Aberta para o público nesta semana, a 35ª Bienal de São Paulo tem como elemento definidor o conceito de reparação. Não apenas por ser, de longe, a edição do evento com mais participações de artistas não brancos (correspondem a quase 80% dos 121 convidados) e, consequentemente, contar com número amplo de obras que lidam com questões como desigualdade racial, jugo colonialista, violência de gênero e contra povos originários, entre outros temas. Ou porque marca, simbolicamente, a superação de um período marcado pelo luto pandêmico e pelo cerceamento à cultura.
Mas também porque propõe, em muitos dos trabalhos ali expostos, de forma concreta, processos vinculados às noções de desagravo, reabilitação, remissão. Ao mesmo tempo em que desnudam a opressão, conectam-se com ritos potentes de cura, superação e conexão subjetiva, propõem novas formas de agir e pensar.
A ideia de coletivo, de ação conjunta capaz de transformar o mundo, ou de tornar o impossível possível (como expressa o título da Bienal) permeia muitos dos trabalhos. Está expressa em “Oq Ximtali”, registro de performance realizada na Guatemala por Manuel Chavachay, na qual vemos um conjunto de 20 barcos tradicionais (cayucos) atados uns aos outros, formando um grande círculo no lago Atitlán, num gesto que os conecta, resistindo ao processo quase inexorável de desagregação imposto pela super exploração capitalista.
Procedimento semelhante de crítica e inversão de sentidos é adotado por Marilyn Boror Bor, que transforma a si própria em monumento vivo e toca direto em feridas como destruição cultural e ambiental na instalação “Nos tiraram a montanha, nos devolveram cimento.”
A leveza, a adoção de uma presença marcada por grande sutileza e integração ao espaço é outro viés de destaque. A urgência das causas que embasam esses trabalhos se mescla a estratégias de sobrevivência que encontram no belo, no cuidadosamente elaborado, uma arma de combate e superação.
Possuem uma espécie de “beleza terrível”, sintetizou Grada Kilomba na coletiva de imprensa realizada semana passada, estabelecendo uma categoria na qual uma ampla gama de intervenções parece se encaixar e que abandonam o caráter sisudo e propositalmente duro de parte da produção contemporânea deste século.
A expografia inovadora proposta pelo escritório de arquitetura Vão amplifica esse efeito de clareza, ao mesmo tempo que valoriza a arquitetura de Oscar Niemeyer. A opção por fechar as aberturas para o vão central do prédio parece paradoxalmente ter tornado o espaço mais fluido e criado ambientações mais favoráveis às instalações. A sensação é de expansão, como se as laterais do segundo andar, ao não serem mais corredores abertos ao grande vão, se tornassem espaços mais íntimos para diálogos entre as obras.
Destaca-se nesta 35ª edição o número grande de obras comissionadas, feitas para e a pedido da Bienal. Igshaan Adams, por exemplo, apresenta uma instalação chamada “Chutando Poeira”, em que dá corpo a formas fascinantes feitas de materiais desprezados, associados ao cotidiano das townships, como são conhecidas as favelas sul-africanas, propondo uma parábola do esforço cotidiano de embelezar, da forma possível, um cotidiano marcado pela pobreza e esperança.
Próximo a ele encontramos uma sucessão de participações de grande potência estética e simbólica, nos quais também parece imperar uma certa sabedoria diante do horror, como aqueles propostos por Castiel Vitorino Brasileiro, Luana Vitra e Geraldine Javier.
Mas há um conjunto interessante de referências históricas, o que reforça a ideia de tempo espiralar, não progressivo, defendida pela curadoria, elaborada a quatro mãos por Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel.
E deixa claro a opção por não privilegiar um tipo único de estilo ou tendência, indo das potentes gravuras de viés expressionista de José Guadalupe Losada, à pintura do cubano WIlfredo Lam, que funde Caribe e surrealismo, antropomorfismo e natureza, com suas figuras derivadas de religiões de matriz Iorubá.
São diversos os encontros propostos pela curadoria. Alguns deles são evidentes, como aquele entre Sonia Gomes (um dos grandes resgates da mostra) e Judith Scott, ambas construtoras de formas ambíguas, labirínticas e desafiadoras, com materiais associados ao fazer artesanal, subvertendo a linha e o tecido, e que estendem também às participações de Rosana Paulino – com sua antológica “Parede da Memória” – e Arthur Bispo do Rosário.
Além disso, surpreende a sintonia encontrada entre o grande painel de Emanoel Araújo instalado no térreo (apelidado de andar verde) e as esculturas de Rubem Valentim, pertences à série “Templo de Oxalá”, exibida parcialmente na 14ª bienal, em 1977 e agora de forma integral, no 3º piso (andar azul). Os dois mestres da arte negra no Brasil parecem servir de abre-alas, com seus trabalhos prenhes de referência tanto às religiões afro-brasileiras como às experimentações da vanguarda construtiva.
Trata-se de uma exposição muito sensual, também no sentido mais explicito do termo. E que envolve não apenas o sentido da visão, mais explicitamente ligado ao campo das artes visuais. A dança e, sobretudo, a música têm grande presença, sem que o som de uma obra invada a outra, mais um aspecto positivo da expografia.
Dentre esses trabalhos multissensoriais, destaca-se a comovente instalação proposta por Ayrson Heráclito e Tiganá Santana: um labirinto escuro e instável feito de bambus, repleto de cheiros, musicalidade e mistérios, que o visitante percorre tateando e que é povoado por entidades, guardiões, do mundo espiritual, mas também real, como Dom Phillips, Chico Mendes e outros mártires da luta ambiental. Afinal, como afirma Borja-Villel, “o futuro está nesses passados que a história única fez desaparecer.”