Ao final da 2ª. Guerra Mundial, enquanto a Europa ainda enxergava por olhos marejados a destruição sem precedentes e os Estados Unidos se apressavam em blindar seus espólios político e econômico contra o polo comunista da União Soviética, o Brasil parecia despertar para uma real modernidade e não aquela buscada a qualquer preço ou parcamente emulada pelas gerações dos anos 1920. São Paulo, finalmente tornada força motriz das novidades mais avançadas que chegavam ao país, viu nascer o que havia de mais promissor na cultura.
O MAM e o Masp intentavam estabelecer um cenário comercialmente viável para as artes visuais no país; O TBC e a Cia. Cinematográfica Vera Cruz eram frutos de um mecenato agressivo, que pretendia legitimar a produção nacional de alto nível nos palcos e nas telas; na música, chegavam ao Brasil os experimentos atonais de Schoenberg, Webern e Boulez; o alinhamento brasileiro aos estadunidenses na Guerra deixara o país com um saldo credor que lhe fazia a economia fluir de vento em popa. Mas, a literatura nacional vivia um estranho paradoxo, para não dizer uma tensão que iria cindir vertentes criativas e dar origem a uma estética original, se bem que ruidosa. Nesse universo de rápidas mudanças, em fins dos anos 1940, encontrava-se o jovem paulistano Augusto de Campos, então com 17 anos, prestes a ingressar na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, onde seu irmão, Haroldo, já cursava o primeiro ano e um amigo em comum aos dois, Décio Pignatari, acabara de iniciar o terceiro período. Os três compartilhavam o gosto pela criação poética e frequentavam o Clube de Poesia, uma organização capitaneada pela Geração de 45 na figura de um de seus líderes, Péricles Eugênio da Silva Ramos, que remava contrarrupturas e queria recuperar a forma parnasiana. No entanto, deste terceiro momento modernista sobressaia a poesia construtivista e rigorosa de João Cabral de Melo Neto e, ainda que com menos força que antes, os deboches e trocadilhos de Oswald de Andrade. Augusto de Campos publicou seu primeiro livro em 1951, O Rei menos o Reino. Diferente de seu irmão e de Décio, o pequeno volume foi custeado pelo próprio autor e não pelo Clube de Poesia, do qual já não faziam mais parte àquela altura. O poema homônimo ao título do livro é de uma rara e estranha constituição estética e prosódica impregnada de influências do Simbolismo e, principalmente, do Surrealismo: “Onde a Angústia roendo um não de pedra/ Digere sem saber o braço esquerdo/ Me situo lavrando este deserto/ De areia areia arena céu e areia”, narram os primeiros versos proferidos por um rei que não tem reino. A incursão na poesia de formas canônicas não duraria. Augusto, Haroldo e Décio, afoitos que eram pelo ineditismo de alguns autores já consagrados no cenário anglo-saxão, a saber, e.e. cummings, Ezra Pound, T.S. Eliot, James Joyce e, o pai de todos, Mallarmé, os faziam garimpar livrarias especializadas em obras originais as quais nem a elite intelectual brasileira conhecia muito bem. “Focamos no Finnegans Wake, quando a maioria ainda estava assimilando Ulysses, de James Joyce”, diria Augusto anos mais tarde, completando, “e, somente uns quinze anos depois de nossa tradução é que a própria crítica francesa foi dar atenção a Un coup de dés”. Mas, a prata da casa também estava no radar de Augusto. Graças a ele, hoje conhecemos figuras menos populares, porém mais potentes, de nossa poesia, caso do romântico Joaquim de Sousândrade, cujo estudo feito a quatro mãos com Haroldo nos revelou “O guesa errante”; e Pedro Kilkerry, simbolista maldito, que amargou o ostracismo por décadas até que Augusto publicasse ReVisão de Kilkerry, em 1970. A partir de 1952, no vácuo de Waldemar Cordeiro, Max Bill, Luiz Sacilotto e outros, Augusto, seu irmão Haroldo e o amigo Décio, despertaram para a Arte Concreta e formaram o grupo Noigandres, divorciaram-se da poesia convencional e decretaram o fim do ciclo do verso, deixando que o verbo se fragmentasse em fonemas gestálticos, para que o branco da página se integrasse ao organismo vivo do poema. Uma experiência “verbivocovisual”. Era a Poesia Concreta e, segundo seu plano-piloto, “ por tomar conhecimento do espaço gráfico como agente estrutura. espaço qualificado: estrutura espácio-temporal, em vez de desenvolvimento meramente temporístico-linear”. Augusto inaugurou a prática da proposta concreta em Poetamenos, de 1953, série de cartões que obedecem um esquema de partituras para “melodias de timbres” inspiradas por Webern, conforme o autor explica na introdução da obra. De fato, a fragmentação lexical subdividida por cores e posições cuidadosamente calculadas na disposição da página permitem não uma, mas várias leituras e incitam o leitor à interação compulsória com a obra, sem a qual não poderá fruir inteiramente a inerência que há entre arte e espectador. Em seguida vieram trabalhos igualmente desafiadores, como Bestiário (1955), ovo novelo (1916-1960), os icônicos Cidade City Cité (1963) e LUXO LIXO (1965). Àquela altura, a Poesia Concreta já havia tomado de assalto tanto a cena erudita quando a comunicação de massa, cumprindo a expectativa do grupo Noigrandres de examinar o fenômeno comunicacional a partir de seu alicerce. Como havia de ser, o movimento paulistano logo despertou embates e os poetas cariocas, antes afinados como os paulistas, romperam laços e fundaram a poesia neoconcreta, partindo da velha acusação de que, em São Paulo, a arte era alienada e não olhava para problemas de cunho coletivo, não era engajada. Discurso muito semelhante aos dos cinemanovistas quando se referiam a Khouri, Sganzerla e Person. A velha rinha de bairristas, sem fundamento, pois quem irá negar que em “Psiu” ou “Olho por olho”, da série Popcretos (1964-1966) Augusto de Campos afronta abertamente o silenciamento e a constante paranoia dos anos de chumbo? Mas, não é tudo. Testemunha ocular da retumbante reprovação por parte da plateia à apresentação de Caetano Veloso e seu “É proibido proibir” no palco do Tuca, em 1968, Augusto de Campos escreveu um longo poema para o amigo e o foi enxugando, polindo, sintetizando, até chegar ao memorável VIVA VAIA, sedimentando Jean Cocteau: “Aquilo que o público vaia, cultive-o, é você”. Atento à evolução tecnológica, ao longo dos anos, Augusto descobriu as possibilidades eletrônicas e virtuais, passou a produzir animações de seus antigos poemas, bem como novas criações pensadas para as plataformas do futuro. Foi precursor na internet antes que outros autores construíssem seus portfolios online e novos poetas se apropriassem dos blogs para se divulgarem. Em 2003, seu livro NÃO trazia um CD-ROM em que o leitor podia se colocar no lugar do criador e interagir com as formas, os sons e a polissemia dos poemas impressos no volume. Sua última coletânea de poemas visuais, OUTRO, data de 2015, e evidencia a fidelidade do poeta às origens do concretismo. Ao completar 90 anos, em 2021, sempre um “operário da poesia”, como se define, Augusto ainda se dedica à tradução criativa e aos ensaios estéticos. Sua obra influenciou poetas e artistas de todas as gerações pelas quais passou, como Caetano Veloso, Tom Zé, Hélio Oiticica, Paulo Leminski, Marcelo Tápia, Arnaldo Antunes, Ademir Assunção, Frederico Barbosa, Arrigo Barnabé, Waly Salomão etc, além de vetorar praticamente todos os que, hoje, aspiram ao mesmo rigor de seu trabalho com a imagem e o verbo. Nícollas Ranieri, 30, pesquisador da Unicamp dedicado à Poesia Concreta e, há quinze anos amigo pessoal de Augusto, explica a importância da longevidade ativa do poeta: “O Augusto significa ‘juventude’. A poesia dele indica um tempo que não é nem mesmo o nosso, mas o da Astronomia, de um futuro inimaginável, para além de nós mesmos. É como quem sabe que, ao mesmo tempo, ‘tudo está dito’ e ‘tudo é infinito’”. Em junho do ano passado, no auge da pandemia, Augusto de Campos participou de uma live tocando gaita, acompanhado remotamente do músico Cid Campos, seu filho, na voz e violão. Interpretaram Visitante do Céu, versão do próprio Augusto para Up from the Skies, de Jimi Hendrix.*DONNY CORREIA É DOUTOR EM ESTÉTICA E HISTÓRIA DA ARTE PELA USP, POETA E ENSAÍSTA.