Trópico da saudade


Documentário refaz expedições do antropólogo a tribos indígenas

Por Marcelo Fortaleza Flores

Retratar a realidade da Amazônia ou do interior do Brasil não é tarefa fácil. Menos ainda se esta descrição não exclui as outras civilizações que ali fizeram seus berços e cujas culturas e sabedorias diversas ainda tão pouco entendemos. Enquanto para a maior parte dos brasileiros a Amazônia continua sendo uma fonte inesgotável de utopias, para o antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, que a visitou em 1938, ela se tornou o testemunho de uma relação mais sadia que o homem concebeu com o meio ambiente. Para ele, nosso mundo urbano se tornou "cheio demais", sem boas perspectivas, e nós nos tornamos "consumidores bulímicos das riquezas que nos rodeiam". As terras ainda preservadas da Amazônia e suas culturas milenares seriam o último laboratório vivo de uma possibilidade que poderia levar-nos a uma forma possível daquilo que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável. Esta foi talvez a grande revelação que o pensador belga nos legou no filme que se propôs a fazer com a equipe de Trópico da Saudade. O título do filme em sua versão brasileira (em preparação) é uma referência direta aos dois livros que Lévi-Strauss publicou sobre suas memórias do Brasil: Tristes Trópicos (1955) e Saudades do Brasil (1994), enquanto a versão para a TV francesa a ser veiculada pela France 5 amanhã, como parte das comemorações pelo centenário do antropólogo (Claude Lévi-Strauss, auprès de l?Amazonie) traz uma menção direta à Amazônia humanizada que o pensador belga conheceu e procurou descrever. Quando chegou ao porto de Santos em 1935, o intuito de Lévi-Strauss era estudar as populações indígenas do Brasil que resistiam ao contato com a sociedade. Lévi-Strauss trazia no bolso um livro que o fascinara: História de uma Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, missionário francês que narrara suas experiências entre os índios tupi no século 16. Anos mais tarde e para a sua surpresa, Lévi-Strauss veria imagens que refletiam certos traços da civilização que achara Léry. Um índio que encontraria repetiria uma frase que Michel de Montaigne teria ouvido dos tupinambás que visitaram a França. Lévi-Strauss seria suspeito de feitiçaria pelos índios por causa do ato inocente de levar alguns balões de São João para diverti-los. Lévi-Strauss perceberia a forma lúdica como os índios vêem o amor. Nas margens do Araguaia, Lévi-Strauss encontraria o respeito que os índios têm pela autonomia, independência e individualidade de suas crianças, quando os pais de uma menina se recusaram a ajudar o antropólogo a efetuar uma troca com a pequena proprietária de 3 ou 4 anos. São essas reflexões "colhidas ao vento" (muitas das quais são retratadas no filme) que fazem com que os relatos e análises de Lévi-Strauss revelem as cores, o gosto e o perfume de suas experiências. De 1935 a 1938, enquanto lecionava sociologia na USP, Lévi-Strauss iniciou-se na etnografia por meio de viagens ao Paraná e Goiás, onde encontrou os caingangues e os carajás, respectivamente; bem como através de uma curta expedição etnográfica em 1936 que o conduziu ao Pantanal e Cuiabá pelas terras dos cadiuéus e dos bororos. Foram essas sociedades hierárquicas, dotadas de um modelo social dialético e altamente complexo, que inspiraram Lévi-Strauss a usar o método estrutural que ele depois derivaria da lingüística para explicar tipos específicos de organização social e expressões estéticas. A expedição de 1936 proporcionou o reconhecimento do trabalho de Lévi-Strauss por outros antropólogos da época e o financiamento para prosseguir com suas pesquisas. Em 1938, Lévi-Strauss realizou uma grande expedição pelos sertões de Mato Grosso, penetrando a Amazônia através do Vale do Guaporé, território relativamente inexplorado do Brasil na época. Realizada nos moldes das grandes expedições etnográficas ao interior do País no século 19 e no início do século 20, como as viagens de Von den Steinen pelo Xingu ou de Köch Grunberg em Roraima, Lévi-Strauss utilizou como via de acesso a linha telegráfica construída pelo Marechal Rondon, que havia "desbravado" este "velho oeste" brasileiro havia apenas 25 anos. Como escreveu o próprio Lévi-Strauss, a linha telegráfica atravessava pelo meio uma região tão grande quanto a França percorrida por grupos indígenas distintos e nem sempre amistosos. A trilha aberta pela linha era a "picada", com seus postes e postos telegráficos, únicos pontos de referência num espaço de 700 km². Sua rota cingia as terras nhanbiquaras pela mítica Serra do Norte e levava aos grupos tupis remanescentes que sobreviviam às doenças e aos conflitos com as frentes pioneiras no interior da Amazônia. Por razões históricas, os nhambiquaras se achavam reduzidos a uma tal simplicidade sociológica que Lévi-Strauss pensou ter encontrado o "mínimo social" que o filósofo Jean-Jacques Rousseau imaginara como o estado indiferenciado nos quais grupos humanos estabeleceriam uma expressão prototípica do contrato social. Ao iniciar um filme sobre a viagem de Lévi-Strauss e o que os nossos sertões e a Amazônia o fizeram descobrir, o primeiro desafio foi condensar uma experiência tão rica e complexa no tempo exíguo que nos permite o cinema, procurando mesmo assim desvelar imagens que pudessem colocar o público diante do que ele presenciou, para que eles pudessem compartilhar da profundidade de seu pensamento e da visão de um Brasil ainda pouco conhecido por nós. O próprio Lévi-Strauss me dera a pista a seguir em 2005, quando autorizou diversas entrevistas em seu escritório no Collège de France, em Paris, nas quais relatou suas melhores memórias do Brasil entre suas populações indígenas. Autorizou também a citação livre de seu livro mémoire sobre o Brasil, Tristes Trópicos, que serviu de inspiração poética para as imagens do filme (as passagens selecionadas do livro são narradas na versão francesa do filme na voz do escritor e roteirista Jean-Claude Carrière). As entrevistas concedidas por Lévi-Strauss se concentraram praticamente em torno dos nhambiquaras, grupo que Lévi-Strauss encontrou em 1938 e com o qual ele realizaria seu trabalho de campo mais aprofundado, estendendo-se por vários meses. Destes, o período mais fértil foi passado em Utiariti, então uma mera estação telegráfica, junto ao subgrupo wakalitesu (povo do Jacaré). Entre eles, Lévi-Strauss encontrou o seu maior guia e informante: Júlio Katunkalosu. Este líder nhambiquara foi o protagonista de uma admirável passagem de Tristes Trópicos: a Lição de Escrita, em que Júlio mostra sua sagacidade ao apropriar-se da escrita da qual Lévi-Strauss fazia uso em seus diários, utilizando-a para os seus próprios fins políticos, não obstante o fato de pertencer a uma cultura exclusivamente oral. Apesar de ter publicado uma tese sobre os nhambiquaras em 1948 e lhes ter dedicado páginas belíssimas em Tristes Trópicos, esta viagem de Lévi-Strauss à Amazônia pelos sertões mais incólumes de Mato Grosso restaria ainda muito pouco conhecida (e nunca antes filmada). Os nhambiquaras voltaram a ser estudados em profundidade somente 30 anos depois, quando sua "situação de contato" no Vale do Guaporé repetia os ciclos de epidemias, invasões e fomes que se alastraram pelos cerrados depois da passagem de Rondon. Quase 50 anos depois de Lévi-Strauss, antes mesmo de iniciar minha carreira cinematográfica, durante minha formação em antropologia e em música, e por um acaso do destino (uma vez que meu pedido de pesquisa foi indeferido por outro grupo indígena), me deparei também com os nhambiquaras. Foi meu comprometimento com essa e outras sociedades indígenas que me colocaram em contato com Lévi-Strauss. Tendo trabalhado com os grupos nhambiquaras que mais resistiram aos embates coloniais: os sararés e os wasusus, nos anos 80 e 90, acabei eventualmente visitando, a partir de 2006, os wakalitesu que o pensador belga havia estudado. No dia seguinte ao de minha chegada entre os wakalitesu, fiquei admirado ao ser apresentado ao único filho sobrevivente de Júlio, o guia de Lévi-Strauss. Logo depois, os índios me apresentaram também a um senhor octagenário que acabou me falando, diante de minha câmera, que encontrara no passado um homem a quem chamava de "Máximo Lévi". Este homem teria vindo com uma expedição de carros de boi pela linha telegráfica e morado em Utiariti com seu grupo. Jamais contava em achar vestígios tão concretos da passagem de Lévi-Strauss. Tito, como este ancião wakalitesu é chamado, faz na verdade uma reconstrução de seu passado por intermédio da passagem da expedição de 1938. Apenas alguns anos depois, ainda criança, Tito seria removido da área por missionários que se instalaram em Utiariti. Ele foi primeiramente levado à pequena cidade de Diamantino, depois para Cuiabá, Três Lagoas e Rio. Tito residiu 30 anos entre os "brancos" e foi também a museus, onde reviu objetos de seu povo (e é provável que ele continuou a ouvir falar no tal Lévi). "Professor Lévi" era como Lévi-Strauss foi chamado por outros membros de sua expedição de 1938; "Máximo" é certamente uma invenção de Tito, talvez uma tentativa de recapturar a importância de sua figura e quiçá a alta estatura de Lévi-Strauss (os nhambiquaras sempre naturalizam as qualidades de seus antigos chefes dizendo que eles "eram altos"). Durante a pesquisa para as filmagens, encontrei também um dos grupos tupis cujos antepassados Lévi-Strauss conheceu e fotografou: os índios akunsun, cujos últimos seis sobreviventes vivem hoje no sul de Rondônia. Sobreviventes de um massacre em 1985 (os dois homens que restam do grupo guardam ainda as cicatrizes da época em que tiveram o corpo crivado de balas). Estes índios são, seguramente, ou o grupo exato, ou um grupo vizinho e bastante próximo, dos mundés, que Lévi-Strauss visitou no Rio Pimenta Bueno em 1938, depois de sua estada entre os nhambiquaras. A semelhança fotográfica que pode ser constatada na cultura material se alastra a mais de 30 itens: de utensílios e adornos às técnicas de suas confecções, de cortes de cabelo até mesmo à maneira de sentar-se. Em Brasília, dois lingüistas ajudaram-me ainda a averiguar a proximidade lingüística entre o grupo akunsun e os mundés de Lévi-Strauss. Ana Suelly Cabral e Aryon Rodriguez constataram que o akunsun é uma língua independente da família tupi-tupari, cuja relação de palavras contém diversos cognatos com uma lista que Lévi-Strauss colheu. Esta redescoberta de um dos grupos (ou de um grupo vizinho da aldeia em que esteve Lévi-Strauss) coloca em outro plano os indígenas ditos "isolados" hoje em dia no Brasil. Se os akunsuns são os mundés, então isso nos salienta a importância da preservação desses grupos que, depois de contatos violentos com a sociedade regional brasileira, procuraram preservar-se, adentrando novamente os recônditos mais distantes de nossas florestas. Apesar das belas páginas que Lévi-Strauss dedicou aos nhambiquaras, em Tristes Trópicos, esses índios também haviam sido esquecidos, como o são a maioria dos grupos já contatados pelas instituições brasileiras. Esta foi a principal razão pela qual Lévi-Strauss autorizou o filme: conceder aos nhambiquaras e aos outros povos indígenas uma possibilidade de retornar à atenção pública, de colocar novamente a questão indígena em pauta, mas em uma perspectiva diferente, que salienta a necessidade da preservação de suas terras e cultura. Assim, poderemos reaprender formas mais sadias e sustentáveis de vivermos sem destruir as potenciais soluções que talvez ainda possamos encontrar no maior banco genético e laboratório das relações humanas e ambientais que ainda há no mundo. Marcelo Fortaleza Flores é antropólogo e cineasta, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da Universidade Americana de Paris, autor do documentário Trópico da Saudade

Retratar a realidade da Amazônia ou do interior do Brasil não é tarefa fácil. Menos ainda se esta descrição não exclui as outras civilizações que ali fizeram seus berços e cujas culturas e sabedorias diversas ainda tão pouco entendemos. Enquanto para a maior parte dos brasileiros a Amazônia continua sendo uma fonte inesgotável de utopias, para o antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, que a visitou em 1938, ela se tornou o testemunho de uma relação mais sadia que o homem concebeu com o meio ambiente. Para ele, nosso mundo urbano se tornou "cheio demais", sem boas perspectivas, e nós nos tornamos "consumidores bulímicos das riquezas que nos rodeiam". As terras ainda preservadas da Amazônia e suas culturas milenares seriam o último laboratório vivo de uma possibilidade que poderia levar-nos a uma forma possível daquilo que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável. Esta foi talvez a grande revelação que o pensador belga nos legou no filme que se propôs a fazer com a equipe de Trópico da Saudade. O título do filme em sua versão brasileira (em preparação) é uma referência direta aos dois livros que Lévi-Strauss publicou sobre suas memórias do Brasil: Tristes Trópicos (1955) e Saudades do Brasil (1994), enquanto a versão para a TV francesa a ser veiculada pela France 5 amanhã, como parte das comemorações pelo centenário do antropólogo (Claude Lévi-Strauss, auprès de l?Amazonie) traz uma menção direta à Amazônia humanizada que o pensador belga conheceu e procurou descrever. Quando chegou ao porto de Santos em 1935, o intuito de Lévi-Strauss era estudar as populações indígenas do Brasil que resistiam ao contato com a sociedade. Lévi-Strauss trazia no bolso um livro que o fascinara: História de uma Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, missionário francês que narrara suas experiências entre os índios tupi no século 16. Anos mais tarde e para a sua surpresa, Lévi-Strauss veria imagens que refletiam certos traços da civilização que achara Léry. Um índio que encontraria repetiria uma frase que Michel de Montaigne teria ouvido dos tupinambás que visitaram a França. Lévi-Strauss seria suspeito de feitiçaria pelos índios por causa do ato inocente de levar alguns balões de São João para diverti-los. Lévi-Strauss perceberia a forma lúdica como os índios vêem o amor. Nas margens do Araguaia, Lévi-Strauss encontraria o respeito que os índios têm pela autonomia, independência e individualidade de suas crianças, quando os pais de uma menina se recusaram a ajudar o antropólogo a efetuar uma troca com a pequena proprietária de 3 ou 4 anos. São essas reflexões "colhidas ao vento" (muitas das quais são retratadas no filme) que fazem com que os relatos e análises de Lévi-Strauss revelem as cores, o gosto e o perfume de suas experiências. De 1935 a 1938, enquanto lecionava sociologia na USP, Lévi-Strauss iniciou-se na etnografia por meio de viagens ao Paraná e Goiás, onde encontrou os caingangues e os carajás, respectivamente; bem como através de uma curta expedição etnográfica em 1936 que o conduziu ao Pantanal e Cuiabá pelas terras dos cadiuéus e dos bororos. Foram essas sociedades hierárquicas, dotadas de um modelo social dialético e altamente complexo, que inspiraram Lévi-Strauss a usar o método estrutural que ele depois derivaria da lingüística para explicar tipos específicos de organização social e expressões estéticas. A expedição de 1936 proporcionou o reconhecimento do trabalho de Lévi-Strauss por outros antropólogos da época e o financiamento para prosseguir com suas pesquisas. Em 1938, Lévi-Strauss realizou uma grande expedição pelos sertões de Mato Grosso, penetrando a Amazônia através do Vale do Guaporé, território relativamente inexplorado do Brasil na época. Realizada nos moldes das grandes expedições etnográficas ao interior do País no século 19 e no início do século 20, como as viagens de Von den Steinen pelo Xingu ou de Köch Grunberg em Roraima, Lévi-Strauss utilizou como via de acesso a linha telegráfica construída pelo Marechal Rondon, que havia "desbravado" este "velho oeste" brasileiro havia apenas 25 anos. Como escreveu o próprio Lévi-Strauss, a linha telegráfica atravessava pelo meio uma região tão grande quanto a França percorrida por grupos indígenas distintos e nem sempre amistosos. A trilha aberta pela linha era a "picada", com seus postes e postos telegráficos, únicos pontos de referência num espaço de 700 km². Sua rota cingia as terras nhanbiquaras pela mítica Serra do Norte e levava aos grupos tupis remanescentes que sobreviviam às doenças e aos conflitos com as frentes pioneiras no interior da Amazônia. Por razões históricas, os nhambiquaras se achavam reduzidos a uma tal simplicidade sociológica que Lévi-Strauss pensou ter encontrado o "mínimo social" que o filósofo Jean-Jacques Rousseau imaginara como o estado indiferenciado nos quais grupos humanos estabeleceriam uma expressão prototípica do contrato social. Ao iniciar um filme sobre a viagem de Lévi-Strauss e o que os nossos sertões e a Amazônia o fizeram descobrir, o primeiro desafio foi condensar uma experiência tão rica e complexa no tempo exíguo que nos permite o cinema, procurando mesmo assim desvelar imagens que pudessem colocar o público diante do que ele presenciou, para que eles pudessem compartilhar da profundidade de seu pensamento e da visão de um Brasil ainda pouco conhecido por nós. O próprio Lévi-Strauss me dera a pista a seguir em 2005, quando autorizou diversas entrevistas em seu escritório no Collège de France, em Paris, nas quais relatou suas melhores memórias do Brasil entre suas populações indígenas. Autorizou também a citação livre de seu livro mémoire sobre o Brasil, Tristes Trópicos, que serviu de inspiração poética para as imagens do filme (as passagens selecionadas do livro são narradas na versão francesa do filme na voz do escritor e roteirista Jean-Claude Carrière). As entrevistas concedidas por Lévi-Strauss se concentraram praticamente em torno dos nhambiquaras, grupo que Lévi-Strauss encontrou em 1938 e com o qual ele realizaria seu trabalho de campo mais aprofundado, estendendo-se por vários meses. Destes, o período mais fértil foi passado em Utiariti, então uma mera estação telegráfica, junto ao subgrupo wakalitesu (povo do Jacaré). Entre eles, Lévi-Strauss encontrou o seu maior guia e informante: Júlio Katunkalosu. Este líder nhambiquara foi o protagonista de uma admirável passagem de Tristes Trópicos: a Lição de Escrita, em que Júlio mostra sua sagacidade ao apropriar-se da escrita da qual Lévi-Strauss fazia uso em seus diários, utilizando-a para os seus próprios fins políticos, não obstante o fato de pertencer a uma cultura exclusivamente oral. Apesar de ter publicado uma tese sobre os nhambiquaras em 1948 e lhes ter dedicado páginas belíssimas em Tristes Trópicos, esta viagem de Lévi-Strauss à Amazônia pelos sertões mais incólumes de Mato Grosso restaria ainda muito pouco conhecida (e nunca antes filmada). Os nhambiquaras voltaram a ser estudados em profundidade somente 30 anos depois, quando sua "situação de contato" no Vale do Guaporé repetia os ciclos de epidemias, invasões e fomes que se alastraram pelos cerrados depois da passagem de Rondon. Quase 50 anos depois de Lévi-Strauss, antes mesmo de iniciar minha carreira cinematográfica, durante minha formação em antropologia e em música, e por um acaso do destino (uma vez que meu pedido de pesquisa foi indeferido por outro grupo indígena), me deparei também com os nhambiquaras. Foi meu comprometimento com essa e outras sociedades indígenas que me colocaram em contato com Lévi-Strauss. Tendo trabalhado com os grupos nhambiquaras que mais resistiram aos embates coloniais: os sararés e os wasusus, nos anos 80 e 90, acabei eventualmente visitando, a partir de 2006, os wakalitesu que o pensador belga havia estudado. No dia seguinte ao de minha chegada entre os wakalitesu, fiquei admirado ao ser apresentado ao único filho sobrevivente de Júlio, o guia de Lévi-Strauss. Logo depois, os índios me apresentaram também a um senhor octagenário que acabou me falando, diante de minha câmera, que encontrara no passado um homem a quem chamava de "Máximo Lévi". Este homem teria vindo com uma expedição de carros de boi pela linha telegráfica e morado em Utiariti com seu grupo. Jamais contava em achar vestígios tão concretos da passagem de Lévi-Strauss. Tito, como este ancião wakalitesu é chamado, faz na verdade uma reconstrução de seu passado por intermédio da passagem da expedição de 1938. Apenas alguns anos depois, ainda criança, Tito seria removido da área por missionários que se instalaram em Utiariti. Ele foi primeiramente levado à pequena cidade de Diamantino, depois para Cuiabá, Três Lagoas e Rio. Tito residiu 30 anos entre os "brancos" e foi também a museus, onde reviu objetos de seu povo (e é provável que ele continuou a ouvir falar no tal Lévi). "Professor Lévi" era como Lévi-Strauss foi chamado por outros membros de sua expedição de 1938; "Máximo" é certamente uma invenção de Tito, talvez uma tentativa de recapturar a importância de sua figura e quiçá a alta estatura de Lévi-Strauss (os nhambiquaras sempre naturalizam as qualidades de seus antigos chefes dizendo que eles "eram altos"). Durante a pesquisa para as filmagens, encontrei também um dos grupos tupis cujos antepassados Lévi-Strauss conheceu e fotografou: os índios akunsun, cujos últimos seis sobreviventes vivem hoje no sul de Rondônia. Sobreviventes de um massacre em 1985 (os dois homens que restam do grupo guardam ainda as cicatrizes da época em que tiveram o corpo crivado de balas). Estes índios são, seguramente, ou o grupo exato, ou um grupo vizinho e bastante próximo, dos mundés, que Lévi-Strauss visitou no Rio Pimenta Bueno em 1938, depois de sua estada entre os nhambiquaras. A semelhança fotográfica que pode ser constatada na cultura material se alastra a mais de 30 itens: de utensílios e adornos às técnicas de suas confecções, de cortes de cabelo até mesmo à maneira de sentar-se. Em Brasília, dois lingüistas ajudaram-me ainda a averiguar a proximidade lingüística entre o grupo akunsun e os mundés de Lévi-Strauss. Ana Suelly Cabral e Aryon Rodriguez constataram que o akunsun é uma língua independente da família tupi-tupari, cuja relação de palavras contém diversos cognatos com uma lista que Lévi-Strauss colheu. Esta redescoberta de um dos grupos (ou de um grupo vizinho da aldeia em que esteve Lévi-Strauss) coloca em outro plano os indígenas ditos "isolados" hoje em dia no Brasil. Se os akunsuns são os mundés, então isso nos salienta a importância da preservação desses grupos que, depois de contatos violentos com a sociedade regional brasileira, procuraram preservar-se, adentrando novamente os recônditos mais distantes de nossas florestas. Apesar das belas páginas que Lévi-Strauss dedicou aos nhambiquaras, em Tristes Trópicos, esses índios também haviam sido esquecidos, como o são a maioria dos grupos já contatados pelas instituições brasileiras. Esta foi a principal razão pela qual Lévi-Strauss autorizou o filme: conceder aos nhambiquaras e aos outros povos indígenas uma possibilidade de retornar à atenção pública, de colocar novamente a questão indígena em pauta, mas em uma perspectiva diferente, que salienta a necessidade da preservação de suas terras e cultura. Assim, poderemos reaprender formas mais sadias e sustentáveis de vivermos sem destruir as potenciais soluções que talvez ainda possamos encontrar no maior banco genético e laboratório das relações humanas e ambientais que ainda há no mundo. Marcelo Fortaleza Flores é antropólogo e cineasta, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da Universidade Americana de Paris, autor do documentário Trópico da Saudade

Retratar a realidade da Amazônia ou do interior do Brasil não é tarefa fácil. Menos ainda se esta descrição não exclui as outras civilizações que ali fizeram seus berços e cujas culturas e sabedorias diversas ainda tão pouco entendemos. Enquanto para a maior parte dos brasileiros a Amazônia continua sendo uma fonte inesgotável de utopias, para o antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, que a visitou em 1938, ela se tornou o testemunho de uma relação mais sadia que o homem concebeu com o meio ambiente. Para ele, nosso mundo urbano se tornou "cheio demais", sem boas perspectivas, e nós nos tornamos "consumidores bulímicos das riquezas que nos rodeiam". As terras ainda preservadas da Amazônia e suas culturas milenares seriam o último laboratório vivo de uma possibilidade que poderia levar-nos a uma forma possível daquilo que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável. Esta foi talvez a grande revelação que o pensador belga nos legou no filme que se propôs a fazer com a equipe de Trópico da Saudade. O título do filme em sua versão brasileira (em preparação) é uma referência direta aos dois livros que Lévi-Strauss publicou sobre suas memórias do Brasil: Tristes Trópicos (1955) e Saudades do Brasil (1994), enquanto a versão para a TV francesa a ser veiculada pela France 5 amanhã, como parte das comemorações pelo centenário do antropólogo (Claude Lévi-Strauss, auprès de l?Amazonie) traz uma menção direta à Amazônia humanizada que o pensador belga conheceu e procurou descrever. Quando chegou ao porto de Santos em 1935, o intuito de Lévi-Strauss era estudar as populações indígenas do Brasil que resistiam ao contato com a sociedade. Lévi-Strauss trazia no bolso um livro que o fascinara: História de uma Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, missionário francês que narrara suas experiências entre os índios tupi no século 16. Anos mais tarde e para a sua surpresa, Lévi-Strauss veria imagens que refletiam certos traços da civilização que achara Léry. Um índio que encontraria repetiria uma frase que Michel de Montaigne teria ouvido dos tupinambás que visitaram a França. Lévi-Strauss seria suspeito de feitiçaria pelos índios por causa do ato inocente de levar alguns balões de São João para diverti-los. Lévi-Strauss perceberia a forma lúdica como os índios vêem o amor. Nas margens do Araguaia, Lévi-Strauss encontraria o respeito que os índios têm pela autonomia, independência e individualidade de suas crianças, quando os pais de uma menina se recusaram a ajudar o antropólogo a efetuar uma troca com a pequena proprietária de 3 ou 4 anos. São essas reflexões "colhidas ao vento" (muitas das quais são retratadas no filme) que fazem com que os relatos e análises de Lévi-Strauss revelem as cores, o gosto e o perfume de suas experiências. De 1935 a 1938, enquanto lecionava sociologia na USP, Lévi-Strauss iniciou-se na etnografia por meio de viagens ao Paraná e Goiás, onde encontrou os caingangues e os carajás, respectivamente; bem como através de uma curta expedição etnográfica em 1936 que o conduziu ao Pantanal e Cuiabá pelas terras dos cadiuéus e dos bororos. Foram essas sociedades hierárquicas, dotadas de um modelo social dialético e altamente complexo, que inspiraram Lévi-Strauss a usar o método estrutural que ele depois derivaria da lingüística para explicar tipos específicos de organização social e expressões estéticas. A expedição de 1936 proporcionou o reconhecimento do trabalho de Lévi-Strauss por outros antropólogos da época e o financiamento para prosseguir com suas pesquisas. Em 1938, Lévi-Strauss realizou uma grande expedição pelos sertões de Mato Grosso, penetrando a Amazônia através do Vale do Guaporé, território relativamente inexplorado do Brasil na época. Realizada nos moldes das grandes expedições etnográficas ao interior do País no século 19 e no início do século 20, como as viagens de Von den Steinen pelo Xingu ou de Köch Grunberg em Roraima, Lévi-Strauss utilizou como via de acesso a linha telegráfica construída pelo Marechal Rondon, que havia "desbravado" este "velho oeste" brasileiro havia apenas 25 anos. Como escreveu o próprio Lévi-Strauss, a linha telegráfica atravessava pelo meio uma região tão grande quanto a França percorrida por grupos indígenas distintos e nem sempre amistosos. A trilha aberta pela linha era a "picada", com seus postes e postos telegráficos, únicos pontos de referência num espaço de 700 km². Sua rota cingia as terras nhanbiquaras pela mítica Serra do Norte e levava aos grupos tupis remanescentes que sobreviviam às doenças e aos conflitos com as frentes pioneiras no interior da Amazônia. Por razões históricas, os nhambiquaras se achavam reduzidos a uma tal simplicidade sociológica que Lévi-Strauss pensou ter encontrado o "mínimo social" que o filósofo Jean-Jacques Rousseau imaginara como o estado indiferenciado nos quais grupos humanos estabeleceriam uma expressão prototípica do contrato social. Ao iniciar um filme sobre a viagem de Lévi-Strauss e o que os nossos sertões e a Amazônia o fizeram descobrir, o primeiro desafio foi condensar uma experiência tão rica e complexa no tempo exíguo que nos permite o cinema, procurando mesmo assim desvelar imagens que pudessem colocar o público diante do que ele presenciou, para que eles pudessem compartilhar da profundidade de seu pensamento e da visão de um Brasil ainda pouco conhecido por nós. O próprio Lévi-Strauss me dera a pista a seguir em 2005, quando autorizou diversas entrevistas em seu escritório no Collège de France, em Paris, nas quais relatou suas melhores memórias do Brasil entre suas populações indígenas. Autorizou também a citação livre de seu livro mémoire sobre o Brasil, Tristes Trópicos, que serviu de inspiração poética para as imagens do filme (as passagens selecionadas do livro são narradas na versão francesa do filme na voz do escritor e roteirista Jean-Claude Carrière). As entrevistas concedidas por Lévi-Strauss se concentraram praticamente em torno dos nhambiquaras, grupo que Lévi-Strauss encontrou em 1938 e com o qual ele realizaria seu trabalho de campo mais aprofundado, estendendo-se por vários meses. Destes, o período mais fértil foi passado em Utiariti, então uma mera estação telegráfica, junto ao subgrupo wakalitesu (povo do Jacaré). Entre eles, Lévi-Strauss encontrou o seu maior guia e informante: Júlio Katunkalosu. Este líder nhambiquara foi o protagonista de uma admirável passagem de Tristes Trópicos: a Lição de Escrita, em que Júlio mostra sua sagacidade ao apropriar-se da escrita da qual Lévi-Strauss fazia uso em seus diários, utilizando-a para os seus próprios fins políticos, não obstante o fato de pertencer a uma cultura exclusivamente oral. Apesar de ter publicado uma tese sobre os nhambiquaras em 1948 e lhes ter dedicado páginas belíssimas em Tristes Trópicos, esta viagem de Lévi-Strauss à Amazônia pelos sertões mais incólumes de Mato Grosso restaria ainda muito pouco conhecida (e nunca antes filmada). Os nhambiquaras voltaram a ser estudados em profundidade somente 30 anos depois, quando sua "situação de contato" no Vale do Guaporé repetia os ciclos de epidemias, invasões e fomes que se alastraram pelos cerrados depois da passagem de Rondon. Quase 50 anos depois de Lévi-Strauss, antes mesmo de iniciar minha carreira cinematográfica, durante minha formação em antropologia e em música, e por um acaso do destino (uma vez que meu pedido de pesquisa foi indeferido por outro grupo indígena), me deparei também com os nhambiquaras. Foi meu comprometimento com essa e outras sociedades indígenas que me colocaram em contato com Lévi-Strauss. Tendo trabalhado com os grupos nhambiquaras que mais resistiram aos embates coloniais: os sararés e os wasusus, nos anos 80 e 90, acabei eventualmente visitando, a partir de 2006, os wakalitesu que o pensador belga havia estudado. No dia seguinte ao de minha chegada entre os wakalitesu, fiquei admirado ao ser apresentado ao único filho sobrevivente de Júlio, o guia de Lévi-Strauss. Logo depois, os índios me apresentaram também a um senhor octagenário que acabou me falando, diante de minha câmera, que encontrara no passado um homem a quem chamava de "Máximo Lévi". Este homem teria vindo com uma expedição de carros de boi pela linha telegráfica e morado em Utiariti com seu grupo. Jamais contava em achar vestígios tão concretos da passagem de Lévi-Strauss. Tito, como este ancião wakalitesu é chamado, faz na verdade uma reconstrução de seu passado por intermédio da passagem da expedição de 1938. Apenas alguns anos depois, ainda criança, Tito seria removido da área por missionários que se instalaram em Utiariti. Ele foi primeiramente levado à pequena cidade de Diamantino, depois para Cuiabá, Três Lagoas e Rio. Tito residiu 30 anos entre os "brancos" e foi também a museus, onde reviu objetos de seu povo (e é provável que ele continuou a ouvir falar no tal Lévi). "Professor Lévi" era como Lévi-Strauss foi chamado por outros membros de sua expedição de 1938; "Máximo" é certamente uma invenção de Tito, talvez uma tentativa de recapturar a importância de sua figura e quiçá a alta estatura de Lévi-Strauss (os nhambiquaras sempre naturalizam as qualidades de seus antigos chefes dizendo que eles "eram altos"). Durante a pesquisa para as filmagens, encontrei também um dos grupos tupis cujos antepassados Lévi-Strauss conheceu e fotografou: os índios akunsun, cujos últimos seis sobreviventes vivem hoje no sul de Rondônia. Sobreviventes de um massacre em 1985 (os dois homens que restam do grupo guardam ainda as cicatrizes da época em que tiveram o corpo crivado de balas). Estes índios são, seguramente, ou o grupo exato, ou um grupo vizinho e bastante próximo, dos mundés, que Lévi-Strauss visitou no Rio Pimenta Bueno em 1938, depois de sua estada entre os nhambiquaras. A semelhança fotográfica que pode ser constatada na cultura material se alastra a mais de 30 itens: de utensílios e adornos às técnicas de suas confecções, de cortes de cabelo até mesmo à maneira de sentar-se. Em Brasília, dois lingüistas ajudaram-me ainda a averiguar a proximidade lingüística entre o grupo akunsun e os mundés de Lévi-Strauss. Ana Suelly Cabral e Aryon Rodriguez constataram que o akunsun é uma língua independente da família tupi-tupari, cuja relação de palavras contém diversos cognatos com uma lista que Lévi-Strauss colheu. Esta redescoberta de um dos grupos (ou de um grupo vizinho da aldeia em que esteve Lévi-Strauss) coloca em outro plano os indígenas ditos "isolados" hoje em dia no Brasil. Se os akunsuns são os mundés, então isso nos salienta a importância da preservação desses grupos que, depois de contatos violentos com a sociedade regional brasileira, procuraram preservar-se, adentrando novamente os recônditos mais distantes de nossas florestas. Apesar das belas páginas que Lévi-Strauss dedicou aos nhambiquaras, em Tristes Trópicos, esses índios também haviam sido esquecidos, como o são a maioria dos grupos já contatados pelas instituições brasileiras. Esta foi a principal razão pela qual Lévi-Strauss autorizou o filme: conceder aos nhambiquaras e aos outros povos indígenas uma possibilidade de retornar à atenção pública, de colocar novamente a questão indígena em pauta, mas em uma perspectiva diferente, que salienta a necessidade da preservação de suas terras e cultura. Assim, poderemos reaprender formas mais sadias e sustentáveis de vivermos sem destruir as potenciais soluções que talvez ainda possamos encontrar no maior banco genético e laboratório das relações humanas e ambientais que ainda há no mundo. Marcelo Fortaleza Flores é antropólogo e cineasta, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da Universidade Americana de Paris, autor do documentário Trópico da Saudade

Retratar a realidade da Amazônia ou do interior do Brasil não é tarefa fácil. Menos ainda se esta descrição não exclui as outras civilizações que ali fizeram seus berços e cujas culturas e sabedorias diversas ainda tão pouco entendemos. Enquanto para a maior parte dos brasileiros a Amazônia continua sendo uma fonte inesgotável de utopias, para o antropólogo belga Claude Lévi-Strauss, que a visitou em 1938, ela se tornou o testemunho de uma relação mais sadia que o homem concebeu com o meio ambiente. Para ele, nosso mundo urbano se tornou "cheio demais", sem boas perspectivas, e nós nos tornamos "consumidores bulímicos das riquezas que nos rodeiam". As terras ainda preservadas da Amazônia e suas culturas milenares seriam o último laboratório vivo de uma possibilidade que poderia levar-nos a uma forma possível daquilo que chamamos hoje de desenvolvimento sustentável. Esta foi talvez a grande revelação que o pensador belga nos legou no filme que se propôs a fazer com a equipe de Trópico da Saudade. O título do filme em sua versão brasileira (em preparação) é uma referência direta aos dois livros que Lévi-Strauss publicou sobre suas memórias do Brasil: Tristes Trópicos (1955) e Saudades do Brasil (1994), enquanto a versão para a TV francesa a ser veiculada pela France 5 amanhã, como parte das comemorações pelo centenário do antropólogo (Claude Lévi-Strauss, auprès de l?Amazonie) traz uma menção direta à Amazônia humanizada que o pensador belga conheceu e procurou descrever. Quando chegou ao porto de Santos em 1935, o intuito de Lévi-Strauss era estudar as populações indígenas do Brasil que resistiam ao contato com a sociedade. Lévi-Strauss trazia no bolso um livro que o fascinara: História de uma Viagem à Terra do Brasil, de Jean de Léry, missionário francês que narrara suas experiências entre os índios tupi no século 16. Anos mais tarde e para a sua surpresa, Lévi-Strauss veria imagens que refletiam certos traços da civilização que achara Léry. Um índio que encontraria repetiria uma frase que Michel de Montaigne teria ouvido dos tupinambás que visitaram a França. Lévi-Strauss seria suspeito de feitiçaria pelos índios por causa do ato inocente de levar alguns balões de São João para diverti-los. Lévi-Strauss perceberia a forma lúdica como os índios vêem o amor. Nas margens do Araguaia, Lévi-Strauss encontraria o respeito que os índios têm pela autonomia, independência e individualidade de suas crianças, quando os pais de uma menina se recusaram a ajudar o antropólogo a efetuar uma troca com a pequena proprietária de 3 ou 4 anos. São essas reflexões "colhidas ao vento" (muitas das quais são retratadas no filme) que fazem com que os relatos e análises de Lévi-Strauss revelem as cores, o gosto e o perfume de suas experiências. De 1935 a 1938, enquanto lecionava sociologia na USP, Lévi-Strauss iniciou-se na etnografia por meio de viagens ao Paraná e Goiás, onde encontrou os caingangues e os carajás, respectivamente; bem como através de uma curta expedição etnográfica em 1936 que o conduziu ao Pantanal e Cuiabá pelas terras dos cadiuéus e dos bororos. Foram essas sociedades hierárquicas, dotadas de um modelo social dialético e altamente complexo, que inspiraram Lévi-Strauss a usar o método estrutural que ele depois derivaria da lingüística para explicar tipos específicos de organização social e expressões estéticas. A expedição de 1936 proporcionou o reconhecimento do trabalho de Lévi-Strauss por outros antropólogos da época e o financiamento para prosseguir com suas pesquisas. Em 1938, Lévi-Strauss realizou uma grande expedição pelos sertões de Mato Grosso, penetrando a Amazônia através do Vale do Guaporé, território relativamente inexplorado do Brasil na época. Realizada nos moldes das grandes expedições etnográficas ao interior do País no século 19 e no início do século 20, como as viagens de Von den Steinen pelo Xingu ou de Köch Grunberg em Roraima, Lévi-Strauss utilizou como via de acesso a linha telegráfica construída pelo Marechal Rondon, que havia "desbravado" este "velho oeste" brasileiro havia apenas 25 anos. Como escreveu o próprio Lévi-Strauss, a linha telegráfica atravessava pelo meio uma região tão grande quanto a França percorrida por grupos indígenas distintos e nem sempre amistosos. A trilha aberta pela linha era a "picada", com seus postes e postos telegráficos, únicos pontos de referência num espaço de 700 km². Sua rota cingia as terras nhanbiquaras pela mítica Serra do Norte e levava aos grupos tupis remanescentes que sobreviviam às doenças e aos conflitos com as frentes pioneiras no interior da Amazônia. Por razões históricas, os nhambiquaras se achavam reduzidos a uma tal simplicidade sociológica que Lévi-Strauss pensou ter encontrado o "mínimo social" que o filósofo Jean-Jacques Rousseau imaginara como o estado indiferenciado nos quais grupos humanos estabeleceriam uma expressão prototípica do contrato social. Ao iniciar um filme sobre a viagem de Lévi-Strauss e o que os nossos sertões e a Amazônia o fizeram descobrir, o primeiro desafio foi condensar uma experiência tão rica e complexa no tempo exíguo que nos permite o cinema, procurando mesmo assim desvelar imagens que pudessem colocar o público diante do que ele presenciou, para que eles pudessem compartilhar da profundidade de seu pensamento e da visão de um Brasil ainda pouco conhecido por nós. O próprio Lévi-Strauss me dera a pista a seguir em 2005, quando autorizou diversas entrevistas em seu escritório no Collège de France, em Paris, nas quais relatou suas melhores memórias do Brasil entre suas populações indígenas. Autorizou também a citação livre de seu livro mémoire sobre o Brasil, Tristes Trópicos, que serviu de inspiração poética para as imagens do filme (as passagens selecionadas do livro são narradas na versão francesa do filme na voz do escritor e roteirista Jean-Claude Carrière). As entrevistas concedidas por Lévi-Strauss se concentraram praticamente em torno dos nhambiquaras, grupo que Lévi-Strauss encontrou em 1938 e com o qual ele realizaria seu trabalho de campo mais aprofundado, estendendo-se por vários meses. Destes, o período mais fértil foi passado em Utiariti, então uma mera estação telegráfica, junto ao subgrupo wakalitesu (povo do Jacaré). Entre eles, Lévi-Strauss encontrou o seu maior guia e informante: Júlio Katunkalosu. Este líder nhambiquara foi o protagonista de uma admirável passagem de Tristes Trópicos: a Lição de Escrita, em que Júlio mostra sua sagacidade ao apropriar-se da escrita da qual Lévi-Strauss fazia uso em seus diários, utilizando-a para os seus próprios fins políticos, não obstante o fato de pertencer a uma cultura exclusivamente oral. Apesar de ter publicado uma tese sobre os nhambiquaras em 1948 e lhes ter dedicado páginas belíssimas em Tristes Trópicos, esta viagem de Lévi-Strauss à Amazônia pelos sertões mais incólumes de Mato Grosso restaria ainda muito pouco conhecida (e nunca antes filmada). Os nhambiquaras voltaram a ser estudados em profundidade somente 30 anos depois, quando sua "situação de contato" no Vale do Guaporé repetia os ciclos de epidemias, invasões e fomes que se alastraram pelos cerrados depois da passagem de Rondon. Quase 50 anos depois de Lévi-Strauss, antes mesmo de iniciar minha carreira cinematográfica, durante minha formação em antropologia e em música, e por um acaso do destino (uma vez que meu pedido de pesquisa foi indeferido por outro grupo indígena), me deparei também com os nhambiquaras. Foi meu comprometimento com essa e outras sociedades indígenas que me colocaram em contato com Lévi-Strauss. Tendo trabalhado com os grupos nhambiquaras que mais resistiram aos embates coloniais: os sararés e os wasusus, nos anos 80 e 90, acabei eventualmente visitando, a partir de 2006, os wakalitesu que o pensador belga havia estudado. No dia seguinte ao de minha chegada entre os wakalitesu, fiquei admirado ao ser apresentado ao único filho sobrevivente de Júlio, o guia de Lévi-Strauss. Logo depois, os índios me apresentaram também a um senhor octagenário que acabou me falando, diante de minha câmera, que encontrara no passado um homem a quem chamava de "Máximo Lévi". Este homem teria vindo com uma expedição de carros de boi pela linha telegráfica e morado em Utiariti com seu grupo. Jamais contava em achar vestígios tão concretos da passagem de Lévi-Strauss. Tito, como este ancião wakalitesu é chamado, faz na verdade uma reconstrução de seu passado por intermédio da passagem da expedição de 1938. Apenas alguns anos depois, ainda criança, Tito seria removido da área por missionários que se instalaram em Utiariti. Ele foi primeiramente levado à pequena cidade de Diamantino, depois para Cuiabá, Três Lagoas e Rio. Tito residiu 30 anos entre os "brancos" e foi também a museus, onde reviu objetos de seu povo (e é provável que ele continuou a ouvir falar no tal Lévi). "Professor Lévi" era como Lévi-Strauss foi chamado por outros membros de sua expedição de 1938; "Máximo" é certamente uma invenção de Tito, talvez uma tentativa de recapturar a importância de sua figura e quiçá a alta estatura de Lévi-Strauss (os nhambiquaras sempre naturalizam as qualidades de seus antigos chefes dizendo que eles "eram altos"). Durante a pesquisa para as filmagens, encontrei também um dos grupos tupis cujos antepassados Lévi-Strauss conheceu e fotografou: os índios akunsun, cujos últimos seis sobreviventes vivem hoje no sul de Rondônia. Sobreviventes de um massacre em 1985 (os dois homens que restam do grupo guardam ainda as cicatrizes da época em que tiveram o corpo crivado de balas). Estes índios são, seguramente, ou o grupo exato, ou um grupo vizinho e bastante próximo, dos mundés, que Lévi-Strauss visitou no Rio Pimenta Bueno em 1938, depois de sua estada entre os nhambiquaras. A semelhança fotográfica que pode ser constatada na cultura material se alastra a mais de 30 itens: de utensílios e adornos às técnicas de suas confecções, de cortes de cabelo até mesmo à maneira de sentar-se. Em Brasília, dois lingüistas ajudaram-me ainda a averiguar a proximidade lingüística entre o grupo akunsun e os mundés de Lévi-Strauss. Ana Suelly Cabral e Aryon Rodriguez constataram que o akunsun é uma língua independente da família tupi-tupari, cuja relação de palavras contém diversos cognatos com uma lista que Lévi-Strauss colheu. Esta redescoberta de um dos grupos (ou de um grupo vizinho da aldeia em que esteve Lévi-Strauss) coloca em outro plano os indígenas ditos "isolados" hoje em dia no Brasil. Se os akunsuns são os mundés, então isso nos salienta a importância da preservação desses grupos que, depois de contatos violentos com a sociedade regional brasileira, procuraram preservar-se, adentrando novamente os recônditos mais distantes de nossas florestas. Apesar das belas páginas que Lévi-Strauss dedicou aos nhambiquaras, em Tristes Trópicos, esses índios também haviam sido esquecidos, como o são a maioria dos grupos já contatados pelas instituições brasileiras. Esta foi a principal razão pela qual Lévi-Strauss autorizou o filme: conceder aos nhambiquaras e aos outros povos indígenas uma possibilidade de retornar à atenção pública, de colocar novamente a questão indígena em pauta, mas em uma perspectiva diferente, que salienta a necessidade da preservação de suas terras e cultura. Assim, poderemos reaprender formas mais sadias e sustentáveis de vivermos sem destruir as potenciais soluções que talvez ainda possamos encontrar no maior banco genético e laboratório das relações humanas e ambientais que ainda há no mundo. Marcelo Fortaleza Flores é antropólogo e cineasta, professor convidado do Instituto de Altos Estudos em América Latina da Universidade de Paris e professor titular da Universidade Americana de Paris, autor do documentário Trópico da Saudade

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