elas”.

Bloch batizou sua revista em resposta a um programa de rádio em língua alemã que era transmitido nas ondas holandesas durante a ocupação, o “Cabaré de Domingo à Tarde”. Já o Cabaré Debaixo d’Água, explicou Groeneveld, derivava de um termo holandês para o ato de se esconder: onderduiken. Seu sentido literal é “mergulhar”, mas a tradução mais comum seria “escapar da vista do público”. Uma pessoa escondida era um onderduiker, alguém que tinha ficado submerso ou “debaixo d’água”.

Groeneveld disse que as capas de Bloch, que eram fotomontagens estilizadas, se inspiravam em revistas satíricas antifascistas da era pré-guerra, como a francesa Marianne, conhecida por suas ilustrações antinazistas, e a revista operária alemã Arbeiter-Illustrierte-Zeitung.

“Seu principal alvo era Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista”, disse Pomerance. “Ele muitas vezes se refere a artigos que falam sobre uma ‘vitória final dos nazistas’ e zomba dessa ideia, chamando-os de assassinos e mentirosos. Ele sempre teve certeza de que a Alemanha perderia a guerra”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

THE NEW YORK TIMES – Por mais de dois anos, a casa de Curt Bloch foi o pequeno espaço sob as vigas de uma modesta casa de tijolinho à vista em Enschede, cidade holandesa perto da fronteira alemã. O sótão tinha uma única janela. E ele o compartilhava com outros dois adultos.

Durante esse tempo, Bloch, que era judeu alemão, sobreviveu na Holanda ocupada pelos nazistas, contando com uma rede de pessoas que lhe davam comida e guardavam seus segredos.

Nesse aspecto, ele era como pelo menos 10 mil judeus que se esconderam na Holanda e conseguiram viver fingindo não existir. Pelo menos 104 mil – muitos deles também procuraram refúgio, mas foram encontrados – acabaram nos campos de concentração.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

Mas a experiência de Bloch foi diferente porque, além de sustento e cuidados, seus ajudantes lhe trouxeram canetas, cola, jornais e outros materiais impressos que ele usou para produzir uma publicação surpreendente: sua revista semanal de poesia satírica.

De agosto de 1943 até ser libertado, em abril de 1945, Bloch produziu 95 edições de Het Onderwater Cabaret, algo como “O Cabaré Debaixo d’Água”.

Cada edição trazia artes, poesias e canções originais que muitas vezes tinham como alvo os nazistas e seus colaboradores holandeses. Escrevendo em alemão e holandês, Bloch zombava da propaganda nazista, reagia às notícias da guerra e oferecia perspectivas pessoais sobre as privações dos tempos de guerra.

Em um poema, ele sugeriu sarcasticamente como os acontecimentos recentes tinham reordenado o que significava ser uma fera no reino animal:

Hienas e chacais

Olhe com inveja

Pois agora parecem meninos de coro

Diante da humanidade

Bloch compartilhava sua revista manuscrita com as pessoas com quem vivia, a família que o abrigava e, possivelmente, pessoas que os ajudavam fora da casa e outros judeus escondidos. Depois da guerra, à qual Bloch sobreviveu, ele reuniu suas revistas e as levou para casa e, finalmente, para Nova York, para onde emigrou. Ali estão, entre livros nas estantes, criações desconhecidas de um homem que não era poeta ou artista, mas sim advogado.

A filha de Bloch, Simone Bloch, hoje com 64 anos, ainda se lembra de ver as revistas na casa da família quando criança. Ela não compreendia muito bem o que queriam dizer, mas não se importava muito com isso. Adolescente rebelde, segundo ela própria, Simone disse que nunca teve uma boa relação com o pai, que morreu de uma doença hepática quando ela tinha 15 anos.

“De vez em quando ele lia nos jantares”, disse ela em entrevista, “mas naquela época eu não entendia alemão”.

Curt Bloch, judeu que editou revista satírica contra o nazismo enquanto se escondia na Holanda Foto: Museu Judaico de Berlim / Lide Schattenkerk

Muitos anos depois, porém, a filha de Simone, Lucy, se interessou pelas revistas, não apenas como recordações de família, mas como marcadores da história. Ela conseguiu uma bolsa de pesquisa para viajar à Alemanha, onde pôde estudar mais sobre a história do avô. Simone então passou anos à procura de uma forma de divulgar as revistas, um dos poucos esforços literários até então desconhecidos que documentam o Holocausto na Europa.

Isso levou à produção de um livro, The Underwater Cabaret: The Satirical Resistance of Curt Bloch [”O Cabaré Debaixo D’Água: a resistência satírica de Curt Bloch”, em tradução livre] de Gerard Groeneveld, que foi publicado na Holanda no início de 2023. Em breve haverá também uma exposição de museu, chamada “‘Meus Versos São Dinamite’: O Cabaré Debaixo D’Água de Curt Bloch”, que deve abrir em fevereiro no Jüdisches Museum de Berlim.

“Sempre que uma obra quase completamente desconhecida deste calibre vem à tona, é muito significativo”, disse Aubrey Pomerance, curador da exposição no museu de Berlim. “A esmagadora maioria dos escritos que foram criados na clandestinidade acabaram destruídos. Ou já vieram a público. Então, é tremendamente emocionante”.

A pesquisa de Pomerance e Groeneveld para a exposição e o livro ajudou a iluminar muitos aspectos da vida de Bloch que antes não haviam chamado muita atenção. Nascido em Dortmund, cidade industrial no oeste da Alemanha, Bloch tinha 22 anos e trabalhava em seu primeiro emprego como secretário jurídico quando Adolf Hitler se tornou chanceler da Alemanha, em 1933. A violência antissemita na cidade natal de Bloch aumentou mesmo antes da oficialização das medidas antijudaicas.

Depois que um colega o ameaçou de morte naquele mesmo ano, Bloch fugiu para Amsterdã, onde conseguiu um emprego com um importador e revendedor de tapetes persas. Ele esperava encontrar refúgio ali antes de fugir mais para oeste, mas seus planos foram frustrados em 1940, quando os alemães invadiram, as fronteiras foram fechadas e o pesadelo se estendeu também aos judeus dali.

A empresa transferiu Bloch para Haia, mas, quando os judeus não holandeses foram forçados a sair das províncias ocidentais por decreto dos invasores, ele foi mandado para trabalhar em uma filial em Enschede.

Ali, Bloch conseguiu um emprego no Conselho Judaico local, organização instalada pelos superintendentes nazistas para implementar os decretos antissemitas. Os judeus que trabalhavam para o conselho tiveram a garantia de que estavam a salvo da deportação.

Tecnicamente, Bloch era conselheiro para “assuntos de imigração”, embora não houvesse oportunidades de imigração – apenas transporte para campos de concentração. O conselho de Enschede compreendeu os perigos e alertou seus membros para se esconderem.

Revista satírica contra o nazismo editada pelo judeu Curt Bloch enquanto se escondia na Holanda durante a Segunda Guerra Foto: Museu Judaico de Berlim / Charities Aid Foundation America

O conselho contou com o auxílio de um influente pastor da Igreja Reformada Holandesa, Leendert Overduin, que dirigia secretamente uma organização de resistência que ajudou cerca de mil judeus a encontrar esconderijos. Conhecido como Grupo Overduin, era formado por umas cinquenta pessoas, entre elas as duas irmãs de Overduin. Overduin foi preso três vezes por esse trabalho. Desde então, foi condecorado como Justo entre as Nações pelo Yad Vashem, o centro de memória do Holocausto em Jerusalém.

O Grupo Overduin encontrou um esconderijo para Bloch na casa de Bertus Menneken, agente funerário, e de sua esposa, Aleida Menneken, governanta. O sobrado de tijolinho à vista ficava na Plataanstraat 15, em um bairro de classe média no oeste de Enschede.

Ali, Bloch dividia o pouco espaço com um refugiado judeu-alemão de 44 anos, Bruno Löwenberg, e a namorada de Löwenberg, Karola Wolf, de 22 anos, a quem chamavam de Ola. Durante os tempos de clandestinidade, Bloch se apaixonou por Ola e escreveu muitos versos só para ela.

“Ele tinha muita coragem, mas também foi muito imprudente”, disse Groeneveld.

Cada edição da revista de Bloch consistia em apenas um exemplar, mas talvez tenha sido lida por vinte a trinta pessoas, calculou Groeneveld.

Havia uma “enorme organização por trás dele, com mensageiros que traziam comida, mas que também podiam fazer a circulação da revista, compartilhando-a com outras pessoas do grupo em quem se pudesse confiar”, disse Groeneveld. “As revistas são muito pequenas, dá para levá-las no bolso ou escondê-las dentro de um livro. Ele recuperou todas elas”.

Bloch batizou sua revista em resposta a um programa de rádio em língua alemã que era transmitido nas ondas holandesas durante a ocupação, o “Cabaré de Domingo à Tarde”. Já o Cabaré Debaixo d’Água, explicou Groeneveld, derivava de um termo holandês para o ato de se esconder: onderduiken. Seu sentido literal é “mergulhar”, mas a tradução mais comum seria “escapar da vista do público”. Uma pessoa escondida era um onderduiker, alguém que tinha ficado submerso ou “debaixo d’água”.

Groeneveld disse que as capas de Bloch, que eram fotomontagens estilizadas, se inspiravam em revistas satíricas antifascistas da era pré-guerra, como a francesa Marianne, conhecida por suas ilustrações antinazistas, e a revista operária alemã Arbeiter-Illustrierte-Zeitung.

“Seu principal alvo era Joseph Goebbels, o ministro da propaganda nazista”, disse Pomerance. “Ele muitas vezes se refere a artigos que falam sobre uma ‘vitória final dos nazistas’ e zomba dessa ideia, chamando-os de assassinos e mentirosos. Ele sempre teve certeza de que a Alemanha perderia a guerra”.

Este artigo foi originalmente publicado no New York Times. / TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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