Descrito como uma obra-prima com áreas abertas que dão espaço para respirar em uma “metrópole apertada”, o Sesc Pompeia, na zona oeste da cidade de São Paulo, foi eleito uma das 25 obras arquitetônicas mais significativas do pós-guerra pela The New York Times Style Magazine, encarte do jornal norte-americano. A publicação ocorre em meio ao crescente reconhecimento internacional da arquiteta Lina Bo Bardi, premiada meses atrás com um Leão de Ouro na Bienal de Veneza, e que também cresce no País, com a publicação de duas novas biografias neste ano, por exemplo.
A lista foi elaborada em conjunto com os arquitetos Toshiko Mori, Annabelle Selldorf e Vincent Van Duysen, o designer Tom Dixon, a artista Es Devlin, o crítico arquitetônico Nikil Saval e Tom Delavan, diretor da revista (também conhecida como T Magazine). Entre os elegidos, apenas três atraíram três votos desde o início: a Casa Farnsworth, de Mies Van der Rohe (de 1951), nos Estados Unidos; o Instituto Salk, de Louis Kahn (de 1965), no mesmo país; e o Sesc Pompeia (entregue em 1986).
Entre as características destacadas dos eleitos está o fato de serem obras atemporais, que poderiam ter sido entregues ontem. No caso do Sesc, foi ressaltado que a transformação de um espaço industrial para novos usos ainda não era cogitada no mainstream arquitetônico nos anos 1970. “Mas Bo Bardi viu na linha serrilhada do telhado da fábrica e na escala industrial uma estrutura histórica não menos valiosa do que os edifícios históricos que ela avaliou quanto aos danos em sua Itália natal, após a Segunda Guerra Mundial”, destaca o texto.
Na publicação, Saval diz que esteve em dúvida se escolhia o Masp ou a Casa de Vidro para integrar a lista (que não tem outro sul-americano), mas que vê no Sesc uma combinação de “exuberância e monumentalidade”. Já Selldorf descreveu a autora como uma “importante voz do seu tempo”.
Trajetória de Lina Bo Bardi
Ao ser contratada na década de 1970 pelo Sesc, Lina criou uma “Fábrica de Poesia”, como descrevia, com parte da estrutura de uma antiga indústria de tambores e novas construções, majoritariamente de concreto. O passado do local se manteve nos novos espaços, como a caixa d’água, que lembra uma grande chaminé. Embora o projeto seja de 1977, a obra foi completada nove anos depois, em meio a entregas de parte das estruturas ao longo dos anos e diversas adaptações do projeto, com Lina presente no dia a dia da execução.
Entre as mudanças, por exemplo, esteve a instalação do deque de madeira, pensado para driblar os então frequentes problemas de drenagem na região. “O projeto e a obra foram surgindo ao mesmo tempo. Ela trabalhava negociando com fornecedores, o que é algo completamente incomum”, destaca Renata Bechara, que pesquisou o Sesc Pompeia no mestrado.
A pesquisadora lembra que foi Lina quem defendeu que parte da fábrica deveria ser mantida no projeto, e não demolida, percebendo que funcionários e a população do entorno já tinham uma relação com os antigos galpões da fábrica. “Ela se apropriou disso.”
A apropriação envolve também a adaptação frequente para manter o projeto idealizado. Um caso é a própria caixa d’água, cuja empresa contratada para a execução queria utilizar uma forma de metal, e não de madeira como o previsto pela arquiteta, que era mais cara. Para manter as marcas horizontais, então, colocou-se estopa no fundo das formas, para que ensopassem de argamassa e escorressem, formando franjas.
Um dos autores do livro Cidadela da Liberdade: Lina Bo Bardi e o Sesc Pompeia, o arquiteto Marcelo Ferraz já chegou a descrever o espaço como uma “bomba” no ambiente da época, tamanho o estranhamento que causou, por não se enquadrar em definições específicas, inclusive a estética. “Ali, conversam programa e projeto, o que é superimportante e um dos fatores que levam a esse sucesso. É um lugar de todos, talvez o mais democrático de São Paulo, de cultura e lazer”, afirma. “E tem uma convivência do passado no presente: uma fábrica obsoleta que não mais servia e volta a viver com novas funções, novos usos”, diz.
“Sintetiza toda obra da Lina, é uma obra da Lina madura, que já tinha andado muito, já tinha passado pela Bahia, no Solar do Unhão, pelo Masp. O Sesc contém muito das experiências anteriores desses projetos que deram certo e muito daquilo que ela não conseguiu fazer”, comenta Ferraz, que trabalhou com a arquiteta por anos. “Foi inaugurado quando o Brasil estava saindo da ditadura, ganhando novos ares. Vem ao encontro dessa ânsia de um tempo melhor.”
Ferraz e o arquiteto André Vainer, que também trabalhou com Lina, foram os primeiros a pedir o tombamento do espaço ao Iphan. A proposta foi seguida de outras e, enfim, assentida por conselheiros em 2015. “(É um) fragmento de uma cidade perceptivelmente ambivalente”, descreveu na época o relator do processo, Carlos Eduardo Dias Comas.
Professor e vice-diretor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo (IAU) da USP, Miguel Buzzar lembra que a obra tem um reconhecimento tanto entre arquitetos quanto popular, sendo um ícone de fato da cidade. Para ele, entre outros motivos, a valorização maior de Lina ocorre em um momento em que a historiografia passou enfim a olhar para a contribuição das arquitetas. “É um reconhecimento mais do que merecido”, comenta ele, também coordenador em São Paulo do Docomomo International (Comitê Internacional de Documentação e Conservação de Edifícios, Sítios e Bairros do Movimento Moderno).
A arquiteta Renata Bechara destaca que o reconhecimento não foi contemporâneo no exterior. Comenta, por exemplo, de uma ocasião em que Lina voltou à Itália, onde nasceu, para apresentar projetos e ideias, mas acabou frustrada com a recepção. “Voltou para casa com a ideia que não entendiam nada (do que propunha). Esse reconhecimento é tardio.”
Outra característica do Sesc é ser um local entre o público e o privado, com uma espécie de rua central em meio às construções e uma área de convivência fechada, mas com amplas entradas, dando um ar de praça, ao mesmo tempo que é bilheteria, biblioteca e espaço expositivo. “Dá uma sensação de estar dentro da cidade, mas em um lugar à parte, protegido”, acrescenta.
Diretor regional do Sesc-SP, Danilo Santos de Miranda comenta que o espaço é “um acervo fantástico do ponto de vista humano, social e arquitetônico. Reúne cultura, esporte, alimentação, saúde, convivência”. Ele percebe que a população sentiu a ausência necessária na pandemia, embora a unidade esteja hoje “semiaberta”, com visitas agendadas e com programação mais ampla prevista para o ano que vem. “É muito potente, tem uma presença muito forte.”
Veja a lista completa:
- Casa Luis Barragán (1948), de Luis Barragán, na Cidade do México, no México
- Casa de Edith Farnsworth (1951), de Ludwig Mies van der Rohe, em Chicago, EUA
- Nova Gourna (1952), de Hassan Fathy, em Luxor, Egito
- Saynatsalo Town Hall (1952), deAlvar Aalto, em Jyvaskyla, Finlândia
- Edifício Seagram (1958), de Ludwig Mies van der Rohe’, em Nova York, EUA
- Edifício da Prefeitura de Kagawa (1958), de Kenzo Tange, em Takamatsu, Japão
- Fondazione Querini Stampalia (1959), de Carlo Scarpa, em Veneza
- Convento de Sainte-Marie de la Tourette (1960), de Le Corbusier, em Éveux, França
- Haystack Mountain School of Crafts (1961), de Edward Larrabee Barnes, em Deer Isle, no Maine, EUA
- Salk Institute (1965), de Louis Kahn, em La Jolla, Califórnia, EUA
- Geodesic Dome para a Expo'67 (1967), de Buckminster Fuller, em Montreal, Canadá
- Edifício da Johnson Publishing Company (1971), de John W. Moutoussamy, em Chicago, EUA
- Opera House (1973), de Jorn Utzon, em Sydney, Austrália
- Les Arcs (1974), de Charlotte Perriand, em Savoie, França
- Van Wassenhove House (1974), de Juliaan Lampens, em Sint-Martens-Latem, Bélgica
- Centro Pompidou (1977), deRenzo Piano e Richard Rogers, em Paris, França
- Indian Institute of Management Bangalore (1983), de Balkrishna Doshi, emBangalore, Índia
- Sesc Pompeia (1986), de Lina Bo Bardi, em São Paulo
- Termas Vals, (1996), de Peter Zumthor, em Vals, Suíça
- Escola Primária (2001), de Francis Kéré, em Gando, Burkina Faso
- Campus da Academia de Arte Chinesa (2007), de Wang Shu e Lu Wenyu, em Hangzhou, China
- Bait Ur Rouf Mosque (2012), de Marina Tabassum, em Daka, Bangladesh
- “Color(ed) Theory” Series (2014-16), de Amanda Williams, em Chicago, EUA
- Reforma do 530 Dwellings in Grand Parc (2017), de Lacaton & Vassal, Frédéric Druot and Christophe Hutin, em Bordeux, França
- Estação Espacial Internacional, de vários criadores, no espaço