Artigos sobre o crítico de cinema Ismail Xavier estão reunidos em livro


'Um Pensador do Cinema Brasileiro' avalia seu legado nas facetas de teórico, crítico e divulgador

Por Luiz Zanin Oricchio

Ismail Xavier – Um Pensador do Cinema Brasileiro (Edições Sesc/Abraccine) consegue o equilíbrio entre a justa homenagem e o formato ensaístico. O volume, organizado pelos críticos Fatimarlei Lunardelli, Humberto Pereira da Silva e Ivonete Pinto, contempla, em artigos de diversos autores, algumas das facetas que fizeram de Ismail Xavier um dos mais importantes pensadores do cinema em nosso País – a relação particular com o cinema brasileiro, suas articulações com a literatura, o lado mais teórico, a função do crítico, a repercussão de sua obra no exterior, sua influência e legado. 

'Terra em Transe', de Glauber Rocha, um dos objetos de estudo de Ismail Xavier Foto: Versátil Home Video

Portanto, o livro é abrangente o bastante e o time convocado para escrever sobre Ismail não poderia ser mais heterogêneo – e competente. Citemos apenas alguns, sem prejuízo dos demais. Há desde colegas na ECA/USP, como Carlos Augusto Calil a amigos e companheiros de estrada, como o ensaísta norte-americano Robert Stam. Estão presentes jovens críticos e leitores de Ismail como Marcelo Miranda, além de discípulos já consagrados em carreiras próprias, como Adilson Mendes, Leandro Rocha Saraiva e Tunico Amâncio. 

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Cada um dos ensaios mereceria resenha à parte. Na impossibilidade, por uma questão de espaço, tentemos uma abordagem de conjunto. 

Vale começar pelo texto de Marcelo Miranda, raro por flagrar um período menos conhecido de Ismail – o de jovem crítico de cinema em veículos de maior circulação. É uma novidade. Ou, pelo menos, algo menos conhecido pelos fãs de Ismail, que o veem na condição de acadêmico, responsável por obras incontornáveis da literatura cinematográfica como Sertão Mar e Alegorias do Subdesenvolvimento, mais do que como resenhista de jornais. 

No entanto, para compreender Ismail e seu estilo, pode ser necessário voltar a essa breve fase em que se exercitou na crítica jornalística, em especial no hoje extinto Diário de São Paulo, entre os anos 1968-1969. O período de grande efervescência política e cinematográfica forneceu ao futuro ensaísta a experiência de escrever “a quente” sobre os filmes então lançados no mercado cinematográfico, títulos como Todas as Mulheres do Mundo, Cidadão Kane e Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas. Essa experiência breve talvez tenha deixado como legado a necessidade da escrita clara, em sintonia com o leitor. E também o respeito pela crítica jornalística, sentimento não muito comum entre seus colegas de Universidade. 

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Mas se este breve período de “jornalista” é importante na definição da ferramenta crítica de Ismail, outros fatores se impõem de maneira ainda mais definitiva. O rigor com o qual disseca as obras te a ver com a formação em engenharia na USP. E, mais ainda, com sua experiência como montador, então já como aluno da primeira turma da ECA. 

Além de tudo isso, não se pode esquecer da influência de seus dois mestres – Paulo Emílio Sales Gomes, orientador da sua dissertação de mestrado, e Antonio Candido, da sua tese de doutorado. Ora, temos aí duas vigas mestras da cultura paulistana e brasileira. Paulo Emílio e Antonio Candido foram amigos e colegas na revista Clima e depois reuniram-se na mesma universidade, em torno de alunos, pesquisas, lutas culturais e políticas. São matrizes da formação de Ismail, expressa num método que busca no exame da forma o sedimento histórico nela depositado. Junte-se aí a experiência de Ismail nos Estados Unidos e seu contato com o empirismo norte-americano e teremos aí o perfil do scholar completo e internacional. 

Esse arranjo mental permite ao crítico evitar tanto o conteudismo vulgar quanto o formalismo abstrato, detendo-se na “carne” da obra através de um impecável “close reading”, porém nunca esquecido da necessidade de contextualizá-lo no espaço histórico e social na qual nasce a obra. 

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Vários dos articulistas do livro detêm-se na construção dessa apurada ferramenta crítica, que permite fazer falar os filmes sem reduzi-los a esqueletos ou épuras, e sem a tentação de pensá-los num vácuo histórico e político. 

De fato, ao tratarmos de um crítico, e crítico privilegiado, importa sabermos como chegou a construir seu método de trabalho. No artigo A Paixão pelo Detalhe, ou o Método da Análise Fílmica, Fabio Camarneiro enfatiza a atenção de Ismail em “diversos elementos da tessitura fílmica (mise-en-scène, banda sonora, cor, contraste, cenário, atrizes e atores, etc), em busca de um detalhe revelador, uma espécie de ponto nessa tessitura que, para o analista, pode servir como ponto de partida para se observar o conjunto da obra na construção de interpretações mais amplas.” 

Esse aspecto é crucial. Ismail, em conversas, defende a necessidade de o crítico encontrar esse ponto sensível no filme, esse “punctum”, na acepção de Barthes, a partir do qual a interpretação pode partir e se organizar. Daí a inutilidade de toda erudição se o crítico não dispuser dessa fina sensibilidade, essa intuição ou insight a partir do qual a obra se revela e se desvela. 

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Mas, para além desses necessários insights criativos, está a necessidade metodológica de desdobrar os aspectos latentes da obra. Nesse sentido, o instrumental afinado do crítico conta com uma visão bastante particular da “alegoria” como ferramenta para compreender em especial a produção nacional. Lembremos o título de uma das obras mais importantes de Ismail, Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Neste volume seminal, Ismail se debruça sobre filmes como Terra em Transe, de Glauber Rocha, O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, e mostra como formam o tecido alegórico de um país submetido à ditadura, ao terror e ao desespero.

Quanto a esse aspecto, é central o texto de Pablo Gonçalo (Quando a Literatura se Faz Imagem: Alegoria e Olhar na Obra de Ismail Xavier). Neste, Gonçalo parte do sentido comum de alegoria (“ocorre quando manifesta-se algo para aludir a outra coisa”) para articulá-lo na maneira usada pelo crítico: “Uma mediação simbólica para uma ideia política, uma situação histórica, o retrato de um país…”). A alegoria (dizer uma coisa pela outra) podia ser um recurso útil em ambiente de censura às artes. Mas era também uma “escolha estilística...um ponto de partida que desdobra os enigmas da época, como a agonia, a exasperação, a modernização conservadora, a infantilização…”. 

Outra sacada de Ismail, já em novo momento histórico, é o uso da noção de “ressentimento”. Presente em artigos como Figuras do Ressentimento no cinema brasileiro dos anos 1990, na longa entrevista concedida à revista Praga e no livro O Olhar e a Cena, o termo é decupado como conceito-chave para compreensão de filmes mais recentes como Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Como Nascem os Anjos, de Murilo Salles, Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral, Ação entre Amigos, de Beto Brant, e Central do Brasil, de Walter Salles, entre outros. Nessas obras, Ismail veria uma amarração narrativa descrita como refluxo à esfera privada de personagens movidos pela desilusão com a política, ou pela indiferença em relação a ela. 

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Em seu artigo A contribuição de Ismail para os estudos de cinema brasileiro em língua inglesa, Stephanie Dennison nota que Ismail “chega a ponto de ver o ressentimento como um diagnóstico nacional, um sentimento que decorre da falta de esperança política”.  Estudando as relações entre o cinema de Arnaldo Jabor e a obra de Nelson Rodrigues, “Ismail chega ao solo fértil fornecido pela categoria do ressentimento à obra do dramaturgo e, por herança, do cineasta”, escreve Carlos Augusto Calil no artigo Professor de Cinema. Para Calil, essa seria a “chave de interpretação de uma profunda ferida narcísica no inconsciente coletivo brasileiro”. A intuição do conceito de ressentimento lhe permite dar coerência à massa de produção cinematográfica dos anos 1990 em diante, na reconstrução do cinema nacional depois de desmantelamento da era Collor, processo chamado de Retomada. A interpretação é ousada e não deixa de ser polêmica. O próprio Calil assinala: “Ismail atirou no que viu e acertou no que não viu. O ressentimento se aplica à produção artística brasileira em grande escala e, atualmente, ao campo da clivagem política. Quem não for ressentido que se apresente”. 

Ismail estuda o ressentimento a partir de Nietzsche e de Max Scheler (1874-1928), autor de L’Homme du Ressentiment. Ele é descrito por Scheler como “rancor e desejo de vingança, o ódio, a maldade, o ciúme, a inveja, a malícia”, sendo, segundo Ismail, “o desejo de vingança o mais importante” de todo esse leque de sentimentos negativos. Soa familiar ao Brasil pós-2018?

Com os conceitos de alegoria para o cinema brasileiro dos anos 1960 e de ressentimento para o dos anos 1990 e 2000, Ismail burila ferramentas de interpretação para o conjunto de filmes produzidos, mas, ao mesmo tempo, extrapola o campo estético, indo além da esfera cinematográfica e jogando luz sobre o contexto cultural, histórico e político de maneira ampla. O crítico de cinema, a partir do seu ponto de observação, torna-se pensador do país, de sua conjuntura e suas estruturas profundas. Obtém do cinema seu rendimento máximo como “espelho da nação”, expressão clichê sempre usada, e com razão, para exprimir a necessidade e o direito de cada país ter o seu próprio cinema – e seus intérpretes privilegiados. 

Ismail Xavier – Um Pensador do Cinema Brasileiro (Edições Sesc/Abraccine) consegue o equilíbrio entre a justa homenagem e o formato ensaístico. O volume, organizado pelos críticos Fatimarlei Lunardelli, Humberto Pereira da Silva e Ivonete Pinto, contempla, em artigos de diversos autores, algumas das facetas que fizeram de Ismail Xavier um dos mais importantes pensadores do cinema em nosso País – a relação particular com o cinema brasileiro, suas articulações com a literatura, o lado mais teórico, a função do crítico, a repercussão de sua obra no exterior, sua influência e legado. 

'Terra em Transe', de Glauber Rocha, um dos objetos de estudo de Ismail Xavier Foto: Versátil Home Video

Portanto, o livro é abrangente o bastante e o time convocado para escrever sobre Ismail não poderia ser mais heterogêneo – e competente. Citemos apenas alguns, sem prejuízo dos demais. Há desde colegas na ECA/USP, como Carlos Augusto Calil a amigos e companheiros de estrada, como o ensaísta norte-americano Robert Stam. Estão presentes jovens críticos e leitores de Ismail como Marcelo Miranda, além de discípulos já consagrados em carreiras próprias, como Adilson Mendes, Leandro Rocha Saraiva e Tunico Amâncio. 

Cada um dos ensaios mereceria resenha à parte. Na impossibilidade, por uma questão de espaço, tentemos uma abordagem de conjunto. 

Vale começar pelo texto de Marcelo Miranda, raro por flagrar um período menos conhecido de Ismail – o de jovem crítico de cinema em veículos de maior circulação. É uma novidade. Ou, pelo menos, algo menos conhecido pelos fãs de Ismail, que o veem na condição de acadêmico, responsável por obras incontornáveis da literatura cinematográfica como Sertão Mar e Alegorias do Subdesenvolvimento, mais do que como resenhista de jornais. 

No entanto, para compreender Ismail e seu estilo, pode ser necessário voltar a essa breve fase em que se exercitou na crítica jornalística, em especial no hoje extinto Diário de São Paulo, entre os anos 1968-1969. O período de grande efervescência política e cinematográfica forneceu ao futuro ensaísta a experiência de escrever “a quente” sobre os filmes então lançados no mercado cinematográfico, títulos como Todas as Mulheres do Mundo, Cidadão Kane e Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas. Essa experiência breve talvez tenha deixado como legado a necessidade da escrita clara, em sintonia com o leitor. E também o respeito pela crítica jornalística, sentimento não muito comum entre seus colegas de Universidade. 

Mas se este breve período de “jornalista” é importante na definição da ferramenta crítica de Ismail, outros fatores se impõem de maneira ainda mais definitiva. O rigor com o qual disseca as obras te a ver com a formação em engenharia na USP. E, mais ainda, com sua experiência como montador, então já como aluno da primeira turma da ECA. 

Além de tudo isso, não se pode esquecer da influência de seus dois mestres – Paulo Emílio Sales Gomes, orientador da sua dissertação de mestrado, e Antonio Candido, da sua tese de doutorado. Ora, temos aí duas vigas mestras da cultura paulistana e brasileira. Paulo Emílio e Antonio Candido foram amigos e colegas na revista Clima e depois reuniram-se na mesma universidade, em torno de alunos, pesquisas, lutas culturais e políticas. São matrizes da formação de Ismail, expressa num método que busca no exame da forma o sedimento histórico nela depositado. Junte-se aí a experiência de Ismail nos Estados Unidos e seu contato com o empirismo norte-americano e teremos aí o perfil do scholar completo e internacional. 

Esse arranjo mental permite ao crítico evitar tanto o conteudismo vulgar quanto o formalismo abstrato, detendo-se na “carne” da obra através de um impecável “close reading”, porém nunca esquecido da necessidade de contextualizá-lo no espaço histórico e social na qual nasce a obra. 

Vários dos articulistas do livro detêm-se na construção dessa apurada ferramenta crítica, que permite fazer falar os filmes sem reduzi-los a esqueletos ou épuras, e sem a tentação de pensá-los num vácuo histórico e político. 

De fato, ao tratarmos de um crítico, e crítico privilegiado, importa sabermos como chegou a construir seu método de trabalho. No artigo A Paixão pelo Detalhe, ou o Método da Análise Fílmica, Fabio Camarneiro enfatiza a atenção de Ismail em “diversos elementos da tessitura fílmica (mise-en-scène, banda sonora, cor, contraste, cenário, atrizes e atores, etc), em busca de um detalhe revelador, uma espécie de ponto nessa tessitura que, para o analista, pode servir como ponto de partida para se observar o conjunto da obra na construção de interpretações mais amplas.” 

Esse aspecto é crucial. Ismail, em conversas, defende a necessidade de o crítico encontrar esse ponto sensível no filme, esse “punctum”, na acepção de Barthes, a partir do qual a interpretação pode partir e se organizar. Daí a inutilidade de toda erudição se o crítico não dispuser dessa fina sensibilidade, essa intuição ou insight a partir do qual a obra se revela e se desvela. 

Mas, para além desses necessários insights criativos, está a necessidade metodológica de desdobrar os aspectos latentes da obra. Nesse sentido, o instrumental afinado do crítico conta com uma visão bastante particular da “alegoria” como ferramenta para compreender em especial a produção nacional. Lembremos o título de uma das obras mais importantes de Ismail, Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Neste volume seminal, Ismail se debruça sobre filmes como Terra em Transe, de Glauber Rocha, O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, e mostra como formam o tecido alegórico de um país submetido à ditadura, ao terror e ao desespero.

Quanto a esse aspecto, é central o texto de Pablo Gonçalo (Quando a Literatura se Faz Imagem: Alegoria e Olhar na Obra de Ismail Xavier). Neste, Gonçalo parte do sentido comum de alegoria (“ocorre quando manifesta-se algo para aludir a outra coisa”) para articulá-lo na maneira usada pelo crítico: “Uma mediação simbólica para uma ideia política, uma situação histórica, o retrato de um país…”). A alegoria (dizer uma coisa pela outra) podia ser um recurso útil em ambiente de censura às artes. Mas era também uma “escolha estilística...um ponto de partida que desdobra os enigmas da época, como a agonia, a exasperação, a modernização conservadora, a infantilização…”. 

Outra sacada de Ismail, já em novo momento histórico, é o uso da noção de “ressentimento”. Presente em artigos como Figuras do Ressentimento no cinema brasileiro dos anos 1990, na longa entrevista concedida à revista Praga e no livro O Olhar e a Cena, o termo é decupado como conceito-chave para compreensão de filmes mais recentes como Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Como Nascem os Anjos, de Murilo Salles, Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral, Ação entre Amigos, de Beto Brant, e Central do Brasil, de Walter Salles, entre outros. Nessas obras, Ismail veria uma amarração narrativa descrita como refluxo à esfera privada de personagens movidos pela desilusão com a política, ou pela indiferença em relação a ela. 

Em seu artigo A contribuição de Ismail para os estudos de cinema brasileiro em língua inglesa, Stephanie Dennison nota que Ismail “chega a ponto de ver o ressentimento como um diagnóstico nacional, um sentimento que decorre da falta de esperança política”.  Estudando as relações entre o cinema de Arnaldo Jabor e a obra de Nelson Rodrigues, “Ismail chega ao solo fértil fornecido pela categoria do ressentimento à obra do dramaturgo e, por herança, do cineasta”, escreve Carlos Augusto Calil no artigo Professor de Cinema. Para Calil, essa seria a “chave de interpretação de uma profunda ferida narcísica no inconsciente coletivo brasileiro”. A intuição do conceito de ressentimento lhe permite dar coerência à massa de produção cinematográfica dos anos 1990 em diante, na reconstrução do cinema nacional depois de desmantelamento da era Collor, processo chamado de Retomada. A interpretação é ousada e não deixa de ser polêmica. O próprio Calil assinala: “Ismail atirou no que viu e acertou no que não viu. O ressentimento se aplica à produção artística brasileira em grande escala e, atualmente, ao campo da clivagem política. Quem não for ressentido que se apresente”. 

Ismail estuda o ressentimento a partir de Nietzsche e de Max Scheler (1874-1928), autor de L’Homme du Ressentiment. Ele é descrito por Scheler como “rancor e desejo de vingança, o ódio, a maldade, o ciúme, a inveja, a malícia”, sendo, segundo Ismail, “o desejo de vingança o mais importante” de todo esse leque de sentimentos negativos. Soa familiar ao Brasil pós-2018?

Com os conceitos de alegoria para o cinema brasileiro dos anos 1960 e de ressentimento para o dos anos 1990 e 2000, Ismail burila ferramentas de interpretação para o conjunto de filmes produzidos, mas, ao mesmo tempo, extrapola o campo estético, indo além da esfera cinematográfica e jogando luz sobre o contexto cultural, histórico e político de maneira ampla. O crítico de cinema, a partir do seu ponto de observação, torna-se pensador do país, de sua conjuntura e suas estruturas profundas. Obtém do cinema seu rendimento máximo como “espelho da nação”, expressão clichê sempre usada, e com razão, para exprimir a necessidade e o direito de cada país ter o seu próprio cinema – e seus intérpretes privilegiados. 

Ismail Xavier – Um Pensador do Cinema Brasileiro (Edições Sesc/Abraccine) consegue o equilíbrio entre a justa homenagem e o formato ensaístico. O volume, organizado pelos críticos Fatimarlei Lunardelli, Humberto Pereira da Silva e Ivonete Pinto, contempla, em artigos de diversos autores, algumas das facetas que fizeram de Ismail Xavier um dos mais importantes pensadores do cinema em nosso País – a relação particular com o cinema brasileiro, suas articulações com a literatura, o lado mais teórico, a função do crítico, a repercussão de sua obra no exterior, sua influência e legado. 

'Terra em Transe', de Glauber Rocha, um dos objetos de estudo de Ismail Xavier Foto: Versátil Home Video

Portanto, o livro é abrangente o bastante e o time convocado para escrever sobre Ismail não poderia ser mais heterogêneo – e competente. Citemos apenas alguns, sem prejuízo dos demais. Há desde colegas na ECA/USP, como Carlos Augusto Calil a amigos e companheiros de estrada, como o ensaísta norte-americano Robert Stam. Estão presentes jovens críticos e leitores de Ismail como Marcelo Miranda, além de discípulos já consagrados em carreiras próprias, como Adilson Mendes, Leandro Rocha Saraiva e Tunico Amâncio. 

Cada um dos ensaios mereceria resenha à parte. Na impossibilidade, por uma questão de espaço, tentemos uma abordagem de conjunto. 

Vale começar pelo texto de Marcelo Miranda, raro por flagrar um período menos conhecido de Ismail – o de jovem crítico de cinema em veículos de maior circulação. É uma novidade. Ou, pelo menos, algo menos conhecido pelos fãs de Ismail, que o veem na condição de acadêmico, responsável por obras incontornáveis da literatura cinematográfica como Sertão Mar e Alegorias do Subdesenvolvimento, mais do que como resenhista de jornais. 

No entanto, para compreender Ismail e seu estilo, pode ser necessário voltar a essa breve fase em que se exercitou na crítica jornalística, em especial no hoje extinto Diário de São Paulo, entre os anos 1968-1969. O período de grande efervescência política e cinematográfica forneceu ao futuro ensaísta a experiência de escrever “a quente” sobre os filmes então lançados no mercado cinematográfico, títulos como Todas as Mulheres do Mundo, Cidadão Kane e Bonnie & Clyde – Uma Rajada de Balas. Essa experiência breve talvez tenha deixado como legado a necessidade da escrita clara, em sintonia com o leitor. E também o respeito pela crítica jornalística, sentimento não muito comum entre seus colegas de Universidade. 

Mas se este breve período de “jornalista” é importante na definição da ferramenta crítica de Ismail, outros fatores se impõem de maneira ainda mais definitiva. O rigor com o qual disseca as obras te a ver com a formação em engenharia na USP. E, mais ainda, com sua experiência como montador, então já como aluno da primeira turma da ECA. 

Além de tudo isso, não se pode esquecer da influência de seus dois mestres – Paulo Emílio Sales Gomes, orientador da sua dissertação de mestrado, e Antonio Candido, da sua tese de doutorado. Ora, temos aí duas vigas mestras da cultura paulistana e brasileira. Paulo Emílio e Antonio Candido foram amigos e colegas na revista Clima e depois reuniram-se na mesma universidade, em torno de alunos, pesquisas, lutas culturais e políticas. São matrizes da formação de Ismail, expressa num método que busca no exame da forma o sedimento histórico nela depositado. Junte-se aí a experiência de Ismail nos Estados Unidos e seu contato com o empirismo norte-americano e teremos aí o perfil do scholar completo e internacional. 

Esse arranjo mental permite ao crítico evitar tanto o conteudismo vulgar quanto o formalismo abstrato, detendo-se na “carne” da obra através de um impecável “close reading”, porém nunca esquecido da necessidade de contextualizá-lo no espaço histórico e social na qual nasce a obra. 

Vários dos articulistas do livro detêm-se na construção dessa apurada ferramenta crítica, que permite fazer falar os filmes sem reduzi-los a esqueletos ou épuras, e sem a tentação de pensá-los num vácuo histórico e político. 

De fato, ao tratarmos de um crítico, e crítico privilegiado, importa sabermos como chegou a construir seu método de trabalho. No artigo A Paixão pelo Detalhe, ou o Método da Análise Fílmica, Fabio Camarneiro enfatiza a atenção de Ismail em “diversos elementos da tessitura fílmica (mise-en-scène, banda sonora, cor, contraste, cenário, atrizes e atores, etc), em busca de um detalhe revelador, uma espécie de ponto nessa tessitura que, para o analista, pode servir como ponto de partida para se observar o conjunto da obra na construção de interpretações mais amplas.” 

Esse aspecto é crucial. Ismail, em conversas, defende a necessidade de o crítico encontrar esse ponto sensível no filme, esse “punctum”, na acepção de Barthes, a partir do qual a interpretação pode partir e se organizar. Daí a inutilidade de toda erudição se o crítico não dispuser dessa fina sensibilidade, essa intuição ou insight a partir do qual a obra se revela e se desvela. 

Mas, para além desses necessários insights criativos, está a necessidade metodológica de desdobrar os aspectos latentes da obra. Nesse sentido, o instrumental afinado do crítico conta com uma visão bastante particular da “alegoria” como ferramenta para compreender em especial a produção nacional. Lembremos o título de uma das obras mais importantes de Ismail, Alegorias do Subdesenvolvimento – Cinema Novo, Tropicalismo, Cinema Marginal. Neste volume seminal, Ismail se debruça sobre filmes como Terra em Transe, de Glauber Rocha, O Bandido da Luz Vermelha, de Rogério Sganzerla, Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr. e Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade, e mostra como formam o tecido alegórico de um país submetido à ditadura, ao terror e ao desespero.

Quanto a esse aspecto, é central o texto de Pablo Gonçalo (Quando a Literatura se Faz Imagem: Alegoria e Olhar na Obra de Ismail Xavier). Neste, Gonçalo parte do sentido comum de alegoria (“ocorre quando manifesta-se algo para aludir a outra coisa”) para articulá-lo na maneira usada pelo crítico: “Uma mediação simbólica para uma ideia política, uma situação histórica, o retrato de um país…”). A alegoria (dizer uma coisa pela outra) podia ser um recurso útil em ambiente de censura às artes. Mas era também uma “escolha estilística...um ponto de partida que desdobra os enigmas da época, como a agonia, a exasperação, a modernização conservadora, a infantilização…”. 

Outra sacada de Ismail, já em novo momento histórico, é o uso da noção de “ressentimento”. Presente em artigos como Figuras do Ressentimento no cinema brasileiro dos anos 1990, na longa entrevista concedida à revista Praga e no livro O Olhar e a Cena, o termo é decupado como conceito-chave para compreensão de filmes mais recentes como Baile Perfumado, de Lírio Ferreira e Paulo Caldas, Como Nascem os Anjos, de Murilo Salles, Um Céu de Estrelas, de Tata Amaral, Ação entre Amigos, de Beto Brant, e Central do Brasil, de Walter Salles, entre outros. Nessas obras, Ismail veria uma amarração narrativa descrita como refluxo à esfera privada de personagens movidos pela desilusão com a política, ou pela indiferença em relação a ela. 

Em seu artigo A contribuição de Ismail para os estudos de cinema brasileiro em língua inglesa, Stephanie Dennison nota que Ismail “chega a ponto de ver o ressentimento como um diagnóstico nacional, um sentimento que decorre da falta de esperança política”.  Estudando as relações entre o cinema de Arnaldo Jabor e a obra de Nelson Rodrigues, “Ismail chega ao solo fértil fornecido pela categoria do ressentimento à obra do dramaturgo e, por herança, do cineasta”, escreve Carlos Augusto Calil no artigo Professor de Cinema. Para Calil, essa seria a “chave de interpretação de uma profunda ferida narcísica no inconsciente coletivo brasileiro”. A intuição do conceito de ressentimento lhe permite dar coerência à massa de produção cinematográfica dos anos 1990 em diante, na reconstrução do cinema nacional depois de desmantelamento da era Collor, processo chamado de Retomada. A interpretação é ousada e não deixa de ser polêmica. O próprio Calil assinala: “Ismail atirou no que viu e acertou no que não viu. O ressentimento se aplica à produção artística brasileira em grande escala e, atualmente, ao campo da clivagem política. Quem não for ressentido que se apresente”. 

Ismail estuda o ressentimento a partir de Nietzsche e de Max Scheler (1874-1928), autor de L’Homme du Ressentiment. Ele é descrito por Scheler como “rancor e desejo de vingança, o ódio, a maldade, o ciúme, a inveja, a malícia”, sendo, segundo Ismail, “o desejo de vingança o mais importante” de todo esse leque de sentimentos negativos. Soa familiar ao Brasil pós-2018?

Com os conceitos de alegoria para o cinema brasileiro dos anos 1960 e de ressentimento para o dos anos 1990 e 2000, Ismail burila ferramentas de interpretação para o conjunto de filmes produzidos, mas, ao mesmo tempo, extrapola o campo estético, indo além da esfera cinematográfica e jogando luz sobre o contexto cultural, histórico e político de maneira ampla. O crítico de cinema, a partir do seu ponto de observação, torna-se pensador do país, de sua conjuntura e suas estruturas profundas. Obtém do cinema seu rendimento máximo como “espelho da nação”, expressão clichê sempre usada, e com razão, para exprimir a necessidade e o direito de cada país ter o seu próprio cinema – e seus intérpretes privilegiados. 

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