Autora angolana trata da diáspora africana em seu novo romance


'Luanda Lisboa Paraíso' é o segundo livro de Djaimilia Pereira de Almeida, e oferece uma visão fundamental do tempo em que vivemos

Por Ronaldo Bressane

Antes de tudo, é preciso advertir o leitor: este romance o levará da angústia à melancolia, da esperança vã à desesperança, passando pelo desespero. Como é possível que este arco dramático do nada ao nada seja encantador comprova-se pelo talento indiscutível de Djaimilia Pereira de Almeida em amar seus personagens e nos fazer amá-los também, a despeito de seus contínuos defeitos, perdas e frustrações. Angolana vivendo nos arredores de Lisboa, Djaimilia, 36, despontou com Esse Cabelo, de 2015, brilhante autoficção cerzida no ensaio. A forma transgênera foi perfeita para modelar uma abordagem inovadora da identidade em África e Europa, e tratar de questões pós-coloniais como a diáspora africana, a negritude, o racismo e o lugar do miscigenado.

A escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida Foto: Penguin Random House

Todos esses temas estão presentes no novo livro de Djaimilia. Mas, desta vez, com Luanda Lisboa Paraíso (Companhia das Letras Portugal), a autora estabelece uma trama romanesca clássica, narrada em onisciente terceira pessoa, com sutis voos no discurso indireto livre para investigar as íntimas motivações dos personagens: Cartola, Aquiles, Glória, Justina, Pepe, Iuri. O primeiro – cuja melancolia é decalcada do nosso Cartola, embora este cante o semba angolano – é a espinha dorsal do livro; uma espinha cada vez mais encurvada. Egresso da vida rural angolana, o alegre Cartola trabalha como parteiro e assistente de um obstetra branco, o doutor Barbosa da Cunha. Casa-se com a bela Glória, tem uma filha, é admirado por vizinhos e amigos, a vida se encaminha feliz até que o segundo filho nasce com um grave defeito no calcanhar – e, no choque do pós-parto, sua mulher cai em uma espécie de paralisia. Sempre orgulhoso, Cartola não cede ao destino e nomeia o filho com ambição heroica: Aquiles. A ficção estrutura-se na ambivalente dinâmica de servidão criada entre sãos e doentes (que ecoa a dinâmica metrópole/colônia), e Cartola passa a viver em função da mulher e do filho, economizando para a cirurgia em Portugal. 

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Enfim, quando Aquiles faz 14 anos, é levado a Lisboa pelo pai. Deixam Glória em Luanda aos cuidados de Justina, a filha que virou mãe solteira. Mas as cirurgias não dão muito certo, e pai e filho precisam se virar trabalhando em canteiros de obras, vigiados à distância pelos telefonemas e cartas cada vez mais controladores de Glória. O outrora amigo Barbosa da Cunha some com os documentos de Cartola e não o ajuda a livrá-lo da clandestinidade. Deprimido, Cartola passa a ser cuidado por Aquiles, até que precisem sair da tenebrosa pensão lisboeta para morar num casebre na fictícia e irônica Quinta do Paraíso, bairro de lata próximo à obra onde, clandestinos, são praticamente escravos. Resgata-os da tristeza a amizade com o taberneiro branco Pepe, um viúvo que cria o filho Amândio e o órfão Iuri, e a visita providencial de Justina e Neusa, a neta. 

Contado assim, o romance vive de parcos acontecimentos, tempos mortos e maus passos. O resgate dessas almas anônimas, que despencam da ex-colônia na matriz feito anjos tortos, é operado pela linguagem, que se apoia em ricas metáforas e símiles, além de um bom humor inabalável, responsável por tratar os personagens com compaixão, mas sem paternalismo ou concessões. 

“Nessa véspera de Natal, pai e filho passaram a consoada na ombreira da janela do quarto da Pensão Covilhã com vista para o muro do Hospital do Alvor. Da cantina da Somitex, Cartola trouxe duas caras de bacalhau cozidas. No café da esquina, comprou duas gasosas e um litro de cerveja. Em tronco nu, comeram do termo, apanhando o ar fresco da noite. No fim do repasto, bateu à porta Isaías. Alugava a Playboy aos hóspedes da Pensão em troca de umas castanhas de caju que alguém tivesse recebido de encomenda, ou de uns óculos escuros, um cinto novo, o que houvesse. “Isto é para ti, cambuta! Feliz Natal”, disse o pornógrafo com entusiasmo e estendeu a Aquiles um exemplar antigo da revista. O miúdo corou, mas aceitou a prenda com timidez. ‘Ora vamos lá proceder a esta operação’, disse Cartola entusiasmado. Desdobrando o pôster das páginas centrais, os três homens empoleiraram-se na fotografia de uma telefonista que discava um número (‘Kota Cartola, está a ligar para você!’) com um lápis rosa-pálido que, entrevisto através de um robe de chambre, casava com o tom salmão do mamilo direito, estrela da Natividade dos três reis magos.”

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No incontornável Crítica da Razão Negra, livro definidor do nosso tempo, o filósofo camaronês Achille Mbembe descreve o devir-negro do mundo, quando, alijados do trabalho por conta das acelerações tecnológicas na direção das inteligências artificiais, todos os humanos serão negros, no sentido prefigurado pelo capitalismo colonialista – o negro como mercadoria, máquina e moeda, ser descartável, sombra invisível. Seres periféricos até em suas vidas, descartados pelo mundo em que teimam habitar, anjos caídos de sua própria altura miserável, ainda assim Cartola e Aquiles nos apresentam o testemunho de sua humanidade irredutível. Livro sombrio, Luanda Lisboa Paraíso é atravessado por um facho de esperança, que, para além da discussão da diáspora negra, funciona como farol para os tempos obscuros a se aproximar de todos nós.*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (Reformatório)

Antes de tudo, é preciso advertir o leitor: este romance o levará da angústia à melancolia, da esperança vã à desesperança, passando pelo desespero. Como é possível que este arco dramático do nada ao nada seja encantador comprova-se pelo talento indiscutível de Djaimilia Pereira de Almeida em amar seus personagens e nos fazer amá-los também, a despeito de seus contínuos defeitos, perdas e frustrações. Angolana vivendo nos arredores de Lisboa, Djaimilia, 36, despontou com Esse Cabelo, de 2015, brilhante autoficção cerzida no ensaio. A forma transgênera foi perfeita para modelar uma abordagem inovadora da identidade em África e Europa, e tratar de questões pós-coloniais como a diáspora africana, a negritude, o racismo e o lugar do miscigenado.

A escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida Foto: Penguin Random House

Todos esses temas estão presentes no novo livro de Djaimilia. Mas, desta vez, com Luanda Lisboa Paraíso (Companhia das Letras Portugal), a autora estabelece uma trama romanesca clássica, narrada em onisciente terceira pessoa, com sutis voos no discurso indireto livre para investigar as íntimas motivações dos personagens: Cartola, Aquiles, Glória, Justina, Pepe, Iuri. O primeiro – cuja melancolia é decalcada do nosso Cartola, embora este cante o semba angolano – é a espinha dorsal do livro; uma espinha cada vez mais encurvada. Egresso da vida rural angolana, o alegre Cartola trabalha como parteiro e assistente de um obstetra branco, o doutor Barbosa da Cunha. Casa-se com a bela Glória, tem uma filha, é admirado por vizinhos e amigos, a vida se encaminha feliz até que o segundo filho nasce com um grave defeito no calcanhar – e, no choque do pós-parto, sua mulher cai em uma espécie de paralisia. Sempre orgulhoso, Cartola não cede ao destino e nomeia o filho com ambição heroica: Aquiles. A ficção estrutura-se na ambivalente dinâmica de servidão criada entre sãos e doentes (que ecoa a dinâmica metrópole/colônia), e Cartola passa a viver em função da mulher e do filho, economizando para a cirurgia em Portugal. 

Enfim, quando Aquiles faz 14 anos, é levado a Lisboa pelo pai. Deixam Glória em Luanda aos cuidados de Justina, a filha que virou mãe solteira. Mas as cirurgias não dão muito certo, e pai e filho precisam se virar trabalhando em canteiros de obras, vigiados à distância pelos telefonemas e cartas cada vez mais controladores de Glória. O outrora amigo Barbosa da Cunha some com os documentos de Cartola e não o ajuda a livrá-lo da clandestinidade. Deprimido, Cartola passa a ser cuidado por Aquiles, até que precisem sair da tenebrosa pensão lisboeta para morar num casebre na fictícia e irônica Quinta do Paraíso, bairro de lata próximo à obra onde, clandestinos, são praticamente escravos. Resgata-os da tristeza a amizade com o taberneiro branco Pepe, um viúvo que cria o filho Amândio e o órfão Iuri, e a visita providencial de Justina e Neusa, a neta. 

Contado assim, o romance vive de parcos acontecimentos, tempos mortos e maus passos. O resgate dessas almas anônimas, que despencam da ex-colônia na matriz feito anjos tortos, é operado pela linguagem, que se apoia em ricas metáforas e símiles, além de um bom humor inabalável, responsável por tratar os personagens com compaixão, mas sem paternalismo ou concessões. 

“Nessa véspera de Natal, pai e filho passaram a consoada na ombreira da janela do quarto da Pensão Covilhã com vista para o muro do Hospital do Alvor. Da cantina da Somitex, Cartola trouxe duas caras de bacalhau cozidas. No café da esquina, comprou duas gasosas e um litro de cerveja. Em tronco nu, comeram do termo, apanhando o ar fresco da noite. No fim do repasto, bateu à porta Isaías. Alugava a Playboy aos hóspedes da Pensão em troca de umas castanhas de caju que alguém tivesse recebido de encomenda, ou de uns óculos escuros, um cinto novo, o que houvesse. “Isto é para ti, cambuta! Feliz Natal”, disse o pornógrafo com entusiasmo e estendeu a Aquiles um exemplar antigo da revista. O miúdo corou, mas aceitou a prenda com timidez. ‘Ora vamos lá proceder a esta operação’, disse Cartola entusiasmado. Desdobrando o pôster das páginas centrais, os três homens empoleiraram-se na fotografia de uma telefonista que discava um número (‘Kota Cartola, está a ligar para você!’) com um lápis rosa-pálido que, entrevisto através de um robe de chambre, casava com o tom salmão do mamilo direito, estrela da Natividade dos três reis magos.”

No incontornável Crítica da Razão Negra, livro definidor do nosso tempo, o filósofo camaronês Achille Mbembe descreve o devir-negro do mundo, quando, alijados do trabalho por conta das acelerações tecnológicas na direção das inteligências artificiais, todos os humanos serão negros, no sentido prefigurado pelo capitalismo colonialista – o negro como mercadoria, máquina e moeda, ser descartável, sombra invisível. Seres periféricos até em suas vidas, descartados pelo mundo em que teimam habitar, anjos caídos de sua própria altura miserável, ainda assim Cartola e Aquiles nos apresentam o testemunho de sua humanidade irredutível. Livro sombrio, Luanda Lisboa Paraíso é atravessado por um facho de esperança, que, para além da discussão da diáspora negra, funciona como farol para os tempos obscuros a se aproximar de todos nós.*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (Reformatório)

Antes de tudo, é preciso advertir o leitor: este romance o levará da angústia à melancolia, da esperança vã à desesperança, passando pelo desespero. Como é possível que este arco dramático do nada ao nada seja encantador comprova-se pelo talento indiscutível de Djaimilia Pereira de Almeida em amar seus personagens e nos fazer amá-los também, a despeito de seus contínuos defeitos, perdas e frustrações. Angolana vivendo nos arredores de Lisboa, Djaimilia, 36, despontou com Esse Cabelo, de 2015, brilhante autoficção cerzida no ensaio. A forma transgênera foi perfeita para modelar uma abordagem inovadora da identidade em África e Europa, e tratar de questões pós-coloniais como a diáspora africana, a negritude, o racismo e o lugar do miscigenado.

A escritora angolana Djaimilia Pereira de Almeida Foto: Penguin Random House

Todos esses temas estão presentes no novo livro de Djaimilia. Mas, desta vez, com Luanda Lisboa Paraíso (Companhia das Letras Portugal), a autora estabelece uma trama romanesca clássica, narrada em onisciente terceira pessoa, com sutis voos no discurso indireto livre para investigar as íntimas motivações dos personagens: Cartola, Aquiles, Glória, Justina, Pepe, Iuri. O primeiro – cuja melancolia é decalcada do nosso Cartola, embora este cante o semba angolano – é a espinha dorsal do livro; uma espinha cada vez mais encurvada. Egresso da vida rural angolana, o alegre Cartola trabalha como parteiro e assistente de um obstetra branco, o doutor Barbosa da Cunha. Casa-se com a bela Glória, tem uma filha, é admirado por vizinhos e amigos, a vida se encaminha feliz até que o segundo filho nasce com um grave defeito no calcanhar – e, no choque do pós-parto, sua mulher cai em uma espécie de paralisia. Sempre orgulhoso, Cartola não cede ao destino e nomeia o filho com ambição heroica: Aquiles. A ficção estrutura-se na ambivalente dinâmica de servidão criada entre sãos e doentes (que ecoa a dinâmica metrópole/colônia), e Cartola passa a viver em função da mulher e do filho, economizando para a cirurgia em Portugal. 

Enfim, quando Aquiles faz 14 anos, é levado a Lisboa pelo pai. Deixam Glória em Luanda aos cuidados de Justina, a filha que virou mãe solteira. Mas as cirurgias não dão muito certo, e pai e filho precisam se virar trabalhando em canteiros de obras, vigiados à distância pelos telefonemas e cartas cada vez mais controladores de Glória. O outrora amigo Barbosa da Cunha some com os documentos de Cartola e não o ajuda a livrá-lo da clandestinidade. Deprimido, Cartola passa a ser cuidado por Aquiles, até que precisem sair da tenebrosa pensão lisboeta para morar num casebre na fictícia e irônica Quinta do Paraíso, bairro de lata próximo à obra onde, clandestinos, são praticamente escravos. Resgata-os da tristeza a amizade com o taberneiro branco Pepe, um viúvo que cria o filho Amândio e o órfão Iuri, e a visita providencial de Justina e Neusa, a neta. 

Contado assim, o romance vive de parcos acontecimentos, tempos mortos e maus passos. O resgate dessas almas anônimas, que despencam da ex-colônia na matriz feito anjos tortos, é operado pela linguagem, que se apoia em ricas metáforas e símiles, além de um bom humor inabalável, responsável por tratar os personagens com compaixão, mas sem paternalismo ou concessões. 

“Nessa véspera de Natal, pai e filho passaram a consoada na ombreira da janela do quarto da Pensão Covilhã com vista para o muro do Hospital do Alvor. Da cantina da Somitex, Cartola trouxe duas caras de bacalhau cozidas. No café da esquina, comprou duas gasosas e um litro de cerveja. Em tronco nu, comeram do termo, apanhando o ar fresco da noite. No fim do repasto, bateu à porta Isaías. Alugava a Playboy aos hóspedes da Pensão em troca de umas castanhas de caju que alguém tivesse recebido de encomenda, ou de uns óculos escuros, um cinto novo, o que houvesse. “Isto é para ti, cambuta! Feliz Natal”, disse o pornógrafo com entusiasmo e estendeu a Aquiles um exemplar antigo da revista. O miúdo corou, mas aceitou a prenda com timidez. ‘Ora vamos lá proceder a esta operação’, disse Cartola entusiasmado. Desdobrando o pôster das páginas centrais, os três homens empoleiraram-se na fotografia de uma telefonista que discava um número (‘Kota Cartola, está a ligar para você!’) com um lápis rosa-pálido que, entrevisto através de um robe de chambre, casava com o tom salmão do mamilo direito, estrela da Natividade dos três reis magos.”

No incontornável Crítica da Razão Negra, livro definidor do nosso tempo, o filósofo camaronês Achille Mbembe descreve o devir-negro do mundo, quando, alijados do trabalho por conta das acelerações tecnológicas na direção das inteligências artificiais, todos os humanos serão negros, no sentido prefigurado pelo capitalismo colonialista – o negro como mercadoria, máquina e moeda, ser descartável, sombra invisível. Seres periféricos até em suas vidas, descartados pelo mundo em que teimam habitar, anjos caídos de sua própria altura miserável, ainda assim Cartola e Aquiles nos apresentam o testemunho de sua humanidade irredutível. Livro sombrio, Luanda Lisboa Paraíso é atravessado por um facho de esperança, que, para além da discussão da diáspora negra, funciona como farol para os tempos obscuros a se aproximar de todos nós.*Ronaldo Bressane é escritor e jornalista, autor do romance 'Escalpo' (Reformatório)

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