Durante o último carnaval, numa roda mais literária que sambista, alguém ponderou: “Já está na hora de uma escola homenagear o Cisne de Avon.” O Cisne de Avon, esclareça-se sobretudo aos sambistas, é um dos epítetos de William Shakespeare.
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Se só por conta de Frankenstein Mary Shelley já pegou carona na Beija-Flor e Cervantes precisou apenas de D. Quixote para virar enredo da Mocidade Independente de Padre Miguel, mais motivos além de Romeu, Julieta e Otelo tem o bardo de Stratford-upon-Avon para ganhar uma chance na passarela do samba. Se devidamente readaptados à corte brasiliense, Hamlet, Ricardo III, Júlio César e Lady Macbeth poderiam bisar na avenida o sucesso do Vampirão da Paraíso de Tuiuti – que, de maneira indireta, homenageou outro inglês, Bram Stoker, o inventor de Drácula.
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Não bastasse, Shakespeare é um sucesso permanente. Há anos que disputados cursos sobre sua obra animam e ilustram as noites de cariocas e paulistas. Também já ouvi falar de saraus embalados pelos seus mais capitosos sonetos. Suas peças, traduzidas e retraduzidas com irregular competência, são encenadas entre nós de forma ortodoxa, heterodoxa ou apenas incompetente.
A partir de um texto de Steven Berkoff, o ator Marcelo Serrado recentemente montou no teatro uma antologia dos vilões do bardo, num espetáculo solo e sólido, sem forçar a mão nos inevitáveis paralelos com os Iagos, os Macbeths, os Claudios e os Coriolanos patrícios, alguns dos quais facilmente identificáveis pela plateia (Eduardo Cunha = Iago, por exemplo), o que fez com que a peça, vez por outra, se transformasse numa involuntária comédia.
Uma das razões da perenidade de Shakespeare é o mistério que cerca sua vida e as especulações que a seu respeito há séculos se acumulam; nenhuma mais ranheta que a atribuição da autoria de suas peças a outros dramaturgos. Ao conde de Oxford, Edward de Vere, por exemplo, velha atoarda que Roland Emmerich transformou no filme Anônimo, em que Shakespeare é reduzido a uma fraude, a uma pessoa que nunca existiu.
Crível, mesmo, é a desconfiança de que Christopher Marlowe lhe teria feito sombra, alguma sombra, caso não tivesse sido assassinado aos 29 anos, em 1593. Shakespeare viveu até os 52, velhice para os padrões elisabetanos, e escreveu 37 peças, além de não sei quantos sonetos e outros poemas.
Toda biografia do bardo é, em grande parte, puro exercício de especulação. Meio século atrás, em Shakespeare Lives, Samuel Schoenbaum retratou a trabalheira de seus biógrafos em face da escassa documentação existente. Para contornar esse obstáculo, Stephen Greenblatt, o mesmo autor de A Virada e de vários estudos sobre Shakespeare, sua maior paixão literária, produziu dois livros (Shakespearean Negotiations e Hamlet in Purgatory), em que imagina as peças do bardo não como as conhecemos, prontas, completas, mas ainda sendo escritas, enriquecendo suas conjecturas com uma análise da cultura e do fundo social do final do século 16 – como convém a um adepto do Novo Historicismo.
Em 2004, Greenblatt publicou um ensaio (Will in the World) sobre a universalização de Shakespeare, que, apesar de bastante elogiado, como os anteriores, tampouco foi traduzido no Brasil. Seria interessante conhecer o que ele achou da recente descoberta da dupla Dennis McCarthy-June Schlueter.
Sabia-se que Shakespeare buscara inspiração, temas, ideias, personagens e situações em Plutarco (Vidas Paralelas), nos ensaios de Montaigne e nas Crônicas de Raphael Holinshed, mas até alguns meses atrás nem de nome George North era conhecido dos experts. Ex-embaixador da corte elisabetana na Suécia, North vivia perto de Cambridge em 1576 quando escreveu uma diatribe contra os rebeldes antimonarquistas, que jamais foi publicada e agora é tida como a fonte mais fecunda das tragédias shakespearianas.
A Brief Discourse of Rebellion and Rebels (Breve Discurso Sobre Rebelião e Rebeldes) atravessou cinco séculos sob a forma de manuscrito. No último dia de janeiro deste ano virou livro. De 256 páginas, lançado pela editora acadêmica D.S. Brewer e a Biblioteca Britânica. Para os scholars em Shakespeare, seu preço (perto de US$ 100) talvez seja uma pechincha.
Dennis McCarthy descobriu-o por acaso, online, no catálogo de um leilão de papéis velhos realizado em 1927. Com a ajuda da professora de literatura June Schlueter, procurou em vão seu paradeiro por toda parte e graças ao faro de um detetive de raridades bibliográficas, logrou encontrá-lo meio perdido na Biblioteca Britânica. Utilizando-se de um programa de computador (Wcopyfind), poderosa arma de professores para detectar colas de seus alunos, peneirou e cruzou milhões de palavras e cocluiu que 11 das principais peças de Shakespeare – entre as quais Rei Lear, Macbeth, Ricardo III e Henrique V – foram inspiradas em anotações de North.
O bardo não plagiou North, esclarece McCarthy, apenas aproveitou-se de motivos e sugestões históricas de seu “brief discourse” sobre rebeldes, como fez com os perfis escritos por Plutarco. O rei Lear de North chama-se Leir, recupera o trono e à sua volta ninguém morre. A tragédia de Ricardo III, na versão North, abre com o mesmo solilóquio sobre “o inverno de nosso descontentamento”, mas seu desdobramento toma outro rumo.
O monstruoso rei corcunda, também célebre por propor a troca de seu reino por um cavalo, em plena batalha de Bosworth Field, não faria má figura como alegoria na avenida.