Em uma dessas reviravoltas que só o destino pode criar, Bret Easton Ellis deixou de ser o enfant terrible da literatura americana contemporânea para ser a ovelha negra da discussão sobre a política de identidade que contagia o debate cultural nos EUA (e que também pode ser aplicada no Brasil).
Poucos se lembram, mas, no final da década de 1980, um Ellis de apenas 21 anos estreou com o romance Menos que Zero (1985); seis anos depois, chocava o mundo literário com seu Psicopata Americano (1991), livro perturbador que desagradou a todos, porém depois foi considerado como uma “assustadora previsão da era de Donald Trump”. Apesar de ser um típico membro da elite privilegiada do entretenimento, ainda assim seguiu uma carreira um tanto apagada entre seus pares, que preferiram os tomos herméticos de David Foster Wallace, na crença de que era o autor de Graça Infinita (1996) quem representava melhor a angústia individual em uma cultura fragmentada; na verdade, não perceberam que era Ellis o verdadeiro moralista a retratar “o modo como vivemos” – um Anthony Trollope regado a cocaína, orgias homossexuais, conversas vazias com celebridades e defensor de uma literatura que não hesitava confrontar a psique sombria do ser humano.
Isso fica ainda mais evidente em seu primeiro livro de não-ficção, intitulado White (Picador, R$ 85, 261 págs.), um dos melhores lançamentos de 2019. Trata-se de um longo ensaio de crítica cultural que, aparentemente, seria sobre esses novos tempos em que a eleição de Donald Trump em 2016 fustigou o debate em torno da segregação racial; dos homossexuais que não conquistaram o seu espaço na mídia; das mulheres que desejam igualdade acima de tudo e de todos; e de um país que, para a maioria da grande mídia, se encontra dividido entre os “deploráveis” que votaram no magnata nova-iorquino e os “iluminados” que vivem na certeza de que serão vítimas do próximo apocalipse político. Mas não se trata nada disso, para a felicidade do leitor equilibrado. O que Ellis escreveu de fato é uma intensa meditação sobre a gradual ausência de liberdade na cultura americana.
O criador do psicopata Patrick Bateman tinha tudo para imitar todos os trejeitos de seu personagem mais célebre (imortalizado no cinema). Afinal, Ellis gosta de cocaína, celebridades, farras sexuais e de beber drinques sofisticados em lugares caríssimos. Mas a diferença entre a criatura e o criador é que este reconhece, dentro de si, a revolta do subsolo a ser evitada somente pelo poder da arte. A mesma coisa acontece em White: em um mundo dominado pela ideologia que substituiu a estética, seria natural imaginar que Ellis se tornaria mais um resmungão a respeito da vitória de Trump. Contudo, temos aqui uma surpresa. Com uma coragem exemplar, ele mostra toda a hipocrisia da classe artística da qual faz parte – e mais: denuncia a imaturidade intrínseca a este tipo de comportamento.
Com este livro, Ellis fez na literatura contemporânea a mesma revolução cognitiva que o cantor e compositor Kanye West também praticou recentemente no meio musical ao lançar o álbum gospel Jesus is King. Ambos os artistas tiveram de descer ao inferno pessoal de cada um – tanto West como Ellis testemunharam publicamente que viveram um “colapso nervoso” nos últimos anos – para concluírem que o maior problema da América não foi a escolha do seu presidente, e sim o fato de que atores, roteiristas, músicos, atrizes, diretores, modelos e dramaturgos resolveram abandonar qualquer dose de autenticidade em seus trabalhos e decidiram viver de acordo com as regras não tácitas (e mentirosas) de uma grande corporação que sufoca o mundo da cultura. Eles não são mais as “antenas da raça”, como diriam Ezra Pound e Marshall McLuhan; são, a partir de agora, máscaras ambulantes, pessoas destituídas de individualidade e que precisam ser inautênticas consigo mesmas para sobreviver em um meio cuja única lei é a do politicamente correto.
Para Ellis, entretanto, a conversão ao real não é religiosa, como aconteceu com Kanye West. Ela ainda está limitada ao âmbito do estético e da cultura. Porém, como grande romancista (o que ele é de fato, apesar das críticas ferozes, mas nunca indiferentes, dos seus opositores), o autor de Glamorama (1998) conclui que o liberalismo político se transformou em uma nova espécie de totalitarismo cultural. A perda disso para a liberdade humana é impossível de ser mensurada por métodos técnicos ou pós-modernos, uma vez que, segundo Ellis, “um dos problemas mais gritantes em nossa sociedade é a inabilidade das pessoas de suportarem simultaneamente, em suas mentes, dois pensamentos opostos; isto significa para elas que qualquer espécie de crítica da obra de alguém célebre deve ser vista com um sentimento de elitismo, de ciúmes ou de superioridade”. Em outras palavras: a verdadeira denúncia de Ellis é que, na nossa cultura repleta de MeToo, Black Lives Matter, políticas de identidades, cotas raciais, comunismo, lulopetismo, bolsolavismo e outros reducionismos afins, perdemos por completo a nossa capacidade de aceitarmos não só o contraditório, mas sobretudo o paradoxo – a base de qualquer discussão cultural sadia.
Por mais perturbador que isso pareça ser, Bret Easton Ellis demonstra, com White, que tanto a esquerda como a direita, tanto o progressismo e o conservadorismo estão manietados para criar uma verdadeira educação de sensibilidades que ajude o ser humano a suportar a terrível indiferença deste mundo. Essas ideologias convergem na grande corporação que deseja uniformizar, a todo custo, a dignidade do pensamento, forçando-a a cair em um silêncio mortal. Neste elogio ao contraditório que, ironicamente, também pode ser lido como uma elegia a um modo de vida prestes a desaparecer, a força da literatura criada por Ellis reside na esperança de que a arte que alimenta os nossos corações é a mesma que vencerá a vingança ideológica.*MARTIM VASQUES DA CUNHA É AUTOR DO LIVRO ‘A TIRANIA DOS ESPECIALISTAS’