Aos 51 anos, o fotógrafo Mauro Restiffe volta a participar da Bienal Internacional de São Paulo, exibindo na 34ª. edição da mostra uma série de título lacônico, O Inominável. A partir do dia 4 de setembro, quando será aberta a exposição no Ibirapuera, suas (20) fotos que registram a posse do presidente Jair Bolsonaro, no dia 1º de janeiro de 2019, serão colocadas lado a lado das (também 20) imagens que Restiffe fez em 2003 no mesmo lugar, a Capital Federal, durante a posse do ex-presidente Lula. Num país polarizado, não surpreende essa justaposição. Restiffe ficou conhecido por fazer da arte documental não um simples registro de acontecimentos históricos, mas uma sucessão de ângulos inusitados de grandes eventos – e mais, sem recorrer à presença da figura central que motivou esse encontro. O protagonismo, portanto, não é o de Lula ou de Bolsonaro, mas da massa que deu apoios aos dois políticos. Pelo título que escolheu para a segunda série, O Inominável, desnecessário dizer que Restiffe não nutre simpatia pelo atual presidente. Tampouco faz da fotografia um manifesto ideológico.
No entanto, houve, segundo ele, uma diferença fundamental entre a cobertura da posse de Lula, em 2003, que resultou na série Empossamento, e a de Bolsonaro, em 2019. O cenário, claro, era o mesmo, os amplos espaços da cidade concebida por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa, uma capital marcada pela monumentalidade. O problema, diz Restiffe, foi a mudança de personagens. “Na posse de Lula não tive qualquer problema para fotografar, mas, na de Bolsonaro, fui impedido por seguranças de registrar um ou outro local”. Já dava para sentir o clima de mudança, conclui o fotógrafo, que, nas palavras do crítico Dan Cameron, faz da observação oblíqua do mundo que o circunda uma estratégia. Restiffe dirige o olhar para cenas que, aparentemente, parecem banais, mas que se revelam mais interessantes que o protagonista por trás delas.
Mostra paralela -Paralelamente à mostra de Restiffe na Bienal, sua galeria Fortes D’Aloia & Gabriel organizou uma exposição individual (Laço, Rastro, Traço) em seu galpão na Barra Funda, que abre hoje (28) e integra a programação da mostra internacional, mas cuja natureza difere da dimensão pública de uma posse. São retratos de família e amigos, além de paisagens que retomam a tradição da fotografia pictórica para subverter o pictorialismo. “É um trabalho mais intimista, retratos feitos durante o confinamento por causa da pandemia, que falam desse momento muito particular que estamos vivendo”.
Ainda que Restiffe afaste a proximidade de seu procedimento com o de uma narrativa cinematográfica, fica insinuada nessa série de retratos uma remissão às perturbadoras imagens do cineasta húngaro Béla Tarr (de O Tango de Satã) e ao lirismo do filme Nostalgia, do russo Andrei Tarkovski (1932-1986), que também fez uso de uma iconografia baseada na pintura antiga e clássica – Restiffe explorou os limites entre fotografia, pintura e escultura com Vermeer (1998), estabelecendo com as telas do barroco holandês um estreito diálogo.
“Tento manter uma visão distanciada do tema para compreender melhor o todo e, talvez, construir uma linguagem”, diz, justificando o uso do método analógico de revelação, ampliação e impressão dos negativos em plena era da fotografia digital. Esse processo é uma forma de alcançar maiores granulações de cinza, levando a composições que se aproximam do desenho e da pintura.
Curiosamente, um fotógrafo associado à fotografia preto e banco tem, na série O Inominável, fotos em cor. “Foi por acaso, porque meus filmes acabaram no dia da posse de Bolsonaro e pedi emprestado a colegas dois ou três rolos na Esplanada dos Ministérios – e, claro, eram todos coloridos”.
Ambiguidade. Outra questão relacionada ao uso do preto e branco para registrar eventos recentes tem a ver com a intenção deliberada do fotógrafo de dar a essas imagens uma ambiguidade temporal – daí que as imagens da posse de Lula ou de Bolsonaro conservam muito em comum. A alta granulação produz uma fusão entre a massa fotografada e o cenário urbano. É como uma parábola visual do caótico, do indiferenciado, em que o sujeito é tragado pelo todo, sem a mínima chance de individuação.
“Essa questão temporal me interessa muito”, confirma. “As imagens se ressignificam através do tempo”, conclui, dizendo que elas parecem “mais antigas do que realmente são” – atributo da “fisicalidade” da foto analógica, distante da hiperdefinição da foto digital, “que quer captar tudo”. Mas nem tudo está ali, observa.
A posse de Lula, em 2003, foi a primeira vez de Restiffe em Brasília. “Queria registrar para o meu arquivo pessoal, mas fiquei tomado pela sensação de liberdade, de como a massa popular se misturou à estrutura do poder, fundindo-se com ele, ocupando o território”. Já o registro da posse de Bolsonaro, encomenda de um veículo de imprensa, foi um tanto diferente. “Impedido por várias barreiras na Esplanada, optei, então, por registrar o entorno, os arredores do poder”, revela. “Simbolicamente, as diferenças entre as duas posses ficam bem evidentes na mostra da Bienal”.
Restiffe assume não ter um “toque realista”, mas sente atração pelo documental. Nesse estágio da conversa, vem à tona o nome do fotógrafo americano Walker Evans (1903-1975), que registrou, a pedido do governo, a vida dos desvalidos após o crash da Bolsa de Nova York, construindo uma série histórica que até hoje é uma das principais referências dos fotógrafos profissionais em todo o mundo. “Mas o que ele fez, a visão dele, não dá para reproduzir”.
Ele vê suas duas séries de posse presidencial, por exemplo, mais como uma partitura musical, uma narrativa não linear que tem muito a ver com a pintura. Não há, por exemplo, legenda explicativa para cada uma das imagens das duas séries de Restiffe, cabendo ao espectador analisar a composição dessas fotos conforme seu repertório. Numa Bienal que se propõe a refletir sobre a expansão do território da arte, Restiffe parece ser o nome certo no lugar certo para essa tarefa. Vale lembrar que sua série Empossamento foi mostrada pela primeira vez na 27ª Bienal Internacional de São Paulo (2006).