Pautas sociais de hoje podem levar a projetos artísticos voltados ao passado. Os quatro curadores da 37.ª edição do Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM) têm uma justificativa para a maioria dos seus 26 artistas voltarem às raízes em busca de respostas para o racismo e a desigualdade social: na exposição Sob as Cinzas, Brasa, que será aberta neste sábado, 23, no MAM, eles partem da história para refletir sobre a permanência do modelo colonizador europeu na produção contemporânea.
São obras que comentam eventos históricos como o bicentenário da Independência ou o centenário da Semana de Arte Moderna de 22 sem qualquer traço de ufanismo. Antes, refletem sobre as datas para imaginar que legado deixaram esses eventos.
O Panorama do MAM é uma mostra tradicional realizada para revelar novas tendências e artistas. A rigor, até por estar distantes da visão vanguardista dos modernistas de 1922, os artistas da mostra não estão preocupados com exercícios visionários. Como observam os curadores, eles apenas propõem um diálogo com o público a partir da própria experiência: muitos deles são descendentes de escravos, indígenas ou gays.
Seria possível destacar três entre eles, já reconhecidos: a escultora paraense Lídia Lisboa, que trabalha com argila, e os pintores André Ricardo e Jaime Lauriano. É apenas uma pequena lista, mas há outros bons artistas no Panorama.
Lídia ocupa uma sala com seus 'cupinzais', esculturas em argila que emulam o modelo original como metáfora de uma grande construção feita a partir da terra devastada. “O cupim é o primeiro elemento animal que nasce e indica a retomada da vida”, observa o curador-chefe do MAM, Cauê Alves, um dos quatro curadores da mostra – os outros três são a pernambucana Cristiana Tejo, o paulistano Claudinei Roberto da Silva e a norte-americana Vanessa Davidson.
Outra obra a assumir uma dimensão alegórica é a tela em que Jaime Lauriano desconstrói a pintura original de Pedro Américo, O Grito da Independência (1888), obra central do acervo do Museu Paulista da USP. Obra em técnica mista, ela é assumidamente uma “provocação”, segundo Lauriano. “Fiz uma releitura da tela a partir de crimes ambientais”, explica. Assim, as margens do Ipiranga são retratadas sem mata ciliar, a casa no fundo da tela de Pedro Américo é arrastada por um mar de lama (como na tragédia mineira de Brumadinho) e as árvores ardem numa queimada. Não há personagens pintados na tela de Lauriano. Eles foram trocados por soldados de chumbo que lutam contra militantes políticos no topo do chassis.
André Ricardo, de 37 anos, não faz o que convencionalmente se chama de citacionismo, mas, lembra o curador Cauê, há menções diretas em suas pinturas aos signos religiosos de matriz africana amalgamados com a geometria de Volpi. No começo de carreira, ele pintava caçambas de caminhões sugeridas por formas sintéticas, que remetiam à sua vida como vendedor numa loja de materiais de construção. Exímio desenhista, ele também registrou no passado trabalhadores que circulavam no trem de subúrbio. No Panorama do MAM, ele exibe suas conexões com a arte dos afrodescendentes, como ele.
A questão identitária é tão forte que o artista Eder Oliveira consultou dois historiadores para saber como seriam os traços de um cacique indígena chamado Guaimiaba, comandante dos tupinambás e pacajás no século 16, para pintar seu correspondente moderno, um caboclo. “O Panorama não aposta no panfleto, mas numa arte em que os artistas falam de si mesmos”, diz o curador Cauê Alves. Há, porém, obras de caráter político, caso da instalação Danger, feita por No Martins com sirenes de polícia. Duas outras têm igual apelo popular: a videoinstalação de Eneida e Tracy Collins, Eu Não Sou Daqui, que combate a pseudociência do colonizador sobre traços simiescos nos africanos, e a arena de Giselle Beiguelman que replica a estátua de Borba Gato cortada ao meio.