Lance Maior se destaca na filmografia de Sylvio Back. Foi seu primeiro filme, lançado em 1968, e é o único também em que aborda um tema totalmente cosmopolita - na verdade, trata-se de um retrato um tanto devastador das pequenas ambições da classe média. Para comemorar seus 40 anos, o longa será exibido hoje em cópia restaurada na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, onde também ocorre o lançamento do roteiro, publicado pela Imago (184 págs., R$ 30). É a história de Mário (Reginaldo Faria), bancário que se relaciona com Cristina (Regina Duarte, estreando no cinema), jovem rica, orgulhosa e emancipada. Seu interesse, no entanto, é ascender socialmente. Entre os dois coloca-se Neusa (Irene Stefânia), inexperiente e revoltada com a condição humilde de sua família. Produzido em uma época dominada pelos militantes do Cinema Novo, Back, assim como Domingos Oliveira, percorreu caminho paralelo o que, se garantiu uma coerência em seu trabalho, também lhe garantiu o desprezo dos que o julgavam alienado. Sobre o filme, Back conversou por e-mail com o Estado. A seguir, trechos da entrevista. O filme continua vivo e atual, mas é difícil identificar-se com os personagens, especialmente o rapaz que prepara o golpe do baú. Nesse tempo que separa Lance Maior de nossos dias, muitas vezes me assalta a nítida impressão de que não fui eu quem fez o filme! Não sei discernir bem o que está embutido na longevidade dele. Talvez porque sua estética e pegada moral estivessem desalinhadas ao discurso cinematográfico e político da época. Talvez fruto de uma contingência geográfica e cultural morando em Curitiba, talvez minhas origens europeias (pai judeu húngaro, mãe alemã, ela e meus avós fugidos do nazismo, todos ferrenhos livres pensadores). Ou mesmo, pura adivinhação da década sangrenta que se avizinhava. Só sei que Lance Maior exala uma autoria jamais repetida na minha obra. O filme é de 1968. Como você conseguiu manter-se sempre equidistante do Cinema Novo? Nunca poderia esquecer: Lance Maior estreou no Rio, coincidência ou não, na semana do AI-5. Numa sessão flagrei uma caravana de diretores do então Cinema Novo entrando no cine Palácio (eles não me conheciam) para conferir esse "filme paranaense" que vinha com uma inesperada fortuna crítica de São Paulo, Rio, Curitiba e de Porto Alegre. A equidistância do Cinema Novo era tanto pessoal, ainda que trocasse figurinhas com um e outro cineasta, pelo fato de continuar em Curitiba (em 1986 mudei para o Rio de Janeiro), quanto a uma, digamos, "resolução" ideológica e cinéfila, que logicamente se reflete na linguagem do filme. Assim, nossos desenhos políticos nem sempre convergiam, ainda que, naquela quadra, eu militasse na Ação Popular! Não que o Cinema Novo tenha passado ao largo da minha obra e ela de sua órbita cultural. Sempre me senti conflagrado pela estética e influxos de seus melhores filmes e textos. O roteiro/filme oferece um retrato cru das ambições da classe média e tem cenas ousadas para a época, já sob o regime militar. O que o motivou a escrever essa ideia? Tal qual um poema, também o argumento de um roteiro é quase um transe mediúnico, algo que começa difuso e disperso. Ele sempre vem aos pedaços, personagens indefinidos, situações incompletas, como se em momento algum aqueles "insights" fossem se constituir num todo. Queríamos retratar uma vida privada vivida em celuloide do nosso jeito, daí o toque existencialista do filme, assoberbados com o golpe de 64 rondando o nosso cotidiano, cada um engajado à sua maneira no enfrentamento da ditadura militar. Quando escrevemos as cenas da greve no banco, do palavrão, da masturbação, confesso, ficamos temerosos. Mas nada nos impediu de mantê-las, tínhamos em nossa história passagens semelhantes e que no personagem caíam como uma luva. Ainda que aquelas ousadias não fossem algo deliberado, penso hoje havia entre nós um sentimento libertário de que não fazíamos um filme para aqueles tempos. Nem a estrutura anedótica do roteiro nem a linguagem do filme eram servis, predominava um sutil descolamento do aqui e do agora. Com isso, Lance Maior se transformou num filme profético. Como se o cinema tivesse o dom de sobreviver a qualquer tempo sujo. E tem!
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