Às vésperas do bicentenário, Dostoievski é mais atual do que nunca


Encerrando a publicação da obra de Dostoievski no Brasil, 'Escritos da Casa Morta' traz análises geniais sobre a psique humana em situações limítrofes a partir de memórias do autor de seus anos de trabalhos forçados na Sibéria

Por Flávio Ricardo Vassoler

Em 2021, celebraremos o bicentenário de nascimento do escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), cujas agruras financeiras – da pobreza ao vício na jogatina, mote que o levou a conceber a novela Um Jogador (1866) – sempre o levaram a escrever às pressas, premido pelos editores que lhe faziam adiantamentos, à diferença do que acontecia com seus pares literários mais abastados, como Ivan Turgueniev (1818-1883) e Liev Tolstoi (1828-1910), que tinham tempo e folga devidos para esculpir, polir e arrematar o estilo de suas obras. Assim, é importante frisar que a linguagem muitas vezes alquebrada de suas personagens, dados os mergulhos nos estados de consciência em crise, também deixava entrever as tensões e agonias por que o autor passava em sua luta por sobrevivência. Duzentos anos depois do nascimento de Dostoievski, reflitamos, então, sobre a atualidade do autor de clássicos da literatura como Escritos da Casa Morta (1862) – outrora traduzido como Recordações da Casa dos Mortos –, Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869), Os Demônios (1872) e Os Irmãos Karamazov (1880). 

Pintura de Konstantin Pomerantsev retrata Fiodor Dostoievski encarcerado Foto: Museu Apartamento de Fiodor Dostoievski

O século 19 deu à luz ressignificações histórico-filosóficas radicais, tais como a Revolução Industrial, os desdobramentos republicanos da Revolução Francesa, as descobertas evolucionistas/anticriacionistas do cientista inglês Charles Darwin (1809-1882), a imaginação e o ímpeto revolucionários dos socialistas e os questionamentos sobre a existência de Deus.  Imbuído do espírito de sua época, o jovem Rodion Raskolnikov, (anti-)herói do romance Crime e Castigo, chega à conclusão de que, se a modernidade está exilando Deus da história, é preciso matar o Não matarás, mandamento angular do judaico-cristianismo. É assim que, para verificar se fazia parte da seleta camarilha dos seres extraordinários, para quem tudo é permitido, Raskolnikov realiza um experimento niilista: munido de um machado, ele racha o crânio da usurária Aliona Ivanovna, para quem o jovem empenhara as quinquilharias de sua pobreza, e, de quebra, acaba matando a irmã da primeira vítima inocente, Lisavieta, que tivera o azar de aparecer na cena do crime na hora errada. A admoestação dostoievskiana é sintomática: quem viola a fronteira da Lei uma vez poderá – ou, pior, deverá – fazê-lo sempre. Setenta anos depois, um parente niilista de Raskolnikov, o ditador soviético Josef Stalin (1878-1953), chegaria a dizer que uma morte, de fato, é uma tragédia; um milhão de mortes, no entanto, não passariam de material estatístico. O dito totalitário de Stalin é importante para compreendermos que, do duplo homicídio de Raskolnikov até a nossa época, densas camadas de hierarquia, burocracia e alienação se interpuseram entre a concepção e a execução dos crimes, de modo a alijar os mandatários das dimensões morais e jurídicas do castigo. Quando a guerra se torna asséptica e se vê desprovida até mesmo da humanidade do ódio pelo fato de assassinatos serem executados por drones; quando uma pandemia ceifa vidas humanas em proporções holocáusticas e, ainda, assim, eleitores mundo afora ainda reservam altos índices de popularidade a políticas públicas desastrosas, é preciso lançar Dostoievski contra si mesmo – ou, em termos dostoievskianos, é preciso matar o Pai – para dizer que, na contemporaneidade, falamos em Crimes Sem Castigo.  Outro mote dostoievskiano que requer ressignificação é sua famosa máxima atribuída ao intelectual parricida Ivan Karamazov, personagem do romance Os Irmãos Karamazov: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Quem já leu o livro Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (2016), do historiador israelense Yuval Noah Harari, sabe que a biotecnologia já projeta que, em algumas décadas – alguns cientistas falam em 50 anos –, os netos dos atuais bilionários serão imortais.  A reboque de técnicas de reversão de envelhecimento e patologias – nanorrobôs são introduzidos em artérias para remover placas lipídicas, transformando os atuais stents cardíacos em artefatos paleolíticos –, a vida é prolongada vertiginosamente, de modo a que, no futuro, os 969 anos de Matusalém sejam a idade da atual crise dos cinquentões. Yuval Harari especula que, se leis fundamentais não coibirem a sanha niilista de experimentos eugênicos, será possível produzir ciborgues biotecnológicos – eis os protótipos do Homo Deus –, cujos cérebros já não serão apenas materiais, uma vez que a imaterialidade ubíqua dos dados e algoritmos da rede mundial de computadores estarão à disposição para recorrentes uploads cerebrais. (Dostoievski bem poderia dizer que o gênero literário mais realista da contemporaneidade é a ficção científica.) Se saísse de seu subsolo petersburguês e caminhasse entre nós, o homem do subsolo (Memórias do Subsolo) talvez dissesse, com sua mordacidade, que o poder de Deus não passa de uma sombra em face da imortalidade e da onisciência do Homo Deus. Ademais, será que o Homo Deus tratará os homo sapiens com a mesma brutalidade com que nós tratamos os animais? E ainda: hoje, as religiões monoteístas olham para as tradições politeístas, dominantes entre os povos da Antiguidade, como fósseis históricos, como insetos imemoriais coagulados em âmbar. Ora, se Ivan Karamazov refletisse sobre o devir, talvez o intelectual dostoievskiano assim sentenciasse: chegará o dia em que, do cume de sua onisciência imortal, o Homo Deus olhará para o monoteísmo com a mesma condescendência com que as religiões abraâmicas se lembram do politeísmo pagão. Afinal – arremataria Ivan –, se o ser humano é imortal, Deus é permitido?  É nesse sentido que a obra Escritos da Casa Morta (tradução de Paulo Bezerra), recém-publicada pela Editora 34, traz uma alegoria existencial fundamental para pensarmos sobre a condição humana em meio à modernidade que corta o cordão umbilical que nos ligava à divindade. Memórias dos anos de trabalhos forçados na Sibéria a que Dostoievski fora condenado por ter feito parte, em fins da década de 1840, do Círculo de Pietrachevski, um grupo revolucionário que propugnava pela abolição da servidão e pela derrubada do czarismo para o estabelecimento de uma república socialista na Rússia, Escritos da Casa Morta é uma obra que traz análises geniais sobre a psique humana em situações limítrofes e afia a lâmina dostoievskiana para a construção das grandes personagens de suas obras vindouras: o psiquismo de celerados da prisão siberiana, entre os quais assassinos contumazes até mesmo de crianças, contribuiu sobremaneira para a construção dos niilistas Raskolnikov e Svidrigailov (Crime e Castigo), Rogojin (O Idiota), Kirillov e Nikolai Stavroguin (Os Demônios), Ivan Karamazov e seu irmão bastardo Smierdiakov (Os Irmãos Karamazov).  Em dado momento de Escritos da Casa Morta, o narrador relata um “trabalho” a que os condenados eram submetidos: no pátio da prisão, os guardas mandavam-nos encher carrinhos de mão com areia. Em seguida, os prisioneiros eram obrigados a se dirigir até o extremo oposto do pátio para descarregar. Realizada a tarefa, os guardas mandavam-nos encher os carrinhos de mão com a areia recém-descarregada para que eles retornassem ao ponto de onde haviam partido – e assim sucessivamente por horas e horas a fio. Conta-nos o narrador que o resultado de tal ampulheta humana era a destruição completa do psiquismo e o tormento infindo para todos aqueles submetidos a tal suplício, os quais preferiam ser açoitados a serem novamente vítimas de tais requintes de sadismo.  A ampulheta humana poderia ser tida, ao fim e ao cabo, como uma metáfora para a vida radicalmente desprovida de sentido em face da morte. Se, especula a sanha espiritual de Dostoievski, a morte for o fim derradeiro da vida, se não houver a eternidade da alma e a possibilidade de reencontro com os entes amados que já se foram, o Acaso, esse deus cego e cruel, transforma todas e quaisquer vivências significativas na areia tautológica da ampulheta humana. Tudo, mesmo os momentos que nos são mais essenciais, perde o sentido em face da única eternidade possível sem Deus: o esquecimento. Ao fim, podemos especular que as personagens mais niilistas de Dostoievski – homo sapiens como nós – bolariam um plano sumamente sádico para se vingar do Homo Deus imortal: que os ciborgues biotecnológicos fossem coagidos à ampulheta humana por toda a eternidade.  *FLÁVIO RICARDO VASSOLER É ESCRITOR, PROFESSOR, YOUTUBER DOUTOR EM LETRAS PELA USP E PÓS-DOUTOR EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY (EUA). É AUTOR DE ‘DOSTOIÉVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (HEDRA)

Em 2021, celebraremos o bicentenário de nascimento do escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), cujas agruras financeiras – da pobreza ao vício na jogatina, mote que o levou a conceber a novela Um Jogador (1866) – sempre o levaram a escrever às pressas, premido pelos editores que lhe faziam adiantamentos, à diferença do que acontecia com seus pares literários mais abastados, como Ivan Turgueniev (1818-1883) e Liev Tolstoi (1828-1910), que tinham tempo e folga devidos para esculpir, polir e arrematar o estilo de suas obras. Assim, é importante frisar que a linguagem muitas vezes alquebrada de suas personagens, dados os mergulhos nos estados de consciência em crise, também deixava entrever as tensões e agonias por que o autor passava em sua luta por sobrevivência. Duzentos anos depois do nascimento de Dostoievski, reflitamos, então, sobre a atualidade do autor de clássicos da literatura como Escritos da Casa Morta (1862) – outrora traduzido como Recordações da Casa dos Mortos –, Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869), Os Demônios (1872) e Os Irmãos Karamazov (1880). 

Pintura de Konstantin Pomerantsev retrata Fiodor Dostoievski encarcerado Foto: Museu Apartamento de Fiodor Dostoievski

O século 19 deu à luz ressignificações histórico-filosóficas radicais, tais como a Revolução Industrial, os desdobramentos republicanos da Revolução Francesa, as descobertas evolucionistas/anticriacionistas do cientista inglês Charles Darwin (1809-1882), a imaginação e o ímpeto revolucionários dos socialistas e os questionamentos sobre a existência de Deus.  Imbuído do espírito de sua época, o jovem Rodion Raskolnikov, (anti-)herói do romance Crime e Castigo, chega à conclusão de que, se a modernidade está exilando Deus da história, é preciso matar o Não matarás, mandamento angular do judaico-cristianismo. É assim que, para verificar se fazia parte da seleta camarilha dos seres extraordinários, para quem tudo é permitido, Raskolnikov realiza um experimento niilista: munido de um machado, ele racha o crânio da usurária Aliona Ivanovna, para quem o jovem empenhara as quinquilharias de sua pobreza, e, de quebra, acaba matando a irmã da primeira vítima inocente, Lisavieta, que tivera o azar de aparecer na cena do crime na hora errada. A admoestação dostoievskiana é sintomática: quem viola a fronteira da Lei uma vez poderá – ou, pior, deverá – fazê-lo sempre. Setenta anos depois, um parente niilista de Raskolnikov, o ditador soviético Josef Stalin (1878-1953), chegaria a dizer que uma morte, de fato, é uma tragédia; um milhão de mortes, no entanto, não passariam de material estatístico. O dito totalitário de Stalin é importante para compreendermos que, do duplo homicídio de Raskolnikov até a nossa época, densas camadas de hierarquia, burocracia e alienação se interpuseram entre a concepção e a execução dos crimes, de modo a alijar os mandatários das dimensões morais e jurídicas do castigo. Quando a guerra se torna asséptica e se vê desprovida até mesmo da humanidade do ódio pelo fato de assassinatos serem executados por drones; quando uma pandemia ceifa vidas humanas em proporções holocáusticas e, ainda, assim, eleitores mundo afora ainda reservam altos índices de popularidade a políticas públicas desastrosas, é preciso lançar Dostoievski contra si mesmo – ou, em termos dostoievskianos, é preciso matar o Pai – para dizer que, na contemporaneidade, falamos em Crimes Sem Castigo.  Outro mote dostoievskiano que requer ressignificação é sua famosa máxima atribuída ao intelectual parricida Ivan Karamazov, personagem do romance Os Irmãos Karamazov: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Quem já leu o livro Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (2016), do historiador israelense Yuval Noah Harari, sabe que a biotecnologia já projeta que, em algumas décadas – alguns cientistas falam em 50 anos –, os netos dos atuais bilionários serão imortais.  A reboque de técnicas de reversão de envelhecimento e patologias – nanorrobôs são introduzidos em artérias para remover placas lipídicas, transformando os atuais stents cardíacos em artefatos paleolíticos –, a vida é prolongada vertiginosamente, de modo a que, no futuro, os 969 anos de Matusalém sejam a idade da atual crise dos cinquentões. Yuval Harari especula que, se leis fundamentais não coibirem a sanha niilista de experimentos eugênicos, será possível produzir ciborgues biotecnológicos – eis os protótipos do Homo Deus –, cujos cérebros já não serão apenas materiais, uma vez que a imaterialidade ubíqua dos dados e algoritmos da rede mundial de computadores estarão à disposição para recorrentes uploads cerebrais. (Dostoievski bem poderia dizer que o gênero literário mais realista da contemporaneidade é a ficção científica.) Se saísse de seu subsolo petersburguês e caminhasse entre nós, o homem do subsolo (Memórias do Subsolo) talvez dissesse, com sua mordacidade, que o poder de Deus não passa de uma sombra em face da imortalidade e da onisciência do Homo Deus. Ademais, será que o Homo Deus tratará os homo sapiens com a mesma brutalidade com que nós tratamos os animais? E ainda: hoje, as religiões monoteístas olham para as tradições politeístas, dominantes entre os povos da Antiguidade, como fósseis históricos, como insetos imemoriais coagulados em âmbar. Ora, se Ivan Karamazov refletisse sobre o devir, talvez o intelectual dostoievskiano assim sentenciasse: chegará o dia em que, do cume de sua onisciência imortal, o Homo Deus olhará para o monoteísmo com a mesma condescendência com que as religiões abraâmicas se lembram do politeísmo pagão. Afinal – arremataria Ivan –, se o ser humano é imortal, Deus é permitido?  É nesse sentido que a obra Escritos da Casa Morta (tradução de Paulo Bezerra), recém-publicada pela Editora 34, traz uma alegoria existencial fundamental para pensarmos sobre a condição humana em meio à modernidade que corta o cordão umbilical que nos ligava à divindade. Memórias dos anos de trabalhos forçados na Sibéria a que Dostoievski fora condenado por ter feito parte, em fins da década de 1840, do Círculo de Pietrachevski, um grupo revolucionário que propugnava pela abolição da servidão e pela derrubada do czarismo para o estabelecimento de uma república socialista na Rússia, Escritos da Casa Morta é uma obra que traz análises geniais sobre a psique humana em situações limítrofes e afia a lâmina dostoievskiana para a construção das grandes personagens de suas obras vindouras: o psiquismo de celerados da prisão siberiana, entre os quais assassinos contumazes até mesmo de crianças, contribuiu sobremaneira para a construção dos niilistas Raskolnikov e Svidrigailov (Crime e Castigo), Rogojin (O Idiota), Kirillov e Nikolai Stavroguin (Os Demônios), Ivan Karamazov e seu irmão bastardo Smierdiakov (Os Irmãos Karamazov).  Em dado momento de Escritos da Casa Morta, o narrador relata um “trabalho” a que os condenados eram submetidos: no pátio da prisão, os guardas mandavam-nos encher carrinhos de mão com areia. Em seguida, os prisioneiros eram obrigados a se dirigir até o extremo oposto do pátio para descarregar. Realizada a tarefa, os guardas mandavam-nos encher os carrinhos de mão com a areia recém-descarregada para que eles retornassem ao ponto de onde haviam partido – e assim sucessivamente por horas e horas a fio. Conta-nos o narrador que o resultado de tal ampulheta humana era a destruição completa do psiquismo e o tormento infindo para todos aqueles submetidos a tal suplício, os quais preferiam ser açoitados a serem novamente vítimas de tais requintes de sadismo.  A ampulheta humana poderia ser tida, ao fim e ao cabo, como uma metáfora para a vida radicalmente desprovida de sentido em face da morte. Se, especula a sanha espiritual de Dostoievski, a morte for o fim derradeiro da vida, se não houver a eternidade da alma e a possibilidade de reencontro com os entes amados que já se foram, o Acaso, esse deus cego e cruel, transforma todas e quaisquer vivências significativas na areia tautológica da ampulheta humana. Tudo, mesmo os momentos que nos são mais essenciais, perde o sentido em face da única eternidade possível sem Deus: o esquecimento. Ao fim, podemos especular que as personagens mais niilistas de Dostoievski – homo sapiens como nós – bolariam um plano sumamente sádico para se vingar do Homo Deus imortal: que os ciborgues biotecnológicos fossem coagidos à ampulheta humana por toda a eternidade.  *FLÁVIO RICARDO VASSOLER É ESCRITOR, PROFESSOR, YOUTUBER DOUTOR EM LETRAS PELA USP E PÓS-DOUTOR EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY (EUA). É AUTOR DE ‘DOSTOIÉVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (HEDRA)

Em 2021, celebraremos o bicentenário de nascimento do escritor russo Fiodor Dostoievski (1821-1881), cujas agruras financeiras – da pobreza ao vício na jogatina, mote que o levou a conceber a novela Um Jogador (1866) – sempre o levaram a escrever às pressas, premido pelos editores que lhe faziam adiantamentos, à diferença do que acontecia com seus pares literários mais abastados, como Ivan Turgueniev (1818-1883) e Liev Tolstoi (1828-1910), que tinham tempo e folga devidos para esculpir, polir e arrematar o estilo de suas obras. Assim, é importante frisar que a linguagem muitas vezes alquebrada de suas personagens, dados os mergulhos nos estados de consciência em crise, também deixava entrever as tensões e agonias por que o autor passava em sua luta por sobrevivência. Duzentos anos depois do nascimento de Dostoievski, reflitamos, então, sobre a atualidade do autor de clássicos da literatura como Escritos da Casa Morta (1862) – outrora traduzido como Recordações da Casa dos Mortos –, Memórias do Subsolo (1864), Crime e Castigo (1866), O Idiota (1869), Os Demônios (1872) e Os Irmãos Karamazov (1880). 

Pintura de Konstantin Pomerantsev retrata Fiodor Dostoievski encarcerado Foto: Museu Apartamento de Fiodor Dostoievski

O século 19 deu à luz ressignificações histórico-filosóficas radicais, tais como a Revolução Industrial, os desdobramentos republicanos da Revolução Francesa, as descobertas evolucionistas/anticriacionistas do cientista inglês Charles Darwin (1809-1882), a imaginação e o ímpeto revolucionários dos socialistas e os questionamentos sobre a existência de Deus.  Imbuído do espírito de sua época, o jovem Rodion Raskolnikov, (anti-)herói do romance Crime e Castigo, chega à conclusão de que, se a modernidade está exilando Deus da história, é preciso matar o Não matarás, mandamento angular do judaico-cristianismo. É assim que, para verificar se fazia parte da seleta camarilha dos seres extraordinários, para quem tudo é permitido, Raskolnikov realiza um experimento niilista: munido de um machado, ele racha o crânio da usurária Aliona Ivanovna, para quem o jovem empenhara as quinquilharias de sua pobreza, e, de quebra, acaba matando a irmã da primeira vítima inocente, Lisavieta, que tivera o azar de aparecer na cena do crime na hora errada. A admoestação dostoievskiana é sintomática: quem viola a fronteira da Lei uma vez poderá – ou, pior, deverá – fazê-lo sempre. Setenta anos depois, um parente niilista de Raskolnikov, o ditador soviético Josef Stalin (1878-1953), chegaria a dizer que uma morte, de fato, é uma tragédia; um milhão de mortes, no entanto, não passariam de material estatístico. O dito totalitário de Stalin é importante para compreendermos que, do duplo homicídio de Raskolnikov até a nossa época, densas camadas de hierarquia, burocracia e alienação se interpuseram entre a concepção e a execução dos crimes, de modo a alijar os mandatários das dimensões morais e jurídicas do castigo. Quando a guerra se torna asséptica e se vê desprovida até mesmo da humanidade do ódio pelo fato de assassinatos serem executados por drones; quando uma pandemia ceifa vidas humanas em proporções holocáusticas e, ainda, assim, eleitores mundo afora ainda reservam altos índices de popularidade a políticas públicas desastrosas, é preciso lançar Dostoievski contra si mesmo – ou, em termos dostoievskianos, é preciso matar o Pai – para dizer que, na contemporaneidade, falamos em Crimes Sem Castigo.  Outro mote dostoievskiano que requer ressignificação é sua famosa máxima atribuída ao intelectual parricida Ivan Karamazov, personagem do romance Os Irmãos Karamazov: “Se Deus não existe, tudo é permitido”. Quem já leu o livro Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã (2016), do historiador israelense Yuval Noah Harari, sabe que a biotecnologia já projeta que, em algumas décadas – alguns cientistas falam em 50 anos –, os netos dos atuais bilionários serão imortais.  A reboque de técnicas de reversão de envelhecimento e patologias – nanorrobôs são introduzidos em artérias para remover placas lipídicas, transformando os atuais stents cardíacos em artefatos paleolíticos –, a vida é prolongada vertiginosamente, de modo a que, no futuro, os 969 anos de Matusalém sejam a idade da atual crise dos cinquentões. Yuval Harari especula que, se leis fundamentais não coibirem a sanha niilista de experimentos eugênicos, será possível produzir ciborgues biotecnológicos – eis os protótipos do Homo Deus –, cujos cérebros já não serão apenas materiais, uma vez que a imaterialidade ubíqua dos dados e algoritmos da rede mundial de computadores estarão à disposição para recorrentes uploads cerebrais. (Dostoievski bem poderia dizer que o gênero literário mais realista da contemporaneidade é a ficção científica.) Se saísse de seu subsolo petersburguês e caminhasse entre nós, o homem do subsolo (Memórias do Subsolo) talvez dissesse, com sua mordacidade, que o poder de Deus não passa de uma sombra em face da imortalidade e da onisciência do Homo Deus. Ademais, será que o Homo Deus tratará os homo sapiens com a mesma brutalidade com que nós tratamos os animais? E ainda: hoje, as religiões monoteístas olham para as tradições politeístas, dominantes entre os povos da Antiguidade, como fósseis históricos, como insetos imemoriais coagulados em âmbar. Ora, se Ivan Karamazov refletisse sobre o devir, talvez o intelectual dostoievskiano assim sentenciasse: chegará o dia em que, do cume de sua onisciência imortal, o Homo Deus olhará para o monoteísmo com a mesma condescendência com que as religiões abraâmicas se lembram do politeísmo pagão. Afinal – arremataria Ivan –, se o ser humano é imortal, Deus é permitido?  É nesse sentido que a obra Escritos da Casa Morta (tradução de Paulo Bezerra), recém-publicada pela Editora 34, traz uma alegoria existencial fundamental para pensarmos sobre a condição humana em meio à modernidade que corta o cordão umbilical que nos ligava à divindade. Memórias dos anos de trabalhos forçados na Sibéria a que Dostoievski fora condenado por ter feito parte, em fins da década de 1840, do Círculo de Pietrachevski, um grupo revolucionário que propugnava pela abolição da servidão e pela derrubada do czarismo para o estabelecimento de uma república socialista na Rússia, Escritos da Casa Morta é uma obra que traz análises geniais sobre a psique humana em situações limítrofes e afia a lâmina dostoievskiana para a construção das grandes personagens de suas obras vindouras: o psiquismo de celerados da prisão siberiana, entre os quais assassinos contumazes até mesmo de crianças, contribuiu sobremaneira para a construção dos niilistas Raskolnikov e Svidrigailov (Crime e Castigo), Rogojin (O Idiota), Kirillov e Nikolai Stavroguin (Os Demônios), Ivan Karamazov e seu irmão bastardo Smierdiakov (Os Irmãos Karamazov).  Em dado momento de Escritos da Casa Morta, o narrador relata um “trabalho” a que os condenados eram submetidos: no pátio da prisão, os guardas mandavam-nos encher carrinhos de mão com areia. Em seguida, os prisioneiros eram obrigados a se dirigir até o extremo oposto do pátio para descarregar. Realizada a tarefa, os guardas mandavam-nos encher os carrinhos de mão com a areia recém-descarregada para que eles retornassem ao ponto de onde haviam partido – e assim sucessivamente por horas e horas a fio. Conta-nos o narrador que o resultado de tal ampulheta humana era a destruição completa do psiquismo e o tormento infindo para todos aqueles submetidos a tal suplício, os quais preferiam ser açoitados a serem novamente vítimas de tais requintes de sadismo.  A ampulheta humana poderia ser tida, ao fim e ao cabo, como uma metáfora para a vida radicalmente desprovida de sentido em face da morte. Se, especula a sanha espiritual de Dostoievski, a morte for o fim derradeiro da vida, se não houver a eternidade da alma e a possibilidade de reencontro com os entes amados que já se foram, o Acaso, esse deus cego e cruel, transforma todas e quaisquer vivências significativas na areia tautológica da ampulheta humana. Tudo, mesmo os momentos que nos são mais essenciais, perde o sentido em face da única eternidade possível sem Deus: o esquecimento. Ao fim, podemos especular que as personagens mais niilistas de Dostoievski – homo sapiens como nós – bolariam um plano sumamente sádico para se vingar do Homo Deus imortal: que os ciborgues biotecnológicos fossem coagidos à ampulheta humana por toda a eternidade.  *FLÁVIO RICARDO VASSOLER É ESCRITOR, PROFESSOR, YOUTUBER DOUTOR EM LETRAS PELA USP E PÓS-DOUTOR EM LITERATURA RUSSA PELA NORTHWESTERN UNIVERSITY (EUA). É AUTOR DE ‘DOSTOIÉVSKI E A DIALÉTICA: FETICHISMO DA FORMA, UTOPIA COMO CONTEÚDO’ (HEDRA)

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